David Crystal em conversa sobre conversas

Vitor Hochsprung,
Cyntia Bailer

Resumo

Nesta resenha, abordamos criticamente os apontamentos feitos pelo professor David Crystal na live Let’s talk: How English Conversation Works, proferida durante o evento Abralin ao Vivo, organizado pela Associação Brasileira de Linguística e parceiros. Levantamos os principais conceitos discutidos pelo professor, relacionando a realidade da língua inglesa com a realidade da língua portuguesa falada no Brasil. Entretanto, também colocamos nossas reflexões sobre os diversos assuntos abordados. Na live, o professor falou sobre como as conversas funcionam, desde interações mais formais até interações cotidianas, abordando também a maneira como elas são realizadas (pessoalmente, virtualmente, entre outros). Muito mais do que uma palestra, a live foi uma conversa entre o professor David Crystal e a professora Anne Wichmann, que bateram um papo sobre o ato de bater papo.

Texto

Um dos primeiros convidados do evento Abralin ao Vivo, organizado pela Abralin1, CIPL2, ALFAL3, SAEL4 e LSA5, foi o professor emérito David Crystal, linguista britânico, autor de muitos trabalhos sobre a língua inglesa. Entre suas publicações, damos relevância para “The Cambridge Encyclopedia of the English Language” (2018)[1] e um material recente chamado “Let’s Talk: How English Conversation Works” (2020a)[2], que também dá título à conferência realizada em 5 de maio de 2020, disponível no Canal da Abralin no Youtube (CRYSTAL, 2020b)[3].

Muito mais do que uma palestra, a conferência ministrada pelo professor David Crystal foi uma conversa com a professora Anne Wichmann – um bate-papo sobre o ato de bater papo, o que é, por que o fazemos, como aprendemos, suas convenções e contextos -, que desde o início teve contribuições muito eficazes para a aprendizagem da audiência e fluência da conferência. Nesta resenha, faremos um resumo comentado dos principais apontamentos levantados pelos dois professores, especialmente pelo linguista britânico.

Já começamos com uma intervenção no título da conferência: quando o linguista insere a palavra English, está, obviamente, fazendo menção à língua-objeto de suas pesquisas. Entretanto, ao ouvir seus apontamentos, resultados e opiniões, podemos facilmente recorrer a exemplos do Português Brasileiro (doravante PB) e relacionar as duas línguas, o que nos propomos a rapidamente fazer aqui.

Ao iniciar sua fala de quase uma hora, o professor nos cumprimentou e estabeleceu uma conexão com o público-alvo da conferência, brasileiros, inclusive brincou com o infeliz fato de que o sistema virtual ainda não permite o envio de caipirinhas. Ressaltou a importância do estabelecimento dessa conexão com quem se está conversando, seja uma pessoa apenas, um grupo, ou um número de pessoas que não se pode ver, como no contexto da conferência virtual, para depois se iniciar uma conversa séria. Outra razão para o estabelecimento dessa conexão se refere à atenção, um princípio básico de eloquência, especialmente num contexto artificial como uma palestra: nunca diga nada muito importante no primeiro meio minuto. As pessoas estão, nesse meio minuto, se acostumando ao seu tom de voz, reconhecendo a situação, se ambientando. Dessa forma, aos poucos, o professor introduziu seus tópicos, baseado em observações em anos de pesquisa, que abordaram cumprimentos, pausas, formas de iniciar e terminar uma conversa, o importante papel do feedback, e diferentes contextos de conversa que influenciam a fala, como a pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 tem afetado a maneira como conversamos.

O autor observou, por exemplo, a diferença pragmática entre dizer “good morning” (“bom dia”) e dizer “good night” (“boa noite”), uma vez que o primeiro causa estranhamento quando dito repetidamente e o segundo aceita a repetição de forma mais aberta. Generalizando, podemos classificar “bom dia” como pertencente ao campo semântico dos cumprimentos e o “boa noite” ao campo semântico das despedidas. Assim, cumprimentar alguém duas vezes pode soar desconfortável e despedir-se da mesma pessoa duas vezes seria mais aceitável, pois vários motivos dentro do contexto podem causar a repetição, como esquecer algo e despedir-se novamente ou quando as conversas se alongam fazendo com que o “boa noite” anterior já tenha “perdido a validade”. Este último leva a outra observação feita por David Crystal: terminar uma conversa é mais difícil do que começar.

Outro aspecto também observado pelo professor foi a questão das pausas, que geralmente são usadas de forma dramática, a fim de ilustrar um momento de expectativa, como o exemplo (nosso) que trazemos em (1), ou de finalizar uma conversa, como em (2), que ocorrem no PB:

1. (A): E o João, né, cara? [pausa]

(B): ...

(A): ...terminou a faculdade!

2. (A): ...mas é isso! [pausa]

(B): Até!

(A): Tchau!

Isso implica tanto em conversas realizadas pessoalmente quanto em telefonemas ou conferências, em que a entoação também é um fenômeno que deve ser levado em conta, pois existe a ausência de expressões e reações simultâneas.

Na modalidade escrita, é ainda mais difícil, porque existe a ausência desses três importantíssimos recursos. A complexidade do ser humano pode fazer com que, em nosso estado momentâneo, interpretemos uma mensagem de texto de maneira completamente equivocada. E nem nos atrevemos a comentar sobre os emoticons, que carregam a particularidade de cada indivíduo de maneira muito mais densa que na fala: um sorriso pode significar desde um acordo até uma despedida.

Entender que o feedback é importante numa conversa requer também assumir que pelo menos dois interlocutores devem estar de fato inseridos no diálogo, para que possam responder não somente com palavras, mas com reações, expressões e até interrupções, que às vezes assumem caráter apoiador, de concordância com o assunto abordado, mas também podem soar desagradáveis, dependendo das intenções do interlocutor, que beiram humilhação e ofensa. Em conversas face a face, o feedback simultâneo proporcionado não apenas por palavras, mas pela linguagem corporal é muito mais óbvio e rápido que em conversas virtuais, que apresentam limitações, a iniciar pela qualidade da conexão de internet. Essa falta de feedback simultâneo interfere nas conversas que passaram a ser frequentes devido às circunstâncias atuais, tanto por causa da necessidade de distanciamento social relacionado à pandemia quanto por causa dos avanços da tecnologia, que tem se apresentado como um meio de interação quase tão potente quanto o tradicional boca a boca. David Crystal nos chama a atenção pelo equívoco no amplo uso do termo distanciamento social. Deveríamos usar distanciamento físico, já que estamos distantes fisicamente, e não socialmente. Precisamos de solidariedade social. O momento clama por flexibilidade, pelo aprendizado de novas convenções.

Todas as observações feitas por David Crystal e complementadas pela professora Anne Wichmann foram, gentilmente, levando a conversa para o contexto atual que vivemos no ano de 2020, em que uma pandemia nos força a substituir interações pessoais por conversas virtuais. A necessidade imediata de mudança tomou conta do mundo inteiro. Em questões de comunicação e linguística, podemos levantar pontos muito proveitosos, como a possibilidade de realização de um evento de caráter internacional acessível para acadêmicos do mundo todo, que é o caso do Abralin ao Vivo, mas também pontos que requerem pesquisa científica, como os relacionados às interações face a face com máscaras e as especificidades de interações mediadas por tecnologias. Neste último, o professor David Crystal levanta recentes experiências: não se tem a certeza de quanto se pode falar durante as conferências; o virtual se torna desconfortável, pois ainda não é natural falar com uma câmera e se expressar como é feito nas interações pessoais; algumas expressões acabam se tornando robóticas e repetitivas.

É cabível fazer uma contextualização do mundo em que vivíamos antes da pandemia e do mundo em que vivemos hoje. Anteriormente, já falávamos sobre a internet e sua possível caracterização de “nova normalidade”, porém, as adaptações necessárias devido à pandemia tornaram o processo (que já era rápido) ainda mais veloz. A adaptação foi forçada. Contudo, esperançoso, o professor mencionou que os jovens são nativos em tecnologia, e que a tecnologia está a todo tempo evoluindo para atender às necessidades das pessoas.

Outras discussões foram rapidamente feitas, abordando aquisição de linguagem, diversidade cultural e outros aspectos que podem ser vistos e revistos a qualquer tempo já que a gravação está disponível a todos. Também é interessante voltar ao comentário feito no início do nosso texto, sobre a possível relação entre a língua inglesa e o PB, e dizer que vários dos conceitos discutidos por Crystal e Wichmann foram retomados no dia seguinte, quando o professor Ataliba Teixeira de Castilho (2020)[4] falou sobre as conversas no PB na conferência intitulada “Da análise da conversação para a formulação de princípios linguísticos”.

Por fim, podemos dizer que David Crystal superou as nossas expectativas, que já eram altas, em sua fala. Perceber o tanto de fazer científico que pode haver por trás de uma simples conversa é, no mínimo, impressionante. A didática do professor ao tornar acessível parte do conhecimento desenvolvido durante sua carreira também é admirável. Ele mostrou que além de falar sobre conversas, também sabe conversar. Assim, recomendamos que estudantes de Letras e comunicação e professores de inglês e português da rede pública e privada assistam à conferência, além de interessados em estudos da linguagem e curiosos sobre como desempenhamos a arte de conversar.

Referências

DA análise da conversação para a formulação de princípios linguísticos. Conferência apresentada por CASTILHO, A. T. [S.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 0min 43s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PQQevy5xhzI. Acesso em: 07 mai 2020.

CRYSTAL, D. The Cambridge Encyclopedia of the English Language. 3. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2018. 582p.

CRYSTAL, D. Let’s Talk: How English Conversation Works. Londres: Oxford University Press, 2020a (no prelo). 224p.

LET'S talk: How English Conversation Works. Conferência apresentada por CRYSTAL, D. [S.l., s.n], 2020b. 1 vídeo (59min 45s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UTyg2FHyrL4. Acesso em: 07 maio 2020.