Da linguística humana ao sistema "d" e às ordens espontâneas: uma abordagem à emergência das línguas indígenas africanas

Sinfree B. MAKONI,
Alexandre Cohn da SILVEIRA

Resumo

As práticas linguísticas têm sido vistas através de enquadramentos – como a translinguagem, mistura de códigos, superdiversidade e o metrolinguismo – motivados pela intenção de capturar algumas das diversidades sociolinguísticas contemporâneas, ou capturar as diversidades que ocorreram historicamente – entretanto perdidas por causa dos quadros analíticos usados – sublinhando a necessidade de expandir os “repertórios epistemológicos”. Este artigo segue essa lógica de busca por expandir repertórios epistemológicos analíticos para descrever as diversidades sociolinguísticas, tendo como foco contextos sócio históricos da África, analisando como as línguas indígenas, foram apropriadas como primeiras línguas por falantes africanos, bem como explora as implicações de uma perspectiva linguística humana, no planejamento linguístico.

Introdução

Nosso principal objetivo é explorar as implicações da adoção da perspectiva da “linguística humana” (YNGVE, 1996, p. 80[1]) sobre o planejamento linguístico na África. Sob tal perspectiva, a língua não é entendida como uma coisa que possui vida própria, externa e acima dos seres humanos, mas que tem verdadeira existência apenas nos indivíduos, e todas as mudanças na vida de uma língua só podem existir a partir de seus falantes (YNGVE, 1996, p. 28[1]). Em uma perspectiva da linguística humana, são as pessoas e as suas atividades que devem ser centrais para um estudo da língua. Portanto, a partir de tal perspectiva, o principal objetivo do planejamento linguístico na África seria promover e mudar o status político e econômico das pessoas, ampliando a natureza da comunicação entre elas, o que se torna valioso porque “[...]as tarefas comunicativas são frequentemente subtarefas de tarefas não linguísticas (...) e se relacionam naturalmente com assuntos cotidianos” (YNGVE; WASIK, 2004, p.23[2]). Então, o objetivo final da “linguística humana” é permitir que as pessoas realizem suas atividades, e sendo a linguagem uma subtarefa dentro desse processo, ela não pode existir em “isolamento esplêndido” (YNGVE; WASIK, 2004, p. 23[2]). A língua não pode ser isolada de outras práticas semióticas. Na perspectiva da linguística humana, em que as pessoas são de primordial importância, elas são assumidas como “usando as línguas” e não como “usuários de idiomas”. Chamá-las de usuários é, portanto, “perverso” porque estaríamos definindo pessoas em termos de língua (YNGVE, 1996, p. 77[1]).

Muitos estudiosos que trabalham na África têm observado com frequência que os governos africanos são relutantes ou intransigentes quanto a implementar de forma abrangente políticas linguísticas que busquem promover o que se entende por línguas indígenas (STROUD, 2001). O suposto fracasso do governo africano para implementar tais políticas linguísticas é atribuído à preferência dada ao inglês ou francês, que, por sua vez, seria um resultado do neocolonialismo. Infelizmente, esse argumento está historicamente errado, pois é baseado no pressuposto de que um dos principais objetivos dos governos coloniais era promover o inglês ou o francês, o que se torna historicamente inválido uma vez que os governos coloniais estavam muito mais inclinados a promover os idiomas africanos do que o inglês ou o francês. Ao contrário do argumento neocolonial, foram os países africanos que defendiam fortemente o uso do inglês naeducação (SUMMERS, 2000[3]; MAKONI; TRUDDELL, 2006[4]). O principal impulso do nosso argumento neste artigo, no entanto, não reside no aspecto histórico do planejamento linguístico, ainda que possa estar à luz de tal perspectiva, mas na noção teórica de língua e, por extensão, no multilinguismo e nas implicações do reenquadramento da língua em uma “perspectiva da linguística humana” para o planejamento linguístico na África.

O fracasso frequentemente relatado das políticas africanas para o planejamento linguístico na África tem criado, paradoxalmente, oportunidades únicas para se examinar criticamente algumas das suposições feitas sobre as línguas africanas. Esse insucesso não se deve à falta de vontade ou incapacidade, por parte dos governos africanos, em implementar tais políticas, mas a uma tendência teórica de tratar as línguas africanas como se fossem objetos reais. Nós não somos nem os primeiros nem os únicos estudiosos céticos sobre a crença de que as línguas são entidades no mundo real e tal ceticismo tem sido raramente articulado aos contextos africanos de política e planejamento linguísticos.

Nossa posição não é que devamos tratar o planejamento linguístico como uma empresa na África, mas que precisamos nos reorientar para longe de uma reificação das línguas como se existissem por si só no mundo real, no sentido de buscarmos enquadramentos cujos principais objetivos seriam, em primeiro lugar, promover as pessoas e, em seguida, melhorar a comunicação entre elas. Projetos africanos de planejamento linguísticos realizados a partir de uma perspectiva da linguística humana devem nos levar a reformular nossas perguntas mesmo em outras áreas, indo além da noção das línguas africanas. “Podemos dizer que estamos interessados em como as crianças aprendem a falar e que estamos curiosos sobre a maneira como nós vemos o mundo (e poderíamos adicionar “como vemos as pessoas”) depende da maneira como falamos sobre isso” (YNGVE, 1996, p. 73[1]). Um projeto de planejamento linguístico bem-sucedido nessa perspectiva exige no mínimo coragem moral e intelectual para prescindirmos da noção de língua na sociolinguística africana.

A posição que estamos adotando é o inverso dos modelos convencionais de planejamento linguístico, cujo objetivo consiste em promover o status das línguas em modelos que não prestam a devida atenção ao modo como as pessoas falam sobre o mundo e sobre si mesmas e de como as línguas emergem de tal interação, não sendo um “a priori” em relação aos encontros humanos. Defendemos a ideia de que as mudanças no status da língua podem ocorrer como resultado de mudanças sociais, políticas e econômicas de seus falantes, e o contrário não necessariamente ocorre. A situação socioeconômica das pessoas nem sempre melhora porque o status de sua língua foi alterado, ou seja, o reconhecimento e a atribuição de status oficial às línguas não melhora a condição social e política dos povos indígenas. Se as nossas conceituações das línguas africanas mudarem, temos que desinventar os discursos sobre as línguas africanas e analisar não apenas nossos discursos sobre a África, mas também como nossos discursos são (mal) apropriados ou subvertidos pela população local. Para que a desinvenção ocorra é necessário intervir em um nível de discurso, o das representações, e, por implicação, no nível da conceituação das línguas africanas. Nesse raciocínio, ser africano significa, por extensão, incluir o estatuto das práticas linguísticas africanas, a relação entre tais práticas e o sobrenatural e “a maldição das vozes dos mortos-vivos”1 (PERLEY, 2012, p. 133[5]). O objetivo final da desinvenção é facilitar formas alternativas de abordagem e conceituação das línguas africanas, dispensando completamente a noção existente e reforçando um contexto sociolinguístico epistemológico africano e livre. Nesse ínterim, devido à persistência da noção de língua sobre o nosso imaginário de África, nos resta a alternativa de desinventar cinco formas dominantes de conceituação das línguas africanas:

  • A diversidade linguística como enumerabilidade.
  • O jogo de nomeação.
  • A conceituação das línguas africanas.
  • A construção da indigeneidade.
  • Os dicionários como discurso e como uma teoria das línguas africanas.

Os argumentos que apresentamos não são necessariamente exclusivos para África, embora possam assumir maior significado nesse contexto. Eles podem não apenas se identificar com experiências de línguas minoritárias na Europa, e outros contextos pós-coloniais como a Índia, como também são claramente relevantes para o chamado Sul Global (KERFOOT; HYLTENSTAM, 2017[6]; ARTHUR, J.; CHIMBUTANE, 2015[7]).

1. Diversidade linguística como enumerabilidade

Nesta seção do artigo analisamos o papel da enumeração na conceituação da diversidade africana. Greenberg (1966[8]), em relação às línguas na África, estima que existam cerca de 800 línguas diferentes. Crystal (1997, p. 316[9]) propõe cerca de 2000. Mann e Dalby (1987[10]) apresentam uma estimativa maior do que a de Crystal e sugerem que a África possui aproximadamente 2550 línguas. Existe um debate em curso envolvendo linguistas, antropólogos, grupos de cooperação, planejadores da educação e governos africanos sobre o número exato de línguas africanas. Até mesmo linguistas bem estabelecidos, com ampla experiência na África, parecem estar indecisos sobre o número exato de idiomas. Por exemplo, Whiteley (1974[11]) atribui 47 idiomas ao Quênia, na página 21 do seu texto, e então, misteriosamente, altera o número para 34, na página 27. Njoroge (1986, p. 330[12]) afirma que, segundo o governo queniano, o Quênia tem um total de 39 idiomas. As estimativas para o Malawi variam entre 12 e 35, uma ampla variação que não é uma exclusividade do país. As estimativas para a Zâmbia variam ainda mais. Às vezes, afirma-se que o país possui 20 línguas, outras vezes, 73 (WILLIAMS, 1992[13]).

A variabilidade do número de línguas africanas não se restringe ao sul ou ao leste da África. Grimes (1974), por exemplo, estima que o número de idiomas na Costa do Marfim seja 58 e, um ano depois, em 1975, o censo oficial relatou que a Costa do Marfim teria um total de 69 idiomas. O Summer Institute of Linguistics, uma organização com uma vasta experiência na codificação das línguas africanas, listou, em 1995, um total de 84 idiomas para a Costa do Marfim, sendo 10 não indígenas e uma língua extinta (DJITE, 1993, p. 16[14]). A controvérsia sobre o número de línguas africanas ilustra importantes questões teóricas cujo impacto afeta diretamente áreas de conhecimentos aplicados, como o planejamento linguístico e a língua na educação. É altamente improvável que cheguemos a algum consenso sobre o número exato de línguas africanas.

Muhlhausler (1996, p.36[15]), focado na região do Pacífico, sugere que a falta de acordo sobre os números de línguas não reflete necessariamente uma incapacidade dos linguistas em distinguir communalects,2 línguas e dialetos, mas a inexistência de línguas conforme significado atribuído pela tradição ocidental. Embora Muhlhausler não tenha a África como foco de seus estudos, suas ideias são igualmente relevantes para pensarmos esse contexto específico. Paradoxalmente, a discrepância e a controvérsia relativas ao número de línguas africanas não é um problema, mas sim uma situação que deveria ser reforçada, pois nos leva a repensar alguns dos conceitos fundamentais relativos à linguística africana, como se de fato precisamos de noções de língua para enquadrar e descrever os contextos sociolinguísticos africanos.

O jogo dos números nas línguas africanas é um sintoma da poderosa influência da ideologia censitária na linguística africana, uma ideologia que é a espinha dorsal da modalidade enumerativa, uma das cinco modalidades utilizadas para enquadrar narrativas pós-coloniais sobre a África, citadas anteriormente. As outras modalidades são a historiográfica, a modalidade de pesquisa observacional/ de viagem e a museológica (COHN, 1996, p.8[16]). A modalidade enumerativa, ao contrário das outras modalidades, baseia-se na ideia de que as línguas africanas podem ser convertidas em formas contáveis, descritíveis e podem, assim, serem prescritas. Em suma, a modalidade enumerativa é baseada na crença de que as línguas em geral, mas particularmente as formas africanas de fala, podem ser contidas e controladas. Para que a contagem aconteça, as línguas são rotuladas, mesmo que “nomear idiomas seja um tipo de consciência ocidental, um artefato embutido na educação formal ocidental, em um continente em que a maioria não é formalmente alfabetizada no sentido ocidental (MAKONI et al., 2003). Ideologicamente, os números assumem um duplo papel: em alguns casos, são usados para oprimir os falantes destas línguas e, em outros casos, alguns linguistas evocam os mesmos números para exigir reparação e compensação.

2. O jogo de nomeação

Nesta seção, ilustramos como surgiu a noção de que os idiomas têm nomes e o impacto que essa nomeação tem sobre as formas nas quais mapas linguísticos africanos são desenhados e construídos. Uma vez que essa linguanímia [linguanyms] frequentemente coincide com a etnonímia, temos que os Shona falam Shona, os Zulu falam Zulu, os Bambara falam Bambara, e que a produção de mapas linguísticos também produz simultaneamente mapas étnicos. Exemplos são a maneira como a nomenclatura, a catalogação e classificação integravam um projeto de desenvolvimento enciclopédico e de inventários coloniais (FABIAN, 1986[17]). Linguisticamente, a variabilidade no número de idiomas é, em parte, uma consequência dos diferentes nomes atribuídos à “mesma” variedade de fala, às vezes até dentro da mesma política, resultando na contagem da mesma variedade discursiva mais de uma vez, inflando, assim, o número de línguas africanas (DJITE, 1993, 2008[14,18]).

Uma vez que algumas das línguas africanas são faladas e usadas por vários sistemas políticos, acabam por possuir, não surpreendentemente, vários nomes. Por exemplo, um pidgin de base Zulu falado em cidades de mineração na África Austral e Central, pejorativamente tratado como “kaffir de cozinha” ou o “kaffir de mina” pelos colonialistas europeus, é denominado Fanakalo, no sul da África, Chilapalapa, no Zimbabwe, Chikabaga, em Zâmbia, e Kitanga, no Congo. Há também uma tendência de considerar línguas mutuamente inteligíveis como distintas, porque elas são historicamente associadas a diferentes disposições políticas, algumas das quais relativas a um período anterior ao colonialismo. Por exemplo, Kirundi e Kinyarwanda devem suas identidades a diferentes reinos que evoluíram no moderno Burundi e em Ruanda (MASAGARA, 1997, p. 385[19]).

Há, também, uma discrepância entre nomes utilizados pelos linguistas e aqueles utilizados pelos próprios falantes. Os nomes usados por linguistas aplicados têm sido geralmente versões criadas pelos colonialistas, o que não surpreende, pois, na África, a linguística aplicada é herdeira do colonialismo. Em termos etnometodológicos, os nomes das línguas utilizadas pelos colonialistas e linguistas aplicados não necessariamente correspondem àqueles usados pelos próprios falantes. Djite (1989) cita dois exemplos de línguas faladas na África Ocidental, Guere e Wobe, que com base em critérios linguísticos poderiam ser tratadas como línguas diferentes, embora sejam consideradas como uma “mesma” língua por seus falantes. De acordo com essas pessoas, a distinção entre Guere e Wobe existe na língua do homem branco, mas os seus falantes identificam-se com a ampla comunidade Akan (DJITE, 1989, p. 6). Evidências sobre o impacto do colonialismo europeu na formação do mapa linguístico de África são largamente encontradas em toda a África, e não se limitam apenas à África Ocidental. Em alguns casos, os nomes não eram apenas impostos, mas eram pejorativos também, não poupando os próprios colonialistas. Para exemplificar, Springer, em 1909, em texto sobre o chiShona da África austral, comenta que “Vários termos foram inventados pelo homem branco, sendo o chiSwina o mais conhecido, significando, a língua das pessoas imundas (SPRINGER, 1909, p.4[20]). No Malawi, os missionários e os primeiros exploradores foram responsáveis por dar à língua chiChewa o nome chiNyanja no período pré-colonial (MVULA, 1992, p. 45[21]). Mvula relata como os primeiros exploradores portugueses entraram no sudeste da África, na região de Quelimane, onde se depararam com os Marawi ou Chewa. O povo Marawi foi apelidado amaNyanja, uma vez que eles viviam na área perto do lago ou do Rio Shire, conhecido como Nyanja. Daí, amaNyanja significava as pessoas do lago, e chiNyanja, a língua das pessoas do lago (MVULA, 1992, p. 45[21]). Em 1968, quatro anos após a independência, o Malawi substituiu o nome chiNyanja por chiChewa.

Os argumentos de Djite (1989), Springer (1909[20]) e Mvula (1992[21]), entre outros, ressaltam a necessidade de prestarmos mais atenção em como os falantes constroem suas línguas e a necessidade de se elaborar descrições e classificações que levam em consideração as perspectivas individuais como parte da descolonização do pensamento que moldou as chamadas línguas indígenas. As perspectivas dos usuários normalmente refletem a natureza das relações sociais entre os falantes dos grupos “supostamente” diferentes (HYMES, 1983[22]), ao contrário das perspectivas usadas pelos linguistas que são ostensivamente construídas por critérios linguísticos restritos, cuja precisão é questionável. O legado do objetivismo fica evidente em como formas de fala africanas são divididas em línguas distintas, e em como estas línguas são divididas, por sua vez, em “famílias”. Às vezes, as línguas são traçadas como tendo um ancestral comum, um proto-bantu (GUTHRIE, 1972[23]) ou ur-bantu. Proto-bantu e ur-bantu são reconstruções históricas, ficções linguísticas e idiomas não reais, baseadas no pressuposto de que todas as línguas bantu são desenvolvidas a partir de um ancestral comum.

A análise feita pela neogramática – Carl Meinhof – demonstra que as línguas bantu estão “relacionadas” e pertencem à mesma família, havendo uma continuidade histórica do proto-bantu. O método comparativo que foi aplicado às línguas africanas tem sido usado em outras regiões do mundo, como na região do pacífico, por exemplo (CROWLEY, 1989[24]). Essa classificação exclui as “línguas mistas”, as línguas de contato, as línguas veiculares, os crioulos, que não foram descritas por terem sido assumidas como ideologicamente marginais. Essa exclusão se deve ao fato de serem utilizadas principalmente entre os africanos e não entre estes e os europeus (ERRINGTON, 2001, p. 29[25]). A reconstrução das línguas proto-bantu também criou uma interpretação linguística da história baseada em uma idealização de processos históricos, uma justaposição simples de estados reais e estados hipotéticos, sem qualquer referência a estados intermediários. Assim, toda uma gama de dados dotados de variação tem sido excluída da análise histórica. Cohn apresenta uma crítica bastante veemente ao método comparativo:

O poder do método comparativo foi permitir que o praticante classificasse e controlasse a variedade e a diferença. No nível fenomenológico, britânicos descobriram centenas de línguas. Assim como nas genealogias, em que se poderia representar visualmente todos os membros de uma família e de grupos descendentes em uma árvore com raiz, tronco, galhos e até brotos, de forma semelhante, os dialetos e idiomas eram representados e agrupados. Curiosamente, as árvores sempre pareciam ser as do norte da Europa, como os carvalhos e os bordos, e aos britânicos nunca pareceu pensar em usar árvores mais típicas do sul da Ásia, como a figueira-da-índia3, que cresce para cima, para os lados e para baixo ao mesmo tempo (COHN, 1996, p. 55).

As línguas bantu consistem no maior grupo linguístico dentro das línguas do grupo Níger-Congo, a maior “família linguística” (HURST, no prelo[26]) da África subsaariana, falada (segundo afirmam) por cerca de 260 milhões de pessoas no oeste, centro, leste e sul da África (WEBB; KEMBOSURE, 2000, p. 33[27]). A relação linguística entre as línguas torna-se evidente quando as palavras usadas para um mesmo conceito são comparativamente analisadas.

O discurso de classificação linguística das línguas africanas é objeto de nossa análise porque, como todo tipo de discurso, molda nossas imagens e conceituações de línguas africanas (BLOMMAERT, 2008[28]). A partir de uma perspectiva feminista, os discursos sobre a classificação das línguas da África são bastante impressionantes. A metáfora da “família” é usada para enquadrar as relações entre as línguas africana; trata-se de uma metáfora, extremamente poderosa e emotiva mesmo quando usada analiticamente (IRVINE; GAL, 2000[29]). Infelizmente, tais expressões idiomáticas podem ser inadequadas para descrever as relações entre línguas porque, como qualquer metáfora, carregam uma bagagem extra de implicações sobre as línguas e seus falantes, tais como se os falantes partilhassem um interesse comum, se fossem coparticipantes de alguma comunidade global, ou se a sua participação fosse inevitavelmente diferenciada de acordo com uma hierarquia social. Em alguns casos, as línguas são descritas como “irmãs”. A feminização da língua é levada a um extremo quando as línguas, tais como o Hausa, são consideradas como “fecundadas de semitismo”.

Metodologicamente, a classificação das línguas africanas em unidades distintas, hermeticamente fechadas (MAKONI, 1998[30]), ainda que ostensivamente baseada em dados linguísticos objetivos, exclui, infelizmente, a perspectiva dos falantes, além de mascarar o papel dos analistas. O objetivismo linguístico surge de uma demanda dupla. Por um lado, espera-se que o/a analista atue objetivamente, enquanto, ao mesmo tempo, é importante que ele ou ela esteja imerso na vida local. Consequentemente, os rótulos e nomes atribuídos às línguas estão conectadas – e moldam – as identidades socioculturais de seus falantes. A questão, portanto, não é de simplesmente obter o nome certo para o que se fala, mas de se obter uma consciência sobre a natureza constitutiva dessa nomeação. Os rótulos não são meramente descritivos, mas constitutivos (DANZINGER, 1997[31]), o que resulta em povos africanos verem a si próprios através das lentes coloniais.

Esses rótulos inventados foram frequentemente mobilizados em políticas nacionalistas e étnicas ao longo da história. Por exemplo, Webb e Kembo-Sure (2000, p. 289[27]) observam uma crescente consciência de identidade linguística na África do Sul, produzindo rótulos de auto-identificação, como “eu falo Tswana”, como observa van Warmelo (1974, p. 74, apud HERBERT,1992, p. 2[32]). É difícil desenhar qualquer fronteira real entre Tswana e Sotho do Norte, o qual é tão diverso que se pode questionar a relevância de uma única categoria de nomeação.

3. Conceituando as línguas africanas

A diversidade linguística africana, conceitualmente falando, é um artefato de línguas construídas separadamente cujas fronteiras não podem necessariamente ter qualquer realidade social funcional. Trata-se de uma demarcação baseada puramente em critérios linguísticos e que não necessariamente traduz limites de comunicação (DJITE, 1993[14]). Se o mapa linguístico africano fosse projetado com base na comunicação, ao invés de diferenças linguísticas imaginadas, seria relativamente fácil produzir soluções viáveis às questões locais (DJITE, 1993[14]). No continente africano, a questão do redesenho das fronteiras linguísticas africanas tem ramificações que vão além da linguagem. Quanto a isso, Chimhundu argumenta:

O que os europeus realmente fizeram quando eles dividiram a África foi efetivamente parar os movimentos perpétuos de grupos de pessoas. O resultado foi congelar os mapas linguísticos geopolíticos e etnopolíticos que os próprios europeus criaram por suas próprias regras durante os estágios iniciais do domínio colonial. Linguistas e historiadores africanos precisam olhar para esses mapas novamente (CHIMHUNDU, 1985, p. 89[33]).

Stroud (2001), discutindo sobre a falta de ajuste entre a construção da língua e os ambientes multilíngues, argumenta que a construção da “língua” pode ser pouco sintonizada com as nações multilíngues em desenvolvimento. Uma construção de redes multilíngues pode ser adequada para descrever a natureza das práticas linguísticas africanas presente em contextos africanos. Os falantesafricanos“movimentam-sedentro, entre, eatravésdemuitas práticas semióticas diferentes, exibindo práticas múltiplas e variadas de uso da língua, como o cruzamentolinguístico e os registrosmistos” (STROUD, 2001, p. 350). O interesse na problemática da natureza da língua tem implicações em outras áreas da sociolinguística, como nos Direitos Humanos Linguísticos, em que alguns dos discursos sobre direitos parecem tratar a língua como tendo uma validade ontológica independente dos discursos nos quais estão embutidos. O significado de “língua” e sua importância são fortemente contestados como consequência das posições ideológicas divergentes e conflitantes, e a palavra “língua” é usada em vários sentidos, sendo que não é óbvio que os sentidos sejam compatíveis entre si. A língua é entendida como:

Fenômeno natural, o objeto da ciência, um tipo de faculdade, um tipo de sistema, como comportamento voluntário, como algo usado, como algo ensinado e aprendido, como tendo elementos aprendidos, como tendo padrões, como algo falado, ouvido e aprendido, como algo processado, como algo conhecido e estruturado, como algo produzido e compreendido como dados (YNGVE, 1996, p. 10[1]).

Não está claro que cada uma das noções de língua acima mencionadas complementa as noções de direitos linguísticos. Stroud (2000) tenta resolver a natureza problemática da noção de língua, propondo a noção de “cidadania linguística”. Trata-se de um enquadramento potencialmente útil, uma vez que permite que o autor redefina a língua enfatizando como ela, com seus significados e significância, é muito mais um objeto restringido e contestado, um resultado sócio-histórico de debates, legislação, ideologias divergentes e conflitos. A ideia de cidadania linguística é um poderoso corretivo que desafia o domínio esmagador de uma visão estruturalista da língua, uma visão que tem um impacto poderoso em como as línguas africanas são imaginadas. Se a nossa imaginação da sociolinguística africana é organizada em torno de línguas discretas, contáveis, unitárias, acabamos evocando uma imagem distorcida da diversidade linguística africana (BRETON, 2003, p. 204[34]), que pode nos levar a formular políticas linguísticas impróprias.

4. Construindo a Indigeneidade

Mudimbe, em “A invenção da África” e, posteriormente, em “A ideia de África”, argumenta convincentemente que a ideia da África é uma invenção (MUDIMBE, 1994[35]). O autor afirma que a invenção foi feita através da implantação de uma série de tropos conceituais eurocêntricos e de discursos, que começam com as narrativas gregas sobre a África, passando pela antropologia e os discursos missionários, até a filosofia. A África estava, portanto, sendo imaginada e incorporada em discursos estrangeiros e, mesmo que a ideia da África como uma invenção tenha sido difundida nos estudos africanos, as línguas indígenas foram tratadas na linguística africana como se fossem primordiais. Esse tratamento gerou grandes implicações políticas em que o objetivo dos projetos políticos foi a promoção das chamadas “línguas indígenas”.

Nesta seção, argumentaremos que as maneiras como as línguas indígenas foram construídas são uma invenção, cujo processo não se restringe à era colonial, como demonstra a construção do chiChewa, em Malawi, e do Runyakitara, em Uganda. Bernstein (1998[36]) mostra como Runyakitara era considerada uma única língua durante o auge do reino de Buganda, tendo sido mais tarde, com o advento dos missionários, dividida em duas. No período inicial, após Uganda ter conquistado sua independência na década de 1970, a língua Runyakitara foi novamente subdividida em quatro idiomas separados. Atualmente existem esforços para reduzi-la a uma única língua! A história do Runyakitara ilustra como uma única língua é transformada, primeiramente de uma em duas e, posteriormente, em quatro e, num outro momento, vive um movimento de retorno à língua única novamente (BERNSTEIN, 1998[36]).

O conceito de línguas indígenas é um dos principais tropos através dos quais a sociolinguística africana é narrada e imaginada. Sua importância é evidente em como esse conceito é frequentemente evocado para conduzir decisões sobre política e planejamento linguísticos na África. Em termos de planejamento linguístico, quando os países africanos decidem oficialmente sobre as suas políticas de língua, normalmente selecionam dentre as três opções seguintes:

1. optar por uma língua colonial;

2. optar por uma língua ex-colonial;

3. optar por uma combinação de línguas indígenas e ex- coloniais.

O objetivo principal deste artigo não é debater se o inglês pode ou não ser definido como uma língua colonial, embora isso pareça ser uma questão interessante. O que pretendemos é argumentar que a oposição entre o inglês e as línguas africanas – frequentemente construída como só envolvendo a língua colonial e as línguas indígenas– é conceitualmente uma proposição falha e historicamente insustentável. Isso porque as chamadas línguas indígenas são elas próprias invenções coloniais. O conceito de línguas indígenas é uma resposta pós-colonial a variedades de línguas emergentes como consequência do envolvimento da África com o colonialismo. As línguas indígenas são, portanto, um prisma pós-colonial através do qual a África pré-colonial é imaginada.

Paradoxalmente, as línguas que são definidas como indígenas na África pós-colonial foram construídas como não autênticas durante a era colonial por missionários, seus assistentes africanos, administradores coloniais e pelos próprios africanos locais. Por exemplo, os africanos referiram-se à versão do chiShona, usada no sistema educacional, como chibaba, a língua dos sacerdotes, sendo “baba” o termo usado para se referir ao padre. Os padres foram ainda mais francos sobre a “não autenticidade” das línguas indígenas, referindo-se a chiShona como um idioma jesuítico (RANGER, 1995[37]). São essas línguas indígenas, e não o Inglês, que foram enquadradas como línguas coloniais pelos africanos escolarizados (RANGER, 1995[37]).

O processo de invenção não se restringiu à África colonial, mas integrou o processo geral do colonialismo britânico. A visão expressa por Breckenbridge e Van der Veer (1993[38]) sobre a questão indiana pode ser aproximada das experiências africanas: “As várias línguas chamadas ‘nativas’ são produtos de uma intrincada dialética entre projetos coloniais de conhecimento e formação de distintas identidades de grupo” (BRECKENBRIDGE; VAN DER VEER, 1993, p. 6[38]). Na África Austral, investigações sócio-históricas de línguas como Tswana, Zulu, Xhosa, Tsonga e Ndau foram recentemente refeitas por conta da necessidade de desinvenção e re- constituição (MAKONI, 1998, 2003[30,39]; COOK, 2001[40]; MACGONAGLE, 2001[41]). O processo de invenção, ao contrário da maioria das outras situações de padronização linguística, não consistiu em converter um continuum linguístico em línguas distintas, mas sim em criar efetivamente línguas “ideais” (ECO, 1995[42]), que refletiam mais uma epistemologia europeia do que a prevalência das realidades sociais locais (HARRIES, 1995[43]). Essa criação resultou na produção de línguas que não eram línguas maternas de ninguém, ou seja, as línguas africanas inventadas possuem sua socio-gênese como segunda língua. No Zimbábue, por exemplo, a criação de regras gramaticais (divisão de palavras) e ortográficas complexas fazia parte da harmonização do chiShona, conforme Clemente Doke (1931[44]). O comitê da língua chiShona e Fortune (1972[45]) produziu um tipo de chiShona que ninguém usava fora do contexto dos exames (aqueles que usavam, provavelmente o faziam como uma segunda língua e não como primeira).

O processo não foi o de simplesmente reduzir as formas de fala africanas, mas, nos termos felizes de Harries (1981, p. 87[46]), de “compilar” um inventário de formas linguísticas e regulamentação de significados através da produção de dicionários. Por exemplo, os missionários suíços criaram uma língua chamada Tsonga como uma “língua franca para um assombrosamente confuso pout-pourri de refugiados de toda parte do sudeste colonial da África, que não compartilhava qualquer língua comum e viviam em aldeias dispersas independentes umas das outras” (HARRIES, 1987, p. 29[47]). O tsonga é falado atualmente no norte e no leste de Transvaal, na África do Sul, e na parte sul de Moçambique. As pessoas que ocupavam essas regiões não viviam em uma realidade social e linguística coesa, pois eram refugiados de uma série de revoltas políticas locais decorrentes das guerras civis de Gaza, na década de 1860, além da presença dos refugiados Shakan (daí a afirmação de Harries sobre o pout-pourri de refugiados).

Após a compilação do inventário linguístico, atualmente conhecido como Tsonga, este foi posteriormente reintroduzido para que, aquilo que originalmente era uma mistura linguística heterogênea, obtivesse uma aparência linguística coerente. O termo Tsonga é Zulu em sua origem e significa literalmente “povos conquistados”. Os habitantes dessa região geográfica, por questões práticas, foram compelidos a se apropriarem da língua indígena atribuída a eles. A questão importante a se enfatizar aqui é que os missionários, através de sua orientação positivista quanto à língua, não conseguiram perceber que os inventários linguísticos, assumidos mais tarde como línguas fruto de construções humanas, não eram cientificamente objetivos. “Ao contrário de micróbios ou de foz de rios, o Ronga e as línguas Thonga/Shangaan não estavam aguardando para serem descobertas; elas eram, acima de tudo, uma invenção de estudiosos europeus e, talvez, até mesmo de seus assistentes africanos” (DWYER, 1999[48]). Os inventários compilados, que foram posteriormente transformados em línguas, serviram para moldar as línguas orais, particularmente para aqueles que deveriam ser educadosinicialmenteatravésdaslínguasindígenas. Historicamente, o inventário compilado chamado Tsonga era composto por três dialetos distintos que participaram de seu desenvolvimento.

A compilação do inventário era parte de uma hegemonia imperial, uma tentativa de controlar e conduzir as realidades africanas a fim de que se adequassem à epistemologia europeia (HARRIES, 1981, p. 410[46]), dentro de um contexto criado no qual a apropriação descritiva poderia se tornar um caminho para a imposição linguística (FABIAN, 1986[17]). Perguntamos: Os missionários administradores coloniais e seus colaboradores conseguiram ter sucesso em moldar as realidades africanas conforme a lógica europeia? A resposta é não. Até mesmo a hegemonia tem seus limites, como afirma Said, baseado em um contexto diferente:

[...] a realidade não está nem à disposição do domínio indivíduo (por mais poderoso que seja), nem necessariamente participa das mentalidades de algumas pessoas e não de outras. A condição humana é composta de experiência e interpretação, e essas nunca podem ser completamente dominadas pelo poder; elas também são de domínio comum dos seres humanos na história. (SAID, 2003, p. 136[49]).

O processo de criação de “novas” versões de línguas africanas implicava não só o desenvolvimento de uma ortografia, mas a organização de regras gramaticais e palavras reguladoras através da lexicografia. “Uma vez estabelecidas, as regras gramaticais foram apresentadas como que funcionando com autonomia. Suas origens feitas pelo homem foram esquecidas e foram concebidas como dados operando de acordo com as leis da ciência” (HARRIES, 1995, p. 156[43]). De acordo com Irvine, por causa de pressões acadêmicas quanto à objetividade na ciência linguística, o caráter pessoal ou socialmente situado de autores e falantes desapareceu – ou “foi desaparecido” – da análise linguística africana, tanto no nível do falante quanto no nível linguístico, em busca de uma ciência de língua, a reboque das condições do sistema imperial (IRVINE, 2001, p. 87[50]). Sob a perspectiva construtiva, o perigo de apagar a natureza social situada da construção do conhecimento reside no fato de que um fenômeno linguístico construído assume status ontológico independente dos analistas e produtores. O conhecimento construído é apresentado como natural e o conhecimento colonial é admitido como conhecimento oficial (PRAH, 1999[51]).

Da perspectiva dos missionários e administradores coloniais, eles possuíam o “Tsonga” e usavam seu controle e influência sobre o estado colonial para promover suas versões de línguas africanas em colaboração com africanos educados pelos religiosos. O monopólio sobre a publicação de livros – mantido primeiramente pela missão e depois pelo governo – determinava o que os africanos liam. Na linguística colonial aplicada, assim como na antropologia e no folclore, os africanos eram leitores, consumidores de textos (YANKAH, 1999) e, geralmente, não se esperava que fossem autores (IRVINE, 2000[29]), mas sim nativos complacentes (SAID, 2003, p. 172[49]).

A alfabetização impressa foi ensinada para que os africanos pudessem ler a Bíblia, não para que escrevessem livros de própria autoria, podendo, os africanos, ser tradutores, intérpretes ou copistas. Eles poderiam oferecer sermões orais para companheiros africanos (sob supervisão), mas não poderiam proferir sermões para europeus, ou exercer autoridade sobre eles (RANGER, 1995[37]; IRVINE, 2001[50]). Quando os africanos posteriormente tornaram- se escritores, produziam suas obras inicialmente baseados em pressupostos epistemológicos coloniais. Por exemplo, usando línguas e dialetos inventados, os africanos produziam o passado e a história tribais (RANGER, 1995, p. 15[37]). Os europeus tentaram moldar a forma como os africanos conceituaram a si mesmos articulando a visão de mundo europeia através de formas linguísticas africanas, em processo análogo ao que Franz Fanon (1967[52]) chamou de “Pele negra, Máscaras brancas”.

5. Dicionários como Discurso e como uma Teoria das línguas africanas

A noção de dicionário como “discurso” é incomum porque contraria suposições sobre dicionários e línguas. Os dicionários são amplamente considerados como um tipo de lista ou listagem cujos princípios organizacionais diferem substancialmente do discurso habitual (DE BEAUGRANDE, 1997[53]). A discrepância recua, no entanto, se definirmos o discurso não como um artefato da linguagem, baseado no modelo da conversa cotidiana, mas como um evento comunicativo entre os participantes. Nós mudamos nosso foco de artefatos tangíveis de papel e tinta, para compilação e uso de dicionários como situações comunicativas que ocorrem sob circunstâncias específicas (DE BEAUGRANDE, 1997[53]; BENSON, 2001[54]). Na África, a produção de dicionários deve ser entendida dentro de um contexto mais amplo de colonialismo, neocolonialismo e supremacia da elite negra.

O desenvolvimento da lexicografia em linguística aplicada africana tem sido impulsionado pelo cristianismo, pela expansão colonial e pela antropologia, tornando qualquer discussão na linguística aplicada africana sobre o imperialismo político uma impossibilidade intelectual. Recentemente, a lexicografia tem sido impulsionada por desenvolvimentos na linguística descritiva, especificamente na linguística de corpus (PRINSLOO; DE SCHRUYVER, 2001, 2003[55,56]), aqualtemlançadoprojetoslexicográficos ambiciosos. Dados de corpora foram desenvolvidos para, pelo menos, 15 idiomas diferentes, incluindo Ciluba, Swahili, ChiShona, isiZulu e isiXhosa.

A maioria dos primeiros dicionários em línguas africanas eram bilíngues. Por exemplo, um dos primeiros dicionários (publicados antes do famoso dicionário de inglês Johnson) era um dicionário quadrilíngue composto por italiano, latim, espanhol e kiKongo (1650). Outros dicionários bilíngues significativos foram o Biehler, de inglês/chiswina (1927[58]), o dicionário de shona (Biehler, 1950[57]), e um dicionário Zulu/Kaffir (1953). O dicionário lexicográfico tem se tornado cada vez mais monolíngue e a mudança de dicionários bilíngues para dicionários monolíngues é explicada pelo fato de a maioria dos dicionários bilíngues ter sido baseada em línguas europeias, sem contar que a lexicografia bilíngue criou um espaço que permitiu aos europeus exercerem autoridade sobre as línguas africanas. Os dicionários monolíngues permitiram que acadêmicos africanos exercessem autoridade para “responder”. Em um contexto intelectual em que o bilinguismo é celebrado, é impossível resistir à tendência de se vilanizar o monolinguismo. Torna-se necessário tomar conhecimento das estratégias intelectuais que os pesquisadores estão buscando para que seja evitada uma celebração acrítica do bilinguismo. Uma mudança de dicionários bilíngues para monolíngues está se posicionando contrariamente a um passado em que as relações entre o conhecimento africano e a erudição ocidental tem sido radicalmente reconfigurada. Ranger fez uma observação astuta sobre o assunto:

[...] Na África e na Ásia contemporâneas estudiosos expatriados tem que aceitar a parceria ou o aprendizado como condição de fazer pesquisa como parte de um esforço de substituir antigas relações coloniais de dominância (RANGER, 1995, p. 272[37]).

A ousadia de insistir que os estudiosos ocidentais sirvam de aprendizes aos estudiosos africanos, como um pré-requisito para a realização de pesquisas, está ocorrendo em um contexto no qual, paradoxalmente, poderosas agências financiadoras exercem uma influência sobre a agenda intelectual africana de forma mais poderosa do que nas décadas anteriores. Linguistas africanos aplicados, assim como outros intelectuais africanos, estão preocupados que suas agendas estejam em perigo de “serem domesticadas” (HYDEN, 1993, p.252) por pessoas de fora, as quais, em sua maioria, não têm empatia com seus dilemas. Porque não podem sempre se representar, os africanos continuam se vendo através das lentes de outras pessoas, de outras imagens e de um idioma intelectual externo. A apreensão que estudiosos africanos sentem tem que ser entendida dentro de um contexto no qual a maioria do que o Ocidente sabia sobre o mundo não-ocidental enquadrava-se em uma estrutura colonial e abordava os sujeitos africanos com uma postura dominante. Essa posição de dominância é que estudiosos africanos estão tentando desafiar, ao insistirem em fazer do aprendizado investigativo uma pré-condição para o envolvimento dos europeus em África.

Os dicionários durante o período colonial integraram um proces- so que incentivava os africanos a internalizar a epistemologia euro- peia sobre si mesmos, criando uma nova visão sobre seus assuntos atuais e sobrepondo novos valores ao seu passado (MAKONI, 2003, p.142[39]).Esses dicionários inventaram relações novas e ideologicamente orientadas entre palavras e significados, atribuindo significados europeus às palavras africanas. A internalização da epistemologia europeia na educação dos africanos resultou em africanos rurais e escolarizados incapazes de se relacionarem prontamente com suas visões do mundo, embora falassem ostensivamente a “mesma” língua.

Diante dessa realidade, os dicionários no período colonial funcionavam como um exemplo perfeito do Panopticon de Bentham (FOUCAULT, 1977[59]). Uma análise de dicionários escritos entre 1890 e 1931 na Rodésia do Sul (atual Zimbábwe) demonstra o papel dos dicionários no fornecimento de importantes lentes epistemológicas e foucaultianas através das quais as sociedades africanas foram observadas, pesquisadas e controladas. Hartman, em seu dicionário de 1983, traduz a palavra “cavalheiro” como murungu, que no Shona vernacular se refere a brancos, implicando, dessa forma, que as únicas pessoas que poderiam ser senhores, “cavalheiros”, eram os europeus. Aliás, um século depois do dicionário de Hartman (1983[60]), Mawadza (2000[61]) e Mashiri (2003[62]) mostram que o Shona urbano ainda carrega os mesmos significados que aqueles inventados pelos europeus nas formações de significados das palavras africanas.

O controle colonial, preocupado em aumentar a receita financeira através do trabalho assalariado, impôs, por vezes, impostos sobre os africanos, e aqueles que se recusassem a se envolver com o trabalho assalariado eram tratados como preguiçosas ou desonestas. O “Espírito Santo” foi traduzido em Shona como mudzimu unoyera. Mudzimu na cosmologia africana refere-se ao espírito do falecido. Outros dicionários foram mais além, ao definirem “Deus” como mudzimu, uma interpretação imprecisa mesmo a partir de uma perspectiva africanista, pois mudzimu é um intermediário e não um ser final.

Jeater descreve de forma apropriada o que ocorreu no processo de incorporação da epistemologia e cosmologia europeias nas línguas africanas:

Encontrar uma palavra para deus ou pecado ou espírito em um vernáculo local, sem que causasse dano ao conceito entendido pelos cristãos, consistiu em um método poderoso ao forçar os missionários a pensar profundamente sobre as ideias espirituais daqueles que eles pretendiam converter, a fim de identificar pontos de conexão ou pontos de entrada entre as duas cosmologias. Os missionários não apenas recriaram as línguas em sua forma textual, tomando decisões sobre a fonética, a ortografia e a divisão de palavras com base nas línguas europeias. Eles submeteram os vernáculos à sua vontade fazendo com que operassem coisas novas. Os projetos linguísticos foram importantes não apenas porque ajudaram os missionários a conversar com os africanos, mas porque lhes permitiram apropriarem-se das línguas africanas, para reinventá- los dentro da tradição cristã (JEATER, 2000, p. 457[63]).

Uma análise dos dicionários coloniais demonstra que houve um esforço sistemático para desviar palavras africanas para expressar visões epistemológicas europeias. Ao contrário de outros estudiosos africanos (MAZRUI; MAZRUI, 1998[64]), estamos argumentando que as imagens coloniais estão secretamente inscritas nas chamadas línguas indígenas. O argumento de que as línguas indígenas foram obrigadas a incorporar significados europeus tem implicação evidente sobre como as relações entre “significante” e “significado”, dentro dessas línguas indígenas, podem ser conceitualizadas. Do ponto de vista dos produtores dos dicionários coloniais, as relações entre significante e significado eram claramente não arbitrárias, mas motivadas socialmente.

Um conjunto diferente de reivindicações está sendo feito a respeito de dicionários concebidos em corpora eletrônicos. A compilação e a consulta de corpora eletrônicos se tornaram condição sine qua non como base empírica para as investigações linguísticas contemporâneas (PRINSLOO; DE SCHRYVER, 2000, p. 89[65]). Ao considerar seriamente as sugestões de alguns dos principais protagonistas da linguística de corpus e da lexicografia, nós indagamos a respeito de algumas das reivindicações da linguística de corpus como um tipo de discurso do dicionário. Os corpora eletrônicos aspiram construir materiais que sejam representativos e balanceados de dados autênticos e não inventados.

Os termos “análise autêntica”, “representativa” e “balanceada” são utilizados em relação ao corpus linguístico do inglês, embora tenham sido fonte de muita controvérsia (SINCLAIR, 1991[66]; MCCARTHY; CARTER, 1995[67]; DE BEAUGRANDE et al., 2001[68]; WIDDOWSON, 2000[69]). Esses termos são potencialmente etnocêntricos, uma vez que foram realizadas muitas pesquisas em corpora em inglês. As conceituações sobre os corpora em inglês estão involuntariamente sendo impingidas em corpora de outras línguas (MAKONI; MEINHOF, 2003[70]) e essa hegemonia está sendo definida aqui como uma imposição dos discursos associados ao inglês sobre as línguas da África. O perigo das relações hegemônicas não é apenas a imposição involuntária de discursos sobre o inglês nas línguas africanas, mas as nuances dentro de discursos sobre o inglês, despojados de complexidade quando transferidos para outras línguas.

O discurso dos dicionários evoca a ideia de que existem textos que compõem os corpora nos quais os dicionários são baseados como “representativos” do idioma em uso. O corpus é, portanto, apresentado como representante da língua em uso, quando é, na realidade, uma coleção de textos, um vocabulário magno, que forma a base dos dicionários e que não pode ser representativo de qualquer língua porque não constitui o vocabulário de qualquer falante nativo. Se os dicionários forem baseados em “textos” contidos e reunidos em um corpus, então os significados são derivados dos textos e não diretamente da língua em uso, porque em uma ecologia escrita, as línguas são “medidas por recolhas oficiais” e não pelo seu uso habitual. O vocabulário magno, como o contido nos dicionários, tem um status de autoridade e enraíza uma tendência prescritiva dentro da língua.

A falta de nitidez na distinção entre o conceito de língua, como normalmente é usado, e de língua como resultado de uma coleção de textos, consiste em um artefato linguístico denominado Texto Autônomo (TA), no qual o significado é codificado como um texto, e nenhumaoutrainformação é necessária parasua interpretaçãocomo, por exemplo, quem é o falante, a quem ele está se referindo (quem mais pode estar ouvindo, a condição do falante etc.). Os TAs são normalmente usados para codificar e decodificar proposições bem como para comunicar informações factuais, e o que mais se aproxima de uma linguagem TA propriamente dita é a forma escrita, uma vez que as formas faladas são derivadas. Em idiomas não naturais, se existirem, a língua em corpora não pode ser lida como exemplo de uma língua autêntica, mas como um artefato de uma língua.

O desenvolvimento da metalinguística é necessário por ser difícil separar o nosso conhecimento das línguas africanas das categorias usadas para descrevê-las. Em outras palavras, é difícil manter uma distinção clara entre língua sob descrição de uma língua de descrição, ou manter uma distinção entre língua e metalinguística (HARRIS, 1981[46]). Se uma língua não pode ser separada com sucesso de sua metalinguística, a qual, no caso africano, chegou até nós via latim, isso significa que estamos olhando para as línguas africanas através do prisma do inglês. Consequentemente, as línguas africanas, em tais contextos, não podem ser comparadas ao inglês ou francês. Se o objetivo do planejamento linguístico é promover as línguas africanas de modo que elas sejam consideradas iguais ao inglês, então a intervenção tem que ocorrer em um nível analítico, em termos de como interpretamos e enquadramos as línguas africanas (MAKONI; PENNYCOOK, 2006; MAKONI; PENNYCOOK, 2012[71]).

6. Rumo à desinvenção e reconstituição das línguas africanas: ordens espontâneas

Um dos proponentes mais articulados do multilinguismo africano foi Neville Alexander (1998, 2000[72,73]) que, entre outras coisas, vê o multilinguismo africano como um recurso que, numa visão resumida em seu giro retórico astuto, vira a “Torre de Babel” do avesso ao falar não sobre a torre, mas sobre o poder de babel. A metáfora das línguas indígenas como um recurso não ganhou muita adesão das pessoas, em nome de quem essa metáfora estava sendo utilizada. Argumentar, por exemplo, que a língua, que não se fala nem compreende, é um recurso faz sentido se alguém assina uma noção de propriedade universal dos recursos. Do ponto de vista daqueles que falam a língua, no entanto, soa estranho insistir que alguém tem direito a uma língua que nem sequer fala e que, inclusive, não tenha, eventualmente, intenção de aprender. A propriedade universal, nesses casos, pode ser interpretada como uma estratégia para esconder o controle dos recursos do mundo, incluindo a língua, por um pequeno, mas poderoso, grupo de pessoas no mundo globalizado.

Apesar de sermos críticos da visão pluralista do multilinguismo presente na língua como uma metáfora do recurso, nós admitimos que o multilinguismo na África tem, até certo ponto, conseguido forçosamente chamar nossa atenção para o impacto potencial benéfico das línguas africanas na educação, saúde e na economia. O argumento multilíngue também nos chamou a atenção para o fato da aquisição e uso do inglês não ser, necessariamente, uma panaceia para os desafios sociais e educacionais africanos. Infelizmente, o argumento multilíngue possui limitações severas aparentes em sua falha em ganhar a adesão das camadas urbanas pobres da população africana que ao invés da retórica das línguas indígenas como recurso, estão se afastando dos chamados recursos em direção ao vernáculo urbano (COOK, 2001[40]; NGOM, 2005[74]; MUFWENE, 2002[75]).

Apesar do modo como o multilinguismo aumentou a nossa compreensão da situação linguística na África, a construção epistemológica da língua em contextos multilíngues no continente é questionável. A questão não é apenas epistemológica, mas tem efeitos reais na medida em que a maneira como as línguas são construídas provoca um impacto sobre as circunstâncias materiais da vida dos africanos. Em primeiro lugar, em que sentido a África é uma Torre de Babel? Em um grande projeto pan-africano, Prah (1999[51]) desafia diretamente a ideia de uma Torre de Babel baseada nos argumentos de Alexander. Ele explica que mais de 80% dos africanos não falam mais de doze línguas ou grupos linguísticos, nos quais 855 línguas são mutuamente inteligíveis. Isto não deixa claro, entretanto, os critérios que ele usa para determinar o que constitui uma língua. As suposições feitas por Prah são também questionáveis uma vez que o autor baseia seu argumento na crença de que as línguas são mutuamente inteligíveis como se fossem coisas animadas, tendo vidas próprias (YNGVE, 2004, p. 29[2]).

Kwesi Prah está conscientemente definindo os africanos a partir de estruturas ocidentais de língua, sucumbindo à poderosa crença na existência de línguas africanas como entidades no mundo real. Partindo desse pressuposto das línguas africanas, o principal objetivo da seu projeto de pesquisa é melhorar a descrição linguística, o que não resolve os problemas sociolinguísticos da África, uma vez que, assim agindo, as línguas consistem em uma ilusão ocidental imposta aos contextos sociolinguísticos africanos. Prah está, portanto, tomando como certo os blocos linguísticos que sua teoria deveria criticar. Ele sucumbiu às hipóteses filosóficas ocidentais dos séculos XVIII e XIX sobre a língua e, consequentemente, não questiona a validade do conceito de língua e nem, por extensão, de outros construtos frequentemente usados em uma descrição de línguas africanas, tais como fonemas, fonologia, palavras, gramáticas etc. Se a linguística africana quiser fazer progresso, portanto, não precisa de melhores descrições, mas de melhores perguntas sobre a base de muitos dos conceitos que estamos usando. A crítica é necessária porque “enquanto físicos estudam objetos do mundo real dados antecipadamente, a linguagem não é um objeto dado antecipadamente que possa ser estudado cientificamente (YNGVE, 1996, p. 69[1]).

O ponto de partida para um projeto de desinvenção deve levar em conta as misturas e não as línguas indígenas, bem como a capacidade dos africanos de aproveitar o material linguístico de diferentes sistemas sociais/linguísticos para se comunicar, o que, segundo Comaroff e Comaroff (1991[76]), apesar de estar sendo amplamente relatada, não é algo novo. Essa era uma característica do comportamento social e linguístico da África, mesmo no período pré-colonial. A mistura é, portanto, socialmente incorporada nas experiências sociais, históricas e contemporâneas, das línguas africanas.

Se os africanos estão mudando de línguas indígenas para vernáculos urbanos, é uma contradição argumentar que a promoção das línguas indígenas facilita a retenção de práticas culturais africanas. Um projeto de desinvenção tem que abordar os fatores que facilitam essa mudança para vernáculos urbanos e explorar as implicações da mudança em projetos de planejamentos linguísticos. A mudança não é necessariamente algo ruim, se as línguas indígenas estão associadas a etnias específicas e conservam ideologias sociais e políticas, enquanto, por outro lado, os vernáculos urbanos são uma “personificação da identidade híbrida dos habitantes das cidades (...) onde pessoas de diferentes etnias e origens religiosas podem ser unificadas” (NGOM, 2005, p. 284[74]). Os vernáculos urbanos são também usados em comunidades rurais, por pessoas que procuram projetar uma identidade urbana, fato que mostra a importância de combinar as histórias sociais urbanas e rurais na África, uma vez que muitos africanos moram em ambos os lugares simultaneamente. Isso sugere que as distinções entre “rural” e “urbano”, indígenas e modernos, podem não ser formas muito produtivas de lidar com a sociolinguística africana (COQUERY-VIDRVOTICH, 2005[77]; COOK, 2001[40]).

Outra grande vantagem do uso dos vernáculos urbanos como uma base para o projeto de desinvenção é o uso desses vernáculos de forma extensiva pela juventude urbana africana, a qual constitui comunidade majoritária, na maioria dos países africanos e, por isso, a língua que eles usam se espalha rapidamente para o resto da população (SALM; FALOLA, 2005[78]). Do ponto de vista historiográfico crítico, é importante ressaltar dois fatores. As cidades da África sempre desempenharam um papel crucial na formação de novas etnias e línguas na linguística sócio-histórica da África. Swahili é o melhor exemplo de uma língua da cidade que nasceu muito provavelmente antes de alguma invenção de línguas indígenas, uma consequência do colonialismo (COQUERY-VIDROVITCH, 2005[77]).

A maioria dos projetos de planejamento linguístico na África baseia-se na noção de Estado e precisamos ir além de um Estado centrado na perspectiva do planejamento linguístico. Isso significa que estamos nos afastando da perspectiva daqueles que estão representando o Estado, ou a política linguística, para aqueles que são sujeitos atuantes na sociedade (WILLIAMS, 1992, p.178). Enquanto o Estado e os linguistas podem enquadrar seus discursos em termos de língua, os não-linguistas podem enquadrar suas atividades em termos de comunicação. Em um projeto de desinvenção, argumentamos que a maioria dos sujeitos da política linguística é susceptível de participar de redes sociais que se estendem também às comunidades rurais.

É importante nos afastarmos das orientações estatocêntricas, pois muitos Estados são disfuncionais, enquanto as cidades constituem importantes centros de energia social e política na África. “As cidades, na maioria das vezes, existem como pontos de partida ou incorporadas a uma rede de caminhos, estradas, ferrovias, rios, que interligam outras cidades que chamamos, em francês, de tecido urbano” (COQUERY-VIDROVITCH, 2005[77]). As cidades têm uma longa e complicada história na África, sendo que algumas antecedem o colonialismo. A primeira revolução urbana em África ocorreu quando as sociedades caçadoras pré-históricas se tornaram fixas em seus territórios, o que permitiu a agricultura doméstica. “As cidades tornaram-se centros multiuso desde o início. Este foi o caso de Jenne- Jeno, no vale do rio Níger, no alvorecer do século 1”(COQUERY- VIDROCITCH, 2005, p.17[77]).

Um programa de desinvenção tem que ser capaz de levar em conta as realidades históricas e contemporâneas que descrevemos acima como ponto de partida, em vez de aceitar suposições sobre a promoção de línguas indígenas com base na crença de que estão sendo promovidos fenômenos unitários e distintos com realidades objetivas, ao invés de construções distorcidas (GARDNER- CHLOROS, 1995[79]). Uma visão das línguas indígenas como construtos unitários é parte de um legado da construção de línguas africanas no século XIX, que tem o efeito de reificar as línguas (ERRINGTON 2001[25]; WILLIAMS, 1992), o que leva a uma necessidade de reformulação de estratégias ineficazes para corrigir as desigualdades existentes. Isso porque o status social dos falantes das línguas ou variedades linguísticas é interpretado a partir da própria língua, oi invés da condição social própria daqueles que falam a língua (WILLIAMS, 1992). Se o status for atribuído à língua ao invés de ser atribuído aos falantes, a estratégia lógica, embora errada, seria mudar o status das línguas para, assim, mudar o status dos falantes dessas línguas.

Estamos argumentando que mudanças no status dos falantes de determinada variedade linguística muito provavelmente contribuirão para uma mudança no status da língua falada por esses indivíduos. O contrário não necessariamente se aplica, ou seja, uma mudança no status da língua não resulta necessariamente na mudança do status de seus falantes. Teoricamente, estamos, portanto, defendendo uma Linguística africana que procura explicação baseada nas pessoas: quem são, onde vivem, sua migração e assim por diante (YNGVE, 1996[1]). Poderíamos dizer que estamos interessados em como as pessoas se distinguem umas das outras pela forma como elas falam em diferentes partes do mundo, e como nós nos diferimos na maneira como falamos das gerações anteriores. Tudo isso seria facilmente compreensível peo público em geral e por nossos novos alunos: podendo ser dito sem referências obscuras à língua (YNGVE, 1996, p.73[1]). Se o nosso argumento é válido, então a falha do movimento multilíngue na África, frequentemente lamentada por muitos estudiosos, deve ser bem-vinda porque os defensores do multilinguismo, inadvertidamente, procuraram continuar uma tradição top-down do pensamento colonial, que não leva em conta as perspectivas daqueles que são os alvos das políticas. Diante do exposto, embora a pesquisa sociolinguística ortodoxa na África provavelmente descreva os africanos como multidialetais/ multilíngues, achamos que a noção de repertório verbal seja mais apropriada porque as formas de fala que os indivíduos usam podem ser extraídas de línguas que o falante pode usar, ainda que não tenha comando completo e abrangente sobre elas.

7. Dos repertórios verbais ao sistema “D” e às ordens espontâneas

Como conclusão, argumentamos que é necessária uma abordagem do Sistema “D” para as práticas de linguagem. O termo Sistema “D” é uma gíria, na África e no Caribe com raízes francófonas, oriunda da palavra débrouillards, usada para descrever pessoas eficazes, auto motivadas, engenhosas e criativas. Um termo que toma como premissa básica a ideia de que todo ser humano é um especialista em sua própria existência, consistindo em um enquadramento a partir do qual se desafiam as noções de status do especialista, reduzindo o potencial tirano da sua sabedoria colonial. Metodologicamente, no sistema “D” cada indivíduo viaja uma jornada sociolinguística única e não há dois indivíduos com trajetórias sociais idênticas, sendo que tais jornadas fornecem à pessoa capital social, econômico e cultural. Daí a importância da construção de uma perspectiva histórica para a análise de cada prática linguística individual.

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