Migrações e refúgio: abordagens discursivas

Glaucia Muniz Proença Lara,
Marluza da Rosa,
Isabelle Tauzin-Castellanos

Resumo

Apresentação do dossiê "Migrações e refúgio: abordagens discursivas"

Introdução

O senso comum define “migração” como a realocação de indivíduos num lugar distante, ou seja, fora de seu país (ou cidade) natal. Nessa perspectiva, migrar constituiria, principalmente, um fenômeno geográfico ligado à ideia de movimento, o que, como veremos adiante, está longe de abarcar a complexidade desse fenômeno. Por outro ângulo, considerando que as migrações humanas remontam a muitos milhares de anos, devemos compreendê-las como um fato constante e maior na formação das sociedades e das culturas (LAACHER, 2012[1]; BARTRAM et al.[2], 2014; BLANCHARD et al., 2016[3]).

O migrante seria, portanto, um indivíduo que deixou seu país de origem por vontade própria ou não, tornando-se um estrangeiro no país de chegada. Essa caracterização aponta para a dicotomia emigrante (tomado do ponto de vista daquele que deixa seu país de origem para viver em outro lugar) vs. imigrante (tomado do ponto de vista daquele que entra num país para nele viver), ou seja, o emigrante (no país de partida) torna-se o imigrante (no país de chegada). Essa dicotomia desaparece em migrante, pela neutralização da oposição espacial lá/aqui (FIALA, 2018[4]).

Assim, o termo migrante passa a recobrir, de forma ampla, uma variedade de realidades que impactam as condições de vida de cada pessoa num novo país, implicando diferentes estatutos e direitos. Teríamos, assim, os refugiados, os solicitantes de asilo, os clandestinos, os exilados, os apátridas, entre outros termos (e categorias), alguns dos quais de aparição recente. Tais categorias consistem em tentativas de dar contornos ao fenômeno migratório; contudo, apenas em parte o compreendem, visto que seus sentidos deslizam entre as diversas esferas pelas quais circulam.

Sem perder de vista essa “trama semântica”, o presente dossiê, pelo seu próprio título, privilegia a oposição, mais usualmente mobilizada nos discursos públicos, entre migrante e refugiado. É importante mencionar que esses dois termos, utilizados, com frequência, como equivalentes (em domínios como o midiático, por exemplo), distinguem-se, porém: refugiado faz parte do vocabulário jurídico e, como tal, constitui uma categorização social que dá acesso a proteção, ao contrário de migrante que não dispõe de definição jurídica (CALABRESE, 2018[5]).

Assim, se o refugiado, do ponto de vista legal, é qualquer pessoa que muda de país, buscando escapar de conflitos armados, perseguições (política, étnica, religiosa etc.) ou violação de direitos humanos (Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, 1951), o migrante seria aquele que se desloca por vontade própria, mesmo que seja na tentativa de escapar da pobreza ou de buscar melhores condições de vida. Teríamos, pois, em tese, dois grandes tipos de migração: a forçada e a voluntária (BARTRAM et al., 2014[2]), que levam à distinção entre “bons refugiados” – que precisam ser acolhidos, merecendo gestos de solidariedade econômica e de proteção política, uma vez que não tiveram (outra) escolha –, e os “maus migrantes”, que devem ser recusados, porque são indesejados.

Essa distinção entre migrante e refugiado nem sempre funciona na prática, levando pesquisadores, como Akoka (2018[7]), a se perguntarem se morrer de fome não seria tão grave quanto morrer na prisão; ou se a falta de um horizonte socioeconômico não seria algo tão sério quanto a falta de liberdade política. Nessa mesma direção, Clochard (2007[6]) alega que o indivíduo que deixa seu país de origem o faz, em geral, movido por fatores complexos (e não exclusivamente, por exemplo, por razões de perseguição ou outra), o que torna difícil uma classificação rígida. Logo, o mais sensato não seria opor “migração forçada” a “migração voluntária”, mas propor um continuum em que compulsões de vários tipos podem ter um papel mais ou menos significativo em determinados fluxos migratórios (BARTRAM et al., 2014[2]).

De qualquer forma, migrar nunca é uma decisão simples na vida de quem o faz, dadas as perdas e as rupturas para aquele que se desloca para outro país, além da inevitável adaptação a uma nova realidade (língua, cultura, códigos, normas sociais etc.). Não é por outra razão que o migrante é, não raro, associado a conceitos como “entre-lugares”, “entre-línguas”, “dupla ausência”.

Como vimos, os fluxos migratórios, dada a sua longevidade, confundem-se com a própria história da humanidade. Porém, como lembra Laacher (2012[1]), se, na Idade Média, as populações se deslocavam sem grandes entraves, com o surgimento, no final do século XIX, dos Estados-nações e, consequentemente, de linhas oficiais – as fronteiras, na sua acepção moderna – para demarcar o que estava incluído ou excluído na/da nação, o que temos visto é uma imposição por parte da grande maioria de países, sobretudo os mais ricos, de regulamentos cada vez mais rígidos, visando à circulação e à admissão de pessoas em seu território. Porém, como ressalta o autor, se muitos fluxos migratórios dirigem-se do sul (menos desenvolvido) para o norte (mais desenvolvido), não se pode afirmar que todos os migrantes e refugiados fazem esse percurso, já que um número expressivo de migrantes do sul desloca-se dentro do próprio país ou para um país vizinho em vias de desenvolvimento, caracterizando as chamadas “migrações Sul-Sul”.

Quanto aos impactos dos processos migratórios, se, por um lado, o que se destaca são os custos (sociais e econômicos) dos migrantes e refugiados, sendo eles, não raro, associados ao desemprego, à criminalidade, a algo, enfim, que ameaça a identidade e a coesão nacional – o que gera atitudes preconceituosas, discriminatórias e xenófobas –, por outro, não podemos perder de vista, os ganhos que esses indivíduos representam para a nova sociedade em que se inserem como força de trabalho e como geração de recursos, sem contar sua contribuição para moldar as paisagens urbanas e enri- quecer as realidades sociais e culturais (LAACHER, 2012[1]; BLANCHARD et al., 2016[3]; PORTES, 2019[8]). Como sustenta Le Bras (2014[9]), a percepção da (i)migração como “invasão” ou como “ameaça” é uma perspectiva recente que existe na cabeça das pessoas, mas não se sustenta nos fatos.

Os aspectos destacados até aqui mostram que as migrações estão longe de ser um fenômeno meramente geográfico, visto que envolvem múltiplos e complexos fatores. Além disso, por meio delas, podemos mobilizar conceitos de várias ordens que se mostram relevantes para a análise do discurso, como os de identidade, alteridade, diferença, memória, (in)visibilidade, (in)audibilidade, hospitalidade, hostilidade, intolerância, xenofobia, glotofobia, entre tantos outros, como veremos nos artigos que compõem este dossiê.

Ora, se as migrações não são fatos novos – mas, antes, fenômenos antigos, que recebem con- tornos diferentes a cada época, sendo marcados pelo desenrolar da história – é, porém, na atualidade, sobretudo a partir do início do século XXI (duas últimas décadas), que temos assistido a um aumento bastante significativo dos movimentos migratórios como reflexo das desigualdades econô- micas mundiais e das tensões sociais e políticas que assolam o planeta, gerando uma “migração de crise” (CLOCHARD, 2007[6]). Nesse viés, pesquisadores, como Blanchard et al. (2016[3]), consideram que a Europa vem enfrentando atualmente um dos maiores fluxos migratórios de sua história contem- porânea, particularmente a partir de 2005. Se, até o início do século XXI, o “sonho americano” atraía um grande número de pessoas, os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 fizeram com que muitas passassem a preferir a Europa como destino. Na América Latina, de forma semelhante, os corredores migratórios têm tomado novos contornos e rumos, dentre outras razões, pela redefinição das políticas migratórias norte-americanas nas últimas décadas. Nesse cenário, o Brasil também tem visto aumentar seu contingente de migrantes, devido a catástrofes climáticas, como a que ocor- reu no Haiti, em 2010, ou ao acirramento de desavenças políticas, como na Venezuela, desde 2017.

Segundo dados do World Migration Report/20201, o número de migrantes internacionais alcan- çou 281 milhões em 2020, o que representa 3,6% da população mundial. Esse número é superior em 128 milhões à cifra de 1990 e mais que triplica a de 1970, mostrando que o recrudescimento dos fluxos migratórios tem sido mais evidente e rápido do que se poderia prever. Europa e Ásia são as regiões que mais acolhem (87 milhões e 86 milhões de migrantes internacionais, respectivamente), ou seja, 61% do contingente global de migrantes internacionais.

Como consequência disso, muito se tem ouvido falar, na atualidade, a respeito das práticas e políticas migratórias, que reverberam reações de acolhida e/ou de hostilidade aos migrantes e refugiados. Assim como as migrações, o “problema dos refugiados” não é recente na sociedade ocidental e assume diferentes faces, desde o pós-guerra, por exemplo, quando se formula a Convenção de Genebra (1951) e se define, em termos legais, o que é um refugiado, até a contemporaneidade, em que ser refugiado se caracteriza também como uma reivindicação identitária e política.

Nesse contexto, a temática das migrações e do refúgio tem sido amplamente debatida, notadamente, nos estudos do direito, das relações internacionais e das ciências humanas e sociais. Nos estudos linguísticos, são cada vez mais comuns as pesquisas sobre o ensino das línguas majoritárias dos países de destino enquanto línguas não maternas, línguas adicionais ou línguas de acolhida. Contudo, ainda são relativamente poucas as abordagens que se dedicam ao tema com respaldo na análise de discurso, em suas diferentes fundações teóricas e em diferentes espaços geográficos e sociais. Este dossiê remonta, então, ao lugar de entremeio da análise de discurso, que se consolida, desde sua gênese, por diálogos e duelos não só com outros campos de conhecimento, como a Sociologia, a História, a Psicanálise, mas também com teorias vinculadas ao domínio das ciências da linguagem, como os estudos da enunciação e da argumentação.

A urgência e a atualidade do tema, assim como a relativa escassez de trabalhos que o contem- plem por meio de uma visada discursiva, motivam a proposta deste dossiê, o qual busca articular abordagens que tomam o discurso como objeto de investigação, mobilizando autores brasileiros e estrangeiros de diferentes universidades e grupos de pesquisa. A principal pergunta norteadora consiste em saber que contribuições a análise de discurso (AD) pode oferecer para a compreensão dos fluxos migratórios contemporâneos por meio dos discursos que os manifestam. Isso sem perder de vista suas variadas perspectivas (a análise materialista, a análise crítica, a semiolinguística, a semió- tica discursiva, as tendências francesas em análise do discurso...), além da já mencionada interação com outras disciplinas/teorias, dado o caráter constitutivamente transdisciplinar da AD.

Com isso, reafirmando o “duplo movimento” entre linguagem/discurso e sociedade, chegamos ao terceiro elemento que compõe o título deste dossiê. Como lembram Calabrese e Veniard (2018, p. 26[10]), “o discurso é uma força viva, um componente da vida social ao menos tão importante quanto a realidade material”. Van Dijk (2015[11]), por sua vez, assume que das políticas, legislações e diretrizes aos debates parlamentares, das mídias à educação e ao ensino, tudo passa pelas diferentes formas da fala e da escrita, pelo discurso, enfim.

Elemento determinante da vida em sociedade, o discurso pode ser lido, na convergência com os estudos psicanalíticos, como forma de estabelecer laços com o outro e de intervir na realidade material. No campo dos estudos sobre as migrações, é no/pelo discurso que se constroem e desconstroem, no imaginário e no simbólico, limites e muros, fronteiras e pontes. O discurso assume ainda seu papel de prática social refletindo, mas também construindo e modificando, as representações sobre o mundo, as identidades e as relações. Nessa ótica, os artigos que compõem este dossiê reúnem pesquisas que lançam um olhar discursivo sobre as diferentes formas de migração e refúgio, sobretudo na atualidade, considerando, por um lado, a equivocidade da linguagem e dos sentidos e, por outro, a historicidade e as relações de poder-saber na constituição dos sujeitos no meio social.

Assim, como se verá, eles atravessam domínios discursivos diversos, tais como o midiático, o artístico (literário, cinematográfico), o político, o jurídico, o institucional, que fazem circular dizeres das e sobre as migrações. Contemplam ainda abordagens que se destinam à escuta do outro e às possibilidades de tomada da palavra pelos sujeitos deslocados ou em deslocamento, tais como as análises voltadas às histórias ou narrativas de vida, bem como perspectivas que contemplam e problematizam a inclusão social e linguística das populações em movimento. Além disso, discutem o político enquanto disputa de sentidos, na materialidade discursiva, motivados por sintagmas já naturalizados no cotidiano, como “refugiados” e “crise migratória”, sem perder de vista os discursos que resvalam para posições nacionalistas e xenófobas. Desse modo, trata-se de abordagens discursivas múltiplas sobre as circulações humanas que possibilitam sua compreensão não apenas como fenômenos econômicos, geográficos ou demográficos, mas, sobretudo, como acontecimentos históricos e discursivos.

O conjunto de artigos que integram o dossiê “Migrações e refúgio: abordagens discursivas” se inicia com a tradução do texto “Discursos espanhóis sobre pessoas refugiadas”, assinado por Teun van Dijk. O autor parte da revisão de estudos sobre o Refugees Welcome, movimento responsável pela acolhida de pessoas refugiadas que chegam à Europa Ocidental, para, em seguida, voltar-se para o exame de discursos parlamentares, municipais e de movimentos (ONGs) na Espanha, mais especificamente, na cidade de Barcelona, que tratam desse mesmo público. A mobilização de um quadro teórico multi-disciplinar, que combina o estudo do discurso, com questões políticas e de movimentos sociais, além de sentimentos como solidariedade e empatia, permite-lhe apreender, na comparação entre os textos selecionados, uma polarização ideológica entre nós (pró-refugiado) e eles (a União Europeia e o Estado) em todos os níveis do discurso (léxico, metáforas, normas, valores e argumentos).

Com amparo teórico semelhante e situando a problemática no âmbito latino-americano, o es- tudo “El meme como replicador de la xenofobia: una perspectiva interaccional y crítica”2, de Adriana Bolívar e Tomás Fontaines-Ruiz, dedica-se à compreensão do meme em seu poder de reverberar a violência contra migrantes; no caso em questão, contra venezuelanos. Como forma de tomada de posição ideológica, o meme, para os autores, merece ser problematizado, em razão de seus efeitos nocivos para o diálogo social, uma vez que contribui para a disseminação de preconceitos. Por meio da análise interacional e crítica proposta, Bolívar e Fontaines-Ruiz defendem que existe uma lógica xenofóbica incrustada no meme, o qual não é, portanto, um simples e inofensivo texto de humor.

Ainda na conjuntura dos países hispanofalantes, mais precisamente na Argentina, Rocío Flax, no estudo intitulado “La conceptualización de les migrantes en el discurso político argentino del siglo XXI”3, analisa o discurso político dos ex-presidentes Néstor Kirchner, Cristina Fernández e Mauricio Macri, entre os anos de 2003 e 2019. Com o olhar voltado às representações sociais construídas, nesse período, sobre a população migrante – e com o cuidado de empregar uma linguagem não sexista ao tratar dessa população –, a autora explora as potencialidades das noções de marco, metáfora conceitual e protótipo, de modo a concluir que, no discurso analisado, reforça-se o protótipo de migrante ideal, que possui como matriz as migrações de épocas passadas e que, não raro, é marcado por traços étnicos.

Deslocando a reflexão para o cruzamento entre o político e o midiático, Cécile Balty, Valériane Mistiaen, Amandine Van Neste-Gottignies e Laura Calabrese problematizam as campanhas governamentais e internacionais, destinadas a migrantes, no espaço europeu. O relatório de pesquisa, intitulado “The ‘Don’t come/Go back home” continuum: the use of storytelling in Migration Information Campaigns”4, desenvolvido na esteira dos estudos do discurso e da argumentação, expõe uma análise minuciosa de elementos lexicais e da estrutura da narrativa de duas campanhas endereçadas a migrantes. Nessa abordagem, as autoras observam uma continuidade, em que as vozes de migrantes são usadas como recursos argumentativos (dissuasivos e persuasivos) com finalidade análoga: desencorajar projetos migratórios.

Ainda no campo midiático, mas privilegiando, desta vez, o discurso jornalístico, o relatório de pesquisa de Frederico Rios Cury dos Santos, “A retórica do neorracismo no debate francês sobre imigração: análise de artigos de opinião do Le Figaro”, debruça-se sobre a conceitualização e as especificidades do que se considera um novo racismo. Por meio da análise de textos opinativos, o autor explora, dentre outras marcas argumentativas, o argumento da retorsão, que sustentaria uma “retórica diferencialista” em relação aos imigrantes, visto que a noção de raça, no contexto em discussão, tende a ser substituída pela de imigração.

No domínio literário, dois ensaios teóricos, o de Ida Lucia Machado e o de Fábio Ávila Arcanjo, abordam a figura do exilado – representada pela mulher argentina – nas obras Lucia e Em estado de memória, respectivamente. Nesse sentido, tanto um quanto o outro ressaltam as dificuldades, não só físicas como emocionais, vivenciadas pelas protagonistas ao longo dos trajetos empreendidos, descrevendo ainda a forma como cada uma delas lida com o “acontecimento” migratório.

Diz Aprile (2018, p. 109[12]) que o exilado, tomado como aquele que foi banido (nesse caso, usa-se, muitas vezes, o termo “proscrito”), ou que se distanciou (de um dado país) por vontade própria, é, não raro, associado à “ideia de preeminência moral e simbólica”, tornando-se, assim, uma “figura heroicizada”. Se por heroísmo entendermos “feitos de coragem e superação” que emergem “da problemática imposta por um ambiente ou situação adversa, cuja solução exija um feito grandioso ou um esforço extraordinário”5, veremos que as protagonistas das duas obras analisadas assumem nuances dessa “figura heroicizada”.

Assim, em seu texto “A life story forged by successive migrations: the case of Lucia”6, Ida Lucia Machado, por meio do “diálogo” entre a análise do discurso (semiolinguística), a teoria da narrativa de vida e mais amplamente a literatura, investiga os processos identitários da protagonista e narradora do romance Lucia, escrito por Olga Canllo Salomon. Trazendo para a análise o instigante conceito de sujeito transclasse, mostra como uma menina pobre, forçada a migrar pelo regime militar argentino, não perde a esperança de dias melhores, apesar dos muitos percalços que atravessam seu caminho, o que faz dela um exemplo de resiliência.

Por sua vez, no texto “‘Em estado de memória’: a inscrição do trauma e as permanências de emoções dolorosas na obra da escritora argentina Tununa Mercado”, Fábio Ávila Arcanjo convoca noções como rememoração testemunhal, trauma, identidade e emoção (sobretudo, a melancolia e a nostalgia), para analisar dois momentos da narrativa da referida escritora: a saída forçada da Argentina e o retorno à pátria. Conclui que esses dois momentos, trazendo como consequência o “esfacelamento identitário”, configuram-se como acontecimentos traumáticos, que, como tais, deixam marcas na materialidade discursiva. Resta dizer que os dois artigos, o de Ida Lucia Machado e o de Fábio Ávila Arcanjo, deixam entrever, nas figuras de Lucia e de Tununa Mercado, inegáveis similaridades com a ditadura militar brasileira e seus exilados.

Na esfera contígua, a do cinema, Edna Clara Januário de Araújo também traz como personagens centrais, em seu relatório de pesquisa, duas mulheres migrantes: a nordestina Val, do filme brasileiro Que horas ela volta? (2015), escrito e dirigido por Anna Muylaert, e a argelina Fatima, do filme homônimo francês Fatima (também de 2015), dirigido por Philippe Faucon. Tanto Val quanto Fátima deixaram sua terra natal para trabalhar como empregadas domésticas em cidades/países mais desenvolvidos. A análise e a comparação dessas duas obras fílmicas, feitas à luz da semiótica discursiva, permitem apreender temas comuns, como a subalternidade da empregada doméstica, o patriarcalismo, a inferioridade do(a) imigrante e o questionamento da ordem social vigente (representado, na tela, pelas filhas das duas protagonistas), desvelando a ideologia que subjaz ao discurso. Embora se trate de países e culturas distintas, os dois filmes provocam nos enunciatários uma reflexão sobre as desigualdades existentes na sociedade ocidental, sobretudo aquelas que afetam a mulher migrante.

Nessa mesma direção temática, mas enveredando pelo discurso institucional e assumindo uma perspectiva teórica diferente: a da Semântica da Enunciação, Giseli Veronêz da Silva, como anuncia o próprio título de seu ensaio teórico “A designação de mulher síria refugiada no portal ACNUR/ONU”, aborda as relações designativas que acompanham a formação nominal (FN) refugiada síria em textos (manchetes/notícias) publicados no portal do ACNUR ─ Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados/ONU. Apresentando e analisando alguns recortes desses textos, observa que há neles uma ruptura com o estereótipo de mulher frágil e dependente da figura masculina. Ao contrário, no corpus estudado, as designações de refugiada síria apontam para a configuração de uma imagem de mulher independente, forte e que soube lidar com as dificuldades que estão por trás do título de refugiado e também de mulher. Talvez se possa ver aí um esforço do portal do ACNUR/ONU para aproximar a imagem da refugiada síria da “figura heroicizada” do exilado (APRILE, 2018[12]).

Na contramão dessas representações institucionais e institucionalizadas, Onur Yamaner e Benno Herzog lançam luz sobre a dupla invisibilização sofrida pelas mulheres sírias, como mulheres e como refugiadas, na Turquia. Explorando a complexa noção de (in)visibilidade, o relatório de pesquisa “The dialectics of invisibilization in Syrian female refugees in Turkey”7 aprofunda-se no estudo de um corpus heterogêneo, constituído por postagens no Facebook e pela escuta de sujeitos no país de acolhida, mais precisamente na cidade de Ancara. Ao abordar a reprodução, pelas próprias mulheres, de discursos dominantes, o estudo conduz à reflexão sobre uma invisibilidade interseccional como mecanismo que, por um lado, pode silenciar, mas, por outro, pode proteger a refugiada da hostilidade na sociedade de chegada.

Na medida em que trazem a figura feminina como “objeto” central de reflexão, esses textos, de modo geral, reafirmam o que todos nós sabemos: as mulheres e as crianças são as primeiras vítimas de todas as formas de violência, o que se acentua ainda mais nas situações de migração e de refúgio. Dados do Global Trends Forced Displacement (ACNUR/ONU)8 mostram que o total de pessoas em desloca- mento forçado no mundo, no final de 2020, era de 82.4 milhões, sendo 52% homens e 48% mulheres, a maioria deles(as) na faixa etária entre 18 e 59 anos. Ou seja, as mulheres respondem por quase metade da população migrante atual, o que justifica um olhar mais acurado sobre elas. Nessa perspectiva, o que se constata é que as mulheres migrantes passam por frequentes violações de direitos humanos, que vão de maus tratos e detenções arbitrárias a sequestros, assassinatos e abusos sexuais. Segundo a ONU Mulheres (2017), uma em cada cinco refugiadas sofreu algum tipo de violência sexual9. Isso sem contar as muitas formas de preconceito/discriminação a que elas estão sujeitas.

As condições adversas e os abusos frequentes, que caracterizam a situação de vulnerabilidade vivenciada nos processos migratórios, vão, contudo, muito além da mulher, afetando as pessoas deslocadas ou em deslocamento, independentemente de sexo/gênero, idade, condição social etc. É nessa perspectiva mais ampla, assumida também por outros autores deste dossiê, que se inserem os artigos de Adriana do Carmo Figueiredo, Bárbara Mano de Faria e Eliane Righi de Andrade. As três autoras aproximam-se ainda no uso da noção de narrativa de vida – já mobilizada por Ida Lucia Machado, no âmbito da literatura – para abordar os fluxos migratórios na atualidade.

Em seu texto, intitulado “Direitos e deveres em tempos de fluxos migratórios: uma conversa sobre a obra Estranhos à nossa porta com alunos do PLAc no CEFET-MG”, Adriana do Carmo Figuei- redo relata uma experiência que desenvolveu com alunos do Programa Português como Língua Es- trangeira (PLE), oferecido pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), por meio de uma palestra que foi convidada a ministrar no Curso de Português como Língua de Acolhimento (PLAc). Tal palestra envolveu a apresentação e a discussão de fragmentos da obra Estranhos à nossa porta, de Zygmunt Bauman, além de trechos da legislação vigente sobre Direitos Humanos e comentários de alunos participantes do PLAc. À luz da Análise do Discurso francesa, num diálogo transdisciplinar com o Direito, a Teoria Social de Jürgen Habermas e a proposta sociológica de Bauman, a autora constatou, em linhas gerais, a importância, nas aulas de conversação do PLAc, das narrativas de vida para reflexões sobre identidades e para o enfrentamento de conflitos gerados em situações de migração.

Bárbara Mano de Faria, no também relatório de pesquisa intitulado “(Auto)Representações so- ciodiscursivas de imigrantes e refugiados no contexto das ‘migrações Sul-Sul’” e igualmente com o respaldo da AD francesa, volta-se para a análise e a comparação das representações sociodiscursivas de migrantes e refugiados no contexto brasileiro, tanto aquelas que emergem da instância midiática (imprensa de referência mineira) quanto as que circulam nas narrativas de vida (obtidas por meio de entrevistas) dos próprios sujeitos deslocados. Comprova, assim, a desigualdade de espaços de fala destinados à discussão das migrações contemporâneas e conclui que os imigrantes e refugiados não se sentem, na maioria das vezes, representados nos/pelos discursos institucionais/midiáticos, apontando, consequentemente, a necessidade de “dar voz” a esses sujeitos na sociedade de acolhimento, de modo a restituir seu lugar de fala e sua representatividade.

Já o relatório de pesquisa de Eliane Righi de Andrade – “O entre-espaço ocupado pelo migrante (des)acolhido: entre a hospitalidade e a hostilidade” – apoia-se no diálogo da AD francesa com os estudos culturais e decoloniais para trazer uma discussão acerca dos processos identitários dos migrantes num espaço entre línguas e entre culturas, a partir das representações de si e do outro que emergem em suas narrativas. Analisando trechos de falas de duas irmãs bolivianas e de um haitiano, que vivem atualmente no Brasil, e valendo-se, entre outros, do instigante conceito de hostipitalidade, proposto pelo filósofo Jacques Derrida, chega à conclusão de que esses migrantes buscam formas de resistir e de ser sujeito, numa situação nem sempre de hospitalidade, mas de hostilidade, visto que os nativos, não raro, os veem e os representam como estranhos e como invasores.

A escuta do outro/Outro pelos relatos dos migrantes está também no cerne da reflexão pro- posta por Luan Alex de Mattos e Angela Derlise Stübe, em “Migração, sujeito e entre-línguas: perder-se no labirinto da palavra”. A visada dos autores, com o amparo da desconstrução derridiana, em que se destaca a noção de monolinguismo do outro, e da psicanálise lacaniana, em que se destaca a noção de sujeito, busca compreender como as línguas diversas constituem, ao se atravessarem, a subjetividade de imigrantes haitianos que vivem na cidade de Chapecó, no sul do Brasil. Ao analisar a metáfora, vivenciada na pele, do perder-se nas línguas, do estar entre elas, Mattos e Stübe mostram como essas línguas constituem e afetam o sujeito, que emerge ao se marcar num espaço entre.

O ensaio teórico de Jocenilson Ribeiro encerra este dossiê e reabre a discussão, sempre inaca- bada, sobre a temática do migrante-refugiado-estrangeiro, ao percorrer o caminho que vai “Da xenofobia à glotofobia: a estrangeiridade como um problema discursivo”. Sua construção teórica, que remonta desde a leitura foucaultiana até o pensamento de Di Cesare, sobre uma filosofia da migração, passando pelos sentidos dicionarizados acerca do termo estrangeiro, ressalta a noção de estrangeiridade como potencializadora do questionamento sobre os limites entre a glotofobia, a xenofobia e o racismo.

Nas páginas que seguem (e como foi brevemente apresentado), o leitor será confrontado com problemáticas que se emaranham à temática das migrações e do refúgio, como o olhar para os contornos de raça e gênero, por exemplo. Esses nós permitem compreender não só a relação estreita entre essas questões latentes no mundo contemporâneo, mas também a contribuição que a abordagem das migrações pode produzir nesses outros espaços de reflexão. Cada um a seu modo, os autores aqui reunidos propõem também um percurso singular pelo movimento de sujeitos, sentidos e dizeres.

Dos deslocamentos geográficos aos deslocamentos subjetivos, os estudos que compõem este dos- siê permitem compreender as migrações como paradigma de reflexão acerca das diversas formas de vulnerabilidade e (in)visibilização contemporâneas, mas, sobretudo, sobre as formas possíveis de res- significação e de des/reterritorialização diante do outro. Desse modo, convocam os analistas de dis- curso e os demais leitores, que atuam em diferentes campos, a teorizar a partir da fluidez das fronteiras e a tomar para si um lugar intervalar, um entre-lugar, semelhante ao do estrangeiro, frente aos discursos com os quais devem se haver. O laço construído entre estes quinze textos se apresenta, então, como um convite para que se analisem os discursos sobre as migrações, compreendendo a própria análise de discurso como estrangeira para si mesma, à luz da proposta de Kristeva (1994[13]).

O dossiê “Migrações e refúgio: abordagens discursivas” é um dos resultados do encontro fortuito que se deu entre as três pesquisadoras/editoras, em fevereiro de 2020, durante o Colloque international Migrations: traces, inscriptions et textualités, realizado na Université Bordeaux-Montaigne-França. Porém, se a proposta foi nossa, o dossiê só se tornou possível graças a um trabalho coletivo, que envolveu a contribuição de vinte e um autores e de trinta e seis pareceristas. Agradecemos a cada uma dessas pessoas, por enriquecerem essa proposta e fomentarem o debate acerca do tema, com seus escritos e suas leituras. Agradecemos, igualmente, a Raquel Meister Ko. Freitag e a Manoel Siqueira, por estarem sempre disponíveis a acolher nossas dúvidas e demandas surgidas durante o processo de constituição desta coletânea.

Referências

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