Um panorama sobre a Análise do Discurso Digital

Maiara Sousa Soares,
Mayara Arruda Martins

Resumo

Esta resenha objetiva apresentar o apanhado epistemológico, teórico e metodológico proposto na live intitulada Análise do Discurso Digital de Marie-Anne Paveau: dos pré-discursos aos tecnodiscursos. Sob a perspectiva da Análise do Discurso Digital, investigada por Marie-Anne Paveau, a live propôs discutir as inquietações dos pesquisadores acerca dessa proposta teórica. Para tanto, estes dividiram a mesa em quatro aspectos: percurso da inserção dos estudos de Paveau no Brasil e sua influência nos grupos de pesquisa e trabalhos publicados; as relações estreitas entre pré-discursos, linguagem e moral; as características dos tecnodiscursos e o militantismo digital quanto à densidade de presença do enunciador. Essa discussão se faz extremamente relevante dada a futura publicação do dicionário A análise do discurso digital – dicionário das formas e das práticas, o qual se propõe a revolucionar os estudos discursivos.

Texto

A presente resenha faz parte do evento on-line Abralin ao vivo, que consiste em uma série de lives organizadas pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin), sendo importante ferramenta de acesso ao conhecimento científico.

Análise do Discurso (doravante AD) é uma vertente da Linguística que se propõe a descrever as práticas sociais e como isso se materializa nos usos da linguagem, exercendo influência política, social e cultural sobre as camadas da sociedade. Todavia, as interações realizadas nas mídias digitais se mostram fecundas e despertam interesses múltiplos e reflexões sobre como os discursos são promovidos no ambiente nativo digital.

Intitulada Análise do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau[1], a live foi moderada pela Profa. Dra. Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar). O objetivo central da mesa foi apresentar a proposta epistemológica, teórica e metodológica de Marie-Anne Paveau para o desenvolvimento de uma Análise do Discurso Digital (doravante ADD). Partindo desse propósito, o Prof. Dr. Roberto Leiser Baronas (UFSCar) inicia apresentando um percurso do grupo de pesquisa com a proposta da autora; em seguida, a Profa. Dra. Ana Carolina Vilela-Ardenghi (UFMT) evidencia as relações entre os quadros pré-discursivos coletivos e a linguagem no seu imbricamento com a moral; na sequência, o Prof. Dr. Roberto Baronas trata das características centrais dos tecnodiscursos, e, por fim, a Profa. Dra. Júlia Lourenço Costa (UFSCar) aborda o militantismo digital, refletindo sobre o enunciador e sua densidade de presença. Após as falas, são encaminhadas as questões do chat pela moderadora para apreciação dos participantes.

Envolvido de tom poético e, ao mesmo tempo, firme quanto ao seu posicionamento enquanto pesquisador militante do discurso, Baronas discorre sobre o percurso de inserção dos trabalhos de Paveau no Brasil na última década, os quais reverberam nos grupos de pesquisa e, consequentemente, em trabalhos publicados em Língua Portuguesa.

Ao estreitar as relações com a autora do livro, Marie-Anne Paveau, os pesquisadores conseguiram autorização para a tradução da obra L’analyse du discours numérique – dictionnaire des formes et des pratiques, que provocará uma virada nos estudos discursivos brasileiros, preconiza Baronas.

Detemo-nos no percurso teórico empreendido por Ana Carolina acerca da vasta pesquisa de Paveau, em especial, a síntese sobre as obras Os pré-discursos, sentido, memória e cognição (2013[2]) e Linguagem e moral – uma ética das virtudes discursivas[3] e recortamos alguns pontos dispostos na live pela palestrante. A professora Ana Carolina apresenta, com destreza e profundidade, os conceitos de pré-discurso e virtudes discursivas elaboradas por Paveau, ampliando os limites da AD a outros planos de conhecimento como a cognição distribuída, a moral e o universo digital.

A pesquisadora retoma o que Paveau compreende como dimensão cognitiva: “os processos de construção de conhecimento e sua configuração do discurso a partir de dados recebidos pelos sentidos, pela memória e pelas relações sociais” (2013, p. 9[2]). Dessa forma, Paveau propõe um tratamento teórico de aspectos como conhecimentos prévios, compartilhados, doxa, atentando-se para uma descrição mais profunda, enfatiza a palestrante. Esta ainda reitera que, apesar de conceber que os discursos se apoiam na natureza de saberes e crenças compartilhadas, tal terreno ainda é misterioso.

No entanto, o ponto central é a categoria dos pré-discursos, que não se confunde com pré-construídos, e pode ser definido como um conjunto de quadros pré-discursivos coletivos (saberes, crenças, práticas) que dão instruções para produção e interpretação dos sentidos no discurso. Vale ressaltar que tais quadros não estão presos aos indivíduos ou aos grupos nos quais estão envolvidos, mas, como preconiza a noção de cognição distribuída, disseminados nos contextos materiais da produção discursiva.

Para ilustrar o conceito de pré-discurso, Vilela-Ardenghi recupera Paveau (2013, p. 20[2]), em que a autora analisa a expressão “É Beirute”. Num contexto específico, a expressão destacada torna-se o significante do caos e da destruição urbana, perdendo o sentido de “cidade” (capital do Líbano), visto que tal expressão recupera na memória discursiva um universo semântico. Paveau questiona como um simples nome próprio pode trazer à tona conhecimentos tão distintos. Com isso, a autora enfatiza a essência de pré-discurso como um caráter enciclopédico e estereotipado.

Acerca da segunda obra mencionada, a questão da ética das virtudes discursivas se sobressai, uma vez que Paveau, segundo a reflexão de Vilela-Ardenghi, tenta integrar o parâmetro ético na Linguística ao analisar a dimensão moral dos enunciados, ressaltando que, neste viés, há uma linha tênue entre fronteiras ideológicas e limites, dentro de uma sociedade, de conceitos como: ofensivo e não ofensivo; politicamente correto e incorreto. Essas questões são aspectos centrais de ética e linguagem, as quais vão ao encontro da definição de virtude discursiva e pode ser entendida da seguinte forma: o quão ajustado um discurso é aos valores que são partilhados no coletivo social.

Por fim, Vilela-Ardenghi explicita relações entre a noção dos pré-discursos e da ética das virtudes discursivas postulados por Paveau, das quais destacamos que ambas não possuem marcas explícitas na materialidade linguística, sendo seu caráter indicial, uma vez que provêm de nossas percepções intersubjetivas do mundo.

Por conseguinte, Baronas salienta a relevância das discussões empreendidas e, embora reconheça pesquisas nacionais acerca dos discursos digitais, afirma que Paveau é precursora da ADD com a publicação do dicionário no qual propõe novos conceitos, a partir da AD Francesa para embasar reflexões do funcionamento dos discursos nativos na internet, os tecnodiscursos, produzidos no interior dos dispositivos técnicos.

O tecnodiscurso se define pela natureza virtual e possui suas particularidades quanto à relacionalidade e suas características inéditas, como clicabilidade e imprevisibilidade. Baronas adverte o distanciamento entre discursos pré-digitais e não-digitais dos discursos digitais e sublinha que Paveau não pretende criar mais uma taxonomia, mas compreender as relações entre sujeito, linguagem, máquina e sociedade.

Para refletir essas relações, a autora elenca seis características do funcionamento dos tecnodiscursos: a composição, a deslinearização, a ampliação, a relacionalidade, a investigabilidade e a imprevisibilidade. Partindo desses parâmetros, Baronas ilustra o funcionamento do tecnodiscurso retomando produções discursivas acerca dos assassinatos de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, e seu motorista Anderson Gomes ocorrido em 2018, a partir das cenografias de placas, cartazes, notícias e comentários no Twitter, dispostos nas redes sociais. Salientamos um espaço de militância e empatia da mesa quando Baronas afirma que o nome de Marielle, nos embates tecnodiscursivos, se constitui como um lugar de memória, resistência e reexistência em prol de uma sociedade mais decente.

Por fim, a Profa. Dra. Júlia Costa (UFSCar), ao tratar da concepção de dualismo, discute a polarização entre real (o mundo dos seres e das coisas) e virtual (o mundo dos algoritmos), entre off-line e on-line, entre físico e digital, uma espécie de binarismo global, para pensar a noção de sujeito e enunciador a partir da proposta da ADD de Marie-Anne Paveau. A palestrante evidencia que Paveau, ao se apoderar de uma perspectiva pós-dualista e ecológica, pensa o discurso digital como uma imbricação entre homem e máquina, visto que os tecnodiscursos são discursos co-construídos junto às implicações técnicas, distanciando de uma compreensão de que a máquina seria apenas o suporte da interação.

Dessa maneira, Paveau reprova o dualismo, tendo em vista que separar os mundos real e virtual limitaria o sujeito quanto a sua cognição e percepção. No entanto, na Linguística, essas “renegociações” sujeito/mundo implicam em revisitar o conceito de enunciação, afirma Júlia. No universo digital, as coordenadas enunciativas de pessoa, tempo e espaço são convertidas e adaptadas. Dentro dessa inscrição de enunciação digital, Júlia propõe algumas questões, dentre as quais: “o que é o enunciador digital: o sujeito, a máquina ou a junção deles?”. Em Paveau (2017[4]), o enunciador digital é ampliado, quando são acrescidos outros “dizeres on-line”, como comentários de Facebook, e coletivo, quando utiliza programas de escrita compartilhada, como Google Docs, exemplifica a palestrante.

Júlia se concentra em pensar como a noção de enunciador digital se constrói contrariando o dualismo real-virtual especificamente quanto ao militantismo digital e enfatiza como sujeitos pertencentes aos movimentos sociais têm se estabelecido nos espaços virtuais principalmente em meio ao cenário pandêmico, salientando ainda mais o dualismo entre limites do real e do virtual. Para exemplificar, Júlia apresenta algumas publicações de convocação de manifestações digitais promovidas pela União Nacional dos Estudantes (UNE) a partir de uma série de atividades virtuais em que o engajamento do sujeito-enunciador digital se faz essencial.

Após as falas dos palestrantes, foram dispostas as questões do chat, dentre as quais, selecionamos duas questões. A primeira é: quem é o sujeito da ADD? É um sujeito assujeitado pelo algoritmo ao mesmo tempo em que vive a ilusão de ser senhor das suas escolhas virtuais? Júlia responde que ele não é um assujeitado ao algoritmo, mas que está imbricado à máquina numa co-construção discursiva. A segunda é: seria uma aproximação da AD (quanto à proposta da Paveau) com a LT? Ana Carolina responde que não, tendo em vista que os pressupostos teóricos de ambas são distintos. Todavia, reconhece os possíveis pontos de contato entre as teorias.

A live discutiu conceitos de linguagem, ética, moral, pré-discursos e tecnodiscursos dentro da proposta epistemológica e teórico-metodológica da discursivista Paveau, aporte teórico que tende a influenciar positivamente os estudos da AD, além de gerar pontos de interseção com outras vertentes da Linguística.

Referências

ANÁLISE do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau: dos pré-discursos aos tecnodiscursos. Conferência apresentada por Roberto Leiser Baronas, Ana Carolina Vilela-Ardenghi e Júlia Lourenço Costa sob moderação de Mariana Luz Pessoa de Barros, 2020. 1 vídeo (2h 14min 10s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nt4vQChkW-g. Acesso em: 07 jul 2020.

PAVEAU, M. A. Os pré-discursos: sentido, memória, cognição. Campinas: Pontes, 2013.

PAVEAU, M. A. Linguagem e moral: uma ética das virtudes discursivas. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.

PAVEAU, M. A. L’analyse du discours numérique – dictionnaire des formes et des pratiques. Paris: Hermann, 2017.