Bilinguismo como recurso de neuroplasticidade: uma hipótese a ser considerada

Mirela Ramacciotti

Resumo

Esta é uma revisão da palestra Does bilingualism affect cognitive and brain structures? Facts and Fictions feita por Ellen Bialystok em 30 junho de 2020 para a Abralin. Aspectos do bilinguismo, inibição e atenção seletiva são examinados para mostrar onde pesquisas evidenciam correlações positivas (pontos extremos da vida: infância e velhice) e onde ainda permanecem dúvidas (adultos jovens). As razões para isso são examinadas e o modelo de unidade e diversidade sobre o qual as previsões foram feitas é contestado. A pesquisadora defende uma perspectiva diferente em pesquisas sobre bilinguismo e afirma que melhores explicações podem ser encontradas na busca de adaptações na reconfiguração das redes atencionais e na neuroplasticidade.

Texto

Trata-se de uma revisão da palestra da Dra. Ellen Bialystok[1], ilustre Professora de Psicologia da Universidade de York, que examina estudos de desenvolvimento cognitivo e declínio ao longo da vida com foco em como esses processos são modificados pela atenção seletiva que a experiência bilíngue gera.

A palestra aborda a questão do título, colocando que o construto da neuroplasticidade, que abarca mudanças mensuráveis nos mecanismos e funções cerebrais, também pode ser gerado pelo bilinguismo. Como a linguagem parece ser a atividade cerebral mais utilizada, haveria então a constante a ativação de tais mecanismos. Para os bilíngues, isso implica na necessidade, concomitante e frequente, de seleção. Ela afirma que uma consequência primária seria a reorganização nas redes de atenção. E por meio dessa reorganização, o bilinguismo levaria à adaptação de como a atenção é engajada ao longo da vida.

Pesquisas desenvolvidas com sujeitos desde a infância até a velhice mostram diferenças na resposta aos efeitos do bilinguismo. Ela chama a atenção para as recentes discussões sobre as discrepâncias encontradas na pesquisa. Grande parte da controvérsia, porém, diz respeito à precisão e ao tempo de resposta (TR) por jovens adultos.

Um artigo amplamente replicado (BIALYSTOK; MCBRIDE-CHANG; LUK, 2005[2]) relata como os resultados de uma tarefa (Simon task) mostram padrões superiores idênticos para bilíngues (BL) em comparação com monolíngues (ML) em todas as faixas etárias. No entanto, outro estudo (PAAP; GREENBERG, 2013[3]) com resultados idênticos deu uma interpretação oposta, dando início a uma série de disputas na base das pesquisas até então. Contudo, os efeitos contraditórios encontrados necessitam de uma explicação.

Com um histórico de vinte anos, as diferenças cognitivas têm sido encontradas em tarefas de funções executivas (FE) realizadas sob o modelo de unidade e diversidade (MIYAKI et al., 2000[4]). Este modelo estrutural consiste em três elementos: atualização, mudança e inibição. O desempenho nas tarefas reflete o engajamento de cada componente separadamente. Dentro de cada componente, várias tarefas estão alinhadas para mostrar sua função. A integridade do componente reflete sua independência, e o enquadramento teórico dita a geração de hipóteses e o relato de resultados para previsões empíricas.

O modelo serviu de ponto de partida para a pesquisa do bilinguismo e moldou previsões feitas em pesquisas desde então. Mas problemas surgiram: as correlações previstas que refletem as inibições não foram encontradas com precisão; e, de forma ampla, a pesquisa continuou mostrando um TR mais alto para BLs (BIALYSTOK et al., 2004[5]; MARTIN-RHEE; BIALYSTOK, 2008[6]; EMMOREY et al., 2008[7]; CHUNG-FAT-YIM; HIMEL; BIALYSTOK, 2019[8]). Isso levou à conclusão de que a questão pode não estar relacionada com a inibição.

Além disso, essa questão apontou para uma confusão quanto à inibição. Pesquisas com dados de desenvolvimento e ressonância magnética mostraram que existem dois tipos de inibição: o usado para executar uma resposta (inibição de resposta) e outro que requer supressão de interferência (BUNGE et al., 2002[9]; MARTIN-RHEE; BIALYSTOK, 2008[6]). Em pesquisas com BLs, a inibição da resposta não mostra diferenças de grupo. Contudo, para a supressão de interferência, os BLs são mais rápidos que os MLs. Tomadas em conjunto, a pesquisa estabelece que não há processo de inibição geral.

As escolhas para resolver o problema ficam então entre duas possibilidades: ou que as previsões estão erradas e não há efeito cognitivo do bilinguismo, ou que o modelo está errado. Ao revisitar o modelo, as relações entre componentes são de fato questionáveis e problemáticas se as previsões forem levadas a sério. Alternativamente, um olhar para um denominador comum – atenção – é útil, pois sua alocação determina o tamanho do desempenho nas tarefas. Assim, o efeito do bilinguismo pode ser mais bem entendido nos processos que modulam a atenção.

Foi então realizada uma revisão dos estudos para todas as faixas etárias para separar informações sobre a TR dos mecanismos de atenção (COMISHEN; BIALYSTOK; ADLER, 2019[10]; GRUNDY; ANDERSON; BIALYSTOK,2017[11]). Juntos, os resultados apontam para um TR mais elevado para MLs (um efeito congruente sequencial), ou seja, os MLs demoram mais para alternar sua atenção entre tarefas. Isso significa que os BLs superam os monolíngues na alocação de sua atenção.

Uma pesquisa estatisticamente meticulosa realizada por Zhou e Krott (2018[12]) investigou a distribuição do TR e atenção com análise gaussiana exponencial ao examinar o desempenho de MLs e BLs nas três grandes tarefas para a FEs (Stroop, Flanker e Simon). Os resultados mostram que, para o TR, os MLs tiveram o mesmo desempenho que os BLs. No entanto, quanto à atenção, os MLs demoraram mais do que os BLs. Isso confere à hipótese de modulação da atenção uma base robusta.

Para examinar o processamento da linguagem, dados de um estudo recente de Bialystok et al. (2020[13]) mostram que os BLs são piores que os MLs em tarefas linguísticas (escores de vocabulário). No entanto, ao combinar benefícios linguísticos para MLs e benefícios da função executiva para BLs, os dados mostram que mesmo tarefas linguísticas que exigem seleção e atenção produzem resultados semelhantes às tarefas não verbais de FE.

A controvérsia reside então em determinar por que, entre tantos efeitos bilíngues positivos, um padrão consistente (dentro do modelo de componentes) não aparece. Para tal determinação, alguns pontos precisam ser analisados, como fatores de confusão (como status socioeconômico ou SSE), viés de publicação e tamanhos amostrais para a rejeições de resultados positivos.

Para enfrentar o SSE e os efeitos de confusão do bilinguismo, um estudo mostra que, além do SSE ser o preditor mais importante das FEs, há um efeito de interação, ou seja, o bilinguismo é especialmente útil para aqueles nas camadas de menor SSE (HARTANTO; YANG; YANG, 2018[14]). Outro estudo, que analisou o volume cerebral cortical, também mostra que o bilinguismo impulsiona o desenvolvimento cerebral nos grupos mais desfavorecidos (BRITO; NOBLE, 2018[15]). Em relação ao viés de publicação, uma vez que não há contestação da validade dos resultados, não se constitui em verificação de validade. E para o tamanho da amostra, o método emerge como mais importante do que o tamanho.

Quanto aos resultados nulos, uma definição de bilinguismo precisa de maior escrutínio. Esta variável independente deveria ser tomada como sendo um contínuo que abrange uma gama completa de experiências. Estas, por sua vez, poderiam retratar com maior granularidade a análise de graus em relação a desfechos. Muitos estudos mostram relações não lineares complexas (cérebro/comportamento) que refletem como diferentes experiências bilíngues são importantes para os resultados (ANDERSON et al., 2018[16]; BIALYSTOK; CRAIK; LUK, 2008[17]; CHUNG-FAT-YIM et al., 2020[18]; DELUCA et al., 2019[19]; GUERRERO; SMITH; LUK, 2016[20]). Ao examinar as razões para rejeitar resultados nulos, os tipos de tarefas utilizadas restam desmistificadas uma vez que exigências sobre a questão de processamento importam mais do que sua classificação. E, finalmente, em relação ao contexto do uso da linguagem, modelos adaptativos de controle, mostrando como as linguagens são usadas no contexto, poderiam fornecer melhores respostas (GREEN; ABUTALEBI, 2013[21]).

Em suma, as FEs permanecem centrais para o processamento e desenvolvimento cognitivo, o desempenho acadêmico e o bem-estar a longo prazo. Além disso, estão associadas à resiliência mental. Mas o maior ganho, defendido por Bialystok, reside na velhice; diante do declínio cognitivo normal para o qual não há intervenção efetiva (no caso de demência), o único recurso é a reserva cognitiva. Isso significa manter altos níveis de função cognitiva através do uso sustentado, o que implica em uma dissociação entre o que está acontecendo no cérebro (declínio) do que está se passando na mente (preservação da função cognitiva). O cérebro pode mostrar alguma atrofia, mas isso pode não se refletir na função cognitiva.

Uma clara indicação disso é a idade de diagnóstico para demência e, em alguns estudos, os MLs apresentam sinais mais cedo que os BLs (KOWOLL et al., 2016[22]; PERANI et al., 2017[23]). Uma forma de avaliar o avanço da demência está nos níveis de absorção de glicose metabólica, que ficam mais baixos à medida que a demência aumenta. Por esta medida, os BLs demoram mais para mostrar demência. Ao examinar países bilíngues em relação às taxas de demência, outro estudo, que manteve a expectativa de vida como variável independente, mostra menor incidência de demência para mais países BLs (KLEIN et al., 2016[24]).

O último argumento postulado por Bialystok volta ao mecanismo do modelo de unidade e diversidade para examinar transferência versus adaptação. Ela postula que uma experiência bilíngue modifica a atenção seletiva. Isso, por sua vez, impactaria a linguagem e a seleção não verbal de formas diferentes, independentes e em diferentes graus, ou seja, neuroplasticidade em ação. Considerando que não há transferência para BLs na infância nem na velhice, uma única conclusão permanece: a pesquisa deve procurar em outro lugar. E essa nova perspectiva deve considerar o bilinguismo tanto como uma reconfiguração das redes de atenção quanto como uma fonte de neuroplasticidade; e deve levar em conta adaptações tanto no cérebro quanto no comportamento.

Referências

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