Historiografia da gramática tradicional e ensino de língua

Viviane Silva de Novais,
Manoel Siqueira

Resumo

Neste trabalho, resenhamos a conferência proferida pelo professor Francisco Eduardo Vieira (UFPB) cujo foco foi a historiografia da Gramática Tradicional (GT), sua epistemologia e aplicação ao ensino. Vieira (2020) defendeu que a GT não deve ser compreendida somente como um livro, conteúdo, disciplina ou doutrina em um sentido oposto de ciência, pois se trata de uma Teoria Linguística. Para justificar seu posicionamento, o professor pauta-se nos postulados de Laudan (1978) e apresenta o percurso histórico da GT em diferentes abordagens até chegar à proposta geral de abordagem no ensino. O ponto-chave de sua apresentação pauta-se no posicionamento de que a oração, enquanto unidade máxima de análise, é uma categoria linguística que precisa ser estudada não somente em pesquisas linguísticas, mas, e sobretudo, nas aulas de língua portuguesa.

Texto

Apresentamos uma resenha sobre a conferência de Francisco Eduardo Vieira, intitulada Gramática: história, epistemologia e ensino[1], realizada dia 19 de junho de 2020, durante o evento ABRALIN ao vivo – Linguists Online, organizado pela Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN) em parceria com outras instituições nacionais e internacionais. A apresentação foi mediada pela professora Juliana Bertucci Barbosa (UFTM-Uberaba) e possui duração de 1h41min.

Eduardo Vieira é professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Desenvolve pesquisas voltadas, principalmente, à Historiografia Linguística e Linguística Aplicada, coordena o grupo de pesquisa Historiografia, gramática e ensino de línguas (HGEL) e é autor do livro A gramática tradicional: história crítica. Sua apresentação foi dividida em duas partes. Na primeira, o professor aponta seus objetivos: i) sistematizar algumas questões sobre a história e epistemologia da gramática; ii) relacionar a sistematização entre história e epistemologia ao contexto brasileiro de ensino de gramática; e traz apontamentos gerais sobre a gramática tradicional (GT) para, por fim, adentrar na segunda parte e chegar aos pontos principais de sua apresentação.

A Historiografia da Linguística é uma disciplina que põe enfoque na explicação de como o conhecimento linguístico é adquirido em determinado contexto social, por exemplo (SWIGGERS, 2009). Após fazer o percurso inicial de sua conferência, Vieira (2020) apresenta algumas sentenças nas quais há o uso da expressão “gramática tradicional”, conforme apresentamos sistematicamente no quadro:

1 Uma aluna de Letras pergunta a seu professor qual gramática tradicional ele sugere que ela compre;
2 Uma professora de português afirma não trabalhar em suas aulas gramática tradicional, mas prática de análise linguística;
3 Um linguista escreve que a gramática tradicional se fundamenta na perspectiva doutrinária de se olhar a língua ao longo da história;
4 Um mestrando em Linguística sistematiza num seminário três tipos de gramática - a gramática tradicional, a gramática descritiva e a gramática internalizada;
5 Uma advogada se interessa por um anúncio de um curso a distância de gramática tradicional.
Table 1. Exemplos de contextos com uso de “gramática tradicional” Fonte: Vieira (2020)

A partir dessas expressões, coletadas por escrito pelo professor em contextos de uso, a ideia foi observar qual a noção de GT está por detrás desses usos. Nelas, há diferentes formas de significado de GT: 1) compêndio que possui normas com conteúdos já esperados; 2) o uso da expressão passa ser a de conteúdo ou de metodologia; 3) perspectiva doutrinária de se olhar a língua; 4) GT é usada como concepção teórica sobre o que é gramática por abordar também gramática descritiva e gramática internalizada; e 5) GT enquanto disciplina.

Em todos os usos e possibilidades de uso da GT orbitam em dois grandes eixos: a norma-padrão e a análise metalinguística. É no eixo da norma-padrão que a GT tem sido mais relacionada, especialmente pelas demais nomenclaturas utilizadas, como é o caso de gramática normativa ou, ainda, gramática prescritiva. Nessa perspectiva de gramática, são encontradas as regras de acentuação, de concordância, de colocação pronominal, entre outras. Já em relação ao segundo eixo, considerado um tanto quanto esquecido, Vieira (2020) destaca que é ele quem sustenta o eixo da norma-padrão. O professor fez uso do seguinte esquema para exemplificar sua proposição:

Figure 1. Esquema apresentado por Vieira (2020) Fonte: Vieira (2020)

A análise metalinguística funcionaria como principal nessa relação com a GT, sendo o ponto-chave para o eixo menor que é a norma-padrão. Vieira (2020) mostrou que os dois eixos funcionam como “duas engrenagens que se retroalimentam”. A análise metalinguística equivale ao eixo que trata de questões de análise linguística, mais precisamente ao domínio de técnicas de descrição das estruturas linguísticas. Outro ponto de destaque é que a imagem presente na figura 1 despertou interesse dos participantes, sendo realizadas perguntas sobre ela ao fim da conferencia.

Quando se pensa em GT, existe uma diversidade de características, das quais Vieira (2020) sintetizou três delas: i) caráter fundamentalmente pedagógico e normativo; ii) limitações e incongruências terminológicas e conceituais; e iii) diversidade de modelos epistemológicos. No entanto, o conferencista destaca que, embora possua essas características, a GT não deve ser compreendida como um livro, conteúdo ou doutrina num sentido oposto de ciência, um dogma, disciplina ou outra acepção que ela possa ter, pois se trata de uma Teoria Linguística.

Embasado em Laudan (1978), Vieira (2020) enfatiza que a GT é uma teoria linguística por também ser uma tradição de pesquisa da linguística, em seu escopo temporal, histórico, geográfico, ideacional, em toda sua amplitude. Como parte de uma tradição, a GT “carrega coordenadas ontológicas”, visto que existem visões diferentes e diversos tipos de abordagens para ela ao longo dos mais de dois mil anos de existência. É a partir dessas constatações que Vieira (2020) lança a seguinte questão: quais seriam as diretrizes epistemológicas dessa tradição de pesquisa que a gente nomeia enquanto GT?

Após apresentar algumas gramáticas que são chamadas de tradicionais, a exemplo de Bechara (2009[2]) e Castilho (2010), Vieira (2020) destaca que, embora sejam de tipos diferentes, todas elas representam uma mesma tradição de pesquisa, sendo por este motivo que ela se encaixa na teoria do tipo 2 de Laudan (1978). Em seguida, o professor apresenta uma sistematização de diretrizes epistemológicas da GT:

Figure 2. Esquematização das diretrizes conforme Vieira (2020) Fonte: elaborada pelos autores com base nas informações dadas por Vieira (2020)

As três primeiras diretrizes dizem respeito à norma padrão e ao julgamento de construções certas e erradas na língua, sendo por estes motivos colocadas em cheque. Após tantos estudos e pesquisas científicas, não dá mais para analisar a língua a partir de um modelo limitado em que somente aquilo que está prescrito em compêndios pode ser considerado como correto e aceitável. Vieira (2020) levanta apontamentos necessários ao destacar o verbo “ensinar”, colocado no ponto 1, quando fala que talvez a gramática seja a única teoria que surgiu tendo como um de seus enfoques o “ensino” das regras e normas e que, provavelmente, por esse motivo o ensino de língua portuguesa ainda seja tão fixado nesse ponto, sem conseguir abrir mão dessa tradição de pesquisa.

As duas últimas diretrizes, retomando a engrenagem que apresentamos anteriormente, dizem respeito à análise metalinguística. Para discorrer sobre elas e apresentando uma visão mais ampla, Vieira (2020) traz visões gerais da história da GT, desde o pensamento gramatical da filosofia grega, dos gramáticos alexandrinos e latinos. Como forma de explanar e exemplificar algumas abordagens, o professor também apresenta terminologias e formas de análise sintática da oração em gramáticas latinizadas (século 16 e 18), gramáticas racionalistas (século 19), gramáticas empiristas (final do século 19 e início do 20).

O levantamento que o professor apresenta após sua exposição histórica é entorno do que ensinar de gramática: a oração fechada em sua composição ou o texto como um todo, composto por “orações contextualizadas”. Para responder esse questionamento, Vieira (2020) destaca que se a GT tem como alicerce a oração, “sem apelar fundamentalmente para o entorno (situação e outros elementos extralinguísticos)” (BECHARA, 2009, p. 336[2]), não podemos cobrar da GT aquilo que ela não possui ou que não pode nos fornecer. Não cabe à oração em si fornecer o que está em seu entorno, ou seja, não equivale a uma categoria que constrói sentidos em situação concreta de uso da língua. A oração não depende de interlocutores reais, de tempo ou espaço definido. Não é necessário saber quem está falando ou com quem se está falando. A partir desses apontamentos, o contexto em que uma oração se insere não se revela tão necessário como alguns estudiosos defendem. A partir disso, Vieira (2020) propõe o seguinte questionamento: se as categorias e os conceitos da GT são utilizados há mais de dois milênios para análise gramatical da oração, seria mesmo o texto a unidade de análise mais apropriada se quisermos ensinar o estudante a operar essas categorias? Vejamos o esquema proposto pelo professor:

Figure 3. Esquema de análise proposto por Vieira (2020) Fonte: Vieira (2020)

Vieira (2020) lança um questionamento: seria a oração, ainda, uma unidade de análise ou não? Para responder à questão de forma científica e pedagógica, o professor afirma que sim, a oração é uma categoria linguística que precisa ser estudada, tanto nas pesquisas linguísticas quanto nas próprias aulas de língua portuguesa. No entanto, deve ser considerada como uma categoria descontextualizada e não uma categoria enunciativa, o que não significa abandonar o texto, mesmo que pareça uma abordagem contraditória. Para exemplificar e deixar mais clara sua afirmação, o professor apresenta um resumo acadêmico e discorre exemplos retirados desse texto como forma de verificar as diferentes orações que o compõem.

Indo em direção contrária a muitos posicionamentos em relação a como ensinar GT na escola, a exemplo daqueles que apontam que somente o texto seria necessário e que a gramática não teria lugar no ensino de português, Vieira (2020) apresenta aparatos histórico e teórico para embasar suas afirmações. A pertinência e necessidade de se discutir como, por quê e de que forma ensinar gramática são temas que continuam sendo necessários, visto que o ensino de língua vem há muito tempo sendo insuficiente e insatisfatório do ponto de vista linguístico e gramatical. O professor atendeu ao que se propôs discutir, visto que sua explanação se voltou especificamente para a GT, sua historiografia e seu ensino e não para outros aspectos pedagógicos, a exemplo de temas que envolvam variação linguística, por exemplo. Dentre as tantas visões divergências a respeito da GT, até mesmo entre professores e pesquisadores de Letras, o posicionamento de Vieira (2020) é coerente à historiografia da GT. Muito se fala sobre ensino de gramática contextualizada, mas a própria GT não objetiva fornecer esse tipo de abordagem.

Referências

BECHARA, E. E. Moderna gramática portuguesa. 37.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

GRAMÁTICA: história, epistemologia e ensino. Conferência apresentada por Francisco Eduardo Vieira, 2020. 1 vídeo (1h 41min 35s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m6nQm3Zceq8&t=1914s. Acesso: 30 de junho de 2020.