O cérebro pronto para a linguagem

Natália Pinheiro De Angeli,
Pedro Ricardo Bin,
Pietra Cassol Rigatti

Resumo

Pesquisadores têm se interessado pelas bases neurobiológicas do processamento da linguagem há séculos. Assim, a conferência do professor Peter Hagoort no evento Abralin Ao Vivo contribuiu ricamente para o debate acerca das bases neurobiológicas da linguagem. A presente resenha fornece ao leitor um resumo detalhado das principais questões abordadas na conferência. Discutem-se o Modelo Clássico de produção e compreensão da linguagem (também conhecido como o modelo Wernicke-Lichtheim-Geschwind) e suas limitações, assim como o Modelo Memória, Unificação e Controle (MUC), proposto por Hagoort (2005, 2013, 20016), e suas contribuições para o estudo da neurobiologia da linguagem. Além disso, nessa resenha são feitas relações pertinentes sobre o paradigma de priming, os processos de unificação sintática e semântica e o recrutamento de circuitarias de domínio geral para a plena operação da linguagem.

Texto

Quais são os componentes do sistema linguístico humano? Como tais componentes estão implementados em suas estruturas cerebrais correlatas? A conferência do Professor Peter Hagoort no evento Abralin Ao Vivo, intitulada The core and beyond in the language-ready brain1[1], teve por objetivo apresentar possíveis respostas a tais perguntas. De forma clara e objetiva, o Prof. Hagoort guiou espectadores e ouvintes durante uma exposição informativa de sua própria pesquisa assim como pela área da psicolinguística experimental e da neurobiologia da linguagem. Assim, a presente resenha tem por objetivo apresentar os principais tópicos abordados durante a conferência. Além disso, buscaremos enriquecer o debate com considerações feitas a partir da produção científica do Prof. Hagoort e de outros pesquisadores da área.

Antes de apresentar seu próprio modelo, Hagoort teceu algumas considerações a respeito do Modelo Clássico de produção e compreensão da linguagem (também conhecido como modelo Wernicke-Lichtheim-Geschwind). Ancorado no trabalho seminal de Broca (1861[2]), Wernicke (1874[3]) e Lichtheim (1884[4]), o Modelo Clássico propõe que os processos de compreensão e produção da linguagem recrutam duas áreas corticais: a área de Broca (localizada no córtex frontal inferior esquerdo) e a área de Wernicke (localizada no córtex temporal esquerdo), respectivamente. O fascículo arqueado, por sua vez, faz a ligação entre tais áreas. Hagoort explica que apesar da importância do Modelo Clássico como a primeira tentativa de descrever a arquitetura neurocognitiva do processamento linguístico, ele contém uma série de limitações. Primeiramente, é importante notar que ele foi construído tendo em mente o processamento de palavras isoladas. Assim, tal modelo é incapaz de abordar a dinamicidade presente no processamento online da linguagem. Outra limitação do Modelo Clássico diz respeito ao pressuposto de que compreensão e produção recrutariam zonas corticais/circuitarias distintas. Apesar desse entendimento, pesquisas atuais o têm refutado (cf., WEBER; INDEFREY, 2009[5]; MENENTI et al., 2011[6]; SEGAERT et al., 2012[7]). Finalmente, Hagoort apresenta seu modelo neurobiológico de processamento da linguagem como uma alternativa ao Modelo Clássico, o Modelo Memória, Unificação e Controle (MUC).

O modelo MUC (HAGOORT, 2005; 2013; 2016[8-10]) propõe que o processamento da linguagem depende de três componentes funcionais. O componente Memória, único de domínio específico da linguagem, é responsável pelo armazenamento do conhecimento linguístico nas estruturas neocorticais da memória (HAGOORT, 2016[10]). Após serem acessados, tais itens, ou frames lexicais, são combinados a fim de construir estruturas sintáticas. Assim, é no componente Unificação do modelo que tais frames são concatenados. Finalmente, o componente Controle relaciona-se com o fato de que o sistema cognitivo da linguagem opera considerando intenções e ações comunicativas (HAGOORT, 2005[8]). Para exemplificar, o componente Controle é responsável pela inibição de informações não relevantes e, consequentemente, ele é recrutado no momento em que um bilíngue precisa suprimir a língua não apropriada para dada situação comunicativa.

Faz-se mister apontar que a presença de componentes de domínio geral no MUC vai ao encontro dos apontamentos de Jackendoff (2002[11]). Em outras palavras, o processamento linguístico de fato recruta sistemas de combinação independentes. Além disso, o fato da natureza dos componentes Unificação e Controle ser de domínio geral é corroborado por dados experimentais. Inclusive, durante sua conferência, o Prof. Hagoort caracterizou o componente Unificação como sendo compartilhado com domínios como aritmética e música. De fato, Van de Cavey e Hartsuiker (2016[13]) encontraram indícios de relações estruturais entre frases, música e aritmética. Além disso, o componente Controle envolve áreas que, por exemplo, são tradicionalmente associadas à capacidade de memória de trabalho (p. ex., o córtex pré-frontal dorsolateral) e que podem ser ativadas durante a compreensão de frases (CAPLAN; WATERS, 1999[12]).

A busca por um método experimental apropriado para estudar aspectos do processamento e representação linguísticos é contínua. À luz disso, o Prof. Hagoort explicou que pesquisas recentes têm apresentado sucesso ao utilizar o paradigma de priming sintático para abordar tais aspectos. Priming sintático é caracterizado como um efeito de facilitação que o processamento de um estímulo A anterior causa no processamento de um estímulo B posterior2. Dentre outras características do paradigma de priming, a sua capacidade de determinar se dois estímulos compartilham algum nível de representação é de suma importância para estudar aspectos do processamento e da representação do conhecimento linguístico (BRANIGAN; PICKERING, 2017[14]). Assim, se o Modelo Clássico fosse preciso e a compreensão e a produção da linguagem fossem sustentadas por diferentes estruturas cerebrais, efeitos de priming entre modalidades distintas não deveriam ser observados.

Tais efeitos de priming sintático entre modalidades se referem à ocorrência de efeitos de priming entre estímulos que não compartilham a mesma modalidade (p. ex., de produção para compreensão ou de compreensão para produção). Em uma série de experimentos utilizando eventos relacionados à ressonância magnética funcional (fMRI), Segaert e colegas (2012) encontraram, independentemente da modalidade, efeitos de adaptação similares no giro frontal inferior esquerdo, no giro temporal médio esquerdo e na área motora suplementar em ambos os hemisférios. Em outras palavras, eles observaram o recrutamento das mesmas populações neuronais durante a compreensão e a produção de linguagem. Assim, como apontado pelo Prof. Hagoort, tais resultados podem ser apresentados como evidências contrárias ao Modelo Clássico.

Afastando-se um pouco do tópico da unificação sintática, o Prof. Hagoort abordou também os processos de unificação semântica. De fato, para compreender e produzir uma língua com sucesso é preciso ir além da construção de frases sintaticamente adequadas. Ou seja, alguma forma de operação combinatória deve ser implementada para que uma interpretação coerente seja gerada a partir de um enunciado de múltiplas palavras (HAGOORT, 2017[15]). Tendo como base algumas questões associadas às especificidades da unificação semântica, duas abordagens contrárias surgiram: a composicionalidade estrita e os modelos de situação (KINTSCH; RAWSON, 2005[16]). De acordo com a primeira, a sintaxe está no cerne do maquinário que realiza operações de unificação. Por outro lado, a segunda abordagem propõe que expressões linguísticas sejam instruções de processamento usadas para criar uma representação mental. Como evidência das abordagens baseadas em modelos de situação, o Prof. Hagoort apresentou o estudo de Van Berkum et al. (2008[17]), que utilizou potenciais relacionados a eventos (ERPs) para investigar a unificação de informações sobre o falante e a mensagem. Os resultados mostraram que a compreensão da linguagem rapidamente considera o contexto social. Inclusive, essa integração entre as informações sobre o falante e a mensagem ocorre nos primeiros 200-300 milissegundos após o onset de uma palavra. Dessa forma, a construção de significado só é possível quando aspectos sociais do uso da língua são considerados (VAN BERKUM et al., 2008[17]).

Nos momentos finais de sua fala, o Prof. Hagoort mencionou a hipótese de que o sistema linguístico envolva componentes que vão além das regiões clássicas apontadas por Broca e Wernicke. Nesse sentido, o processamento da linguagem depende de uma rede neuronal muito mais extensa, constituída por regiões especializadas e por áreas periféricas de domínio geral (FEDORENKO; THOMPSON-SCHILL, 2014[18]). Tal periferia é composta por circuitos que não são especializados para a linguagem, mas que precisam ser recrutados para viabilizar uma interação linguística eficiente. Um exemplo é a rede atencional, indispensável para perceber fenômenos linguísticos como a topicalização tanto na compreensão quanto na produção de frases. Outro exemplo é a rede relacionada à Teoria da Mente, que tem um papel central na geração de inferências sobre a mente do outro durante o processo de (de)codificação da língua e de construção de frases (JACOBY; FEDORENKO, 2018[19]; PAUNOV; BLANK, FEDORENKO, 2019[20]).

Em suma, o Prof. Hagoort teve êxito ao apresentar tópicos importantes da área da psicolinguística e da neurobiologia da linguagem. Por exemplo, ele explicou que a conectividade da rede da linguagem é muito mais extensa do que antes imaginado. Além disso, a distribuição de trabalho das regiões principais do córtex perissilviano esquerdo na compreensão e na produção é estruturalmente diferente do que proposto pelo Modelo Clássico. Tais inconsistências entre esse modelo e evidências experimentais mais recentes acerca da arquitetura cognitiva do processamento linguístico criam um terreno fértil para o nascimento de novas abordagens sobre a neurobiologia da linguagem. Assim, a perspectiva do Professor Hagoort é tripartida (Memória, Unificação e Controle) e seu modelo divide o trabalho dessas partes de forma não absoluta. Em outras palavras, as operações do sistema da linguagem dependem de redes dinâmicas de domínio geral e específico que permitem que o cérebro humano desvende as intenções por trás dos enunciados dos falantes. Por fim, Prof. Hagoort apontou que todos esses processos são cruciais para formar e aperfeiçoar as operações linguísticas em toda a sua glória.

Referências

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