Afinal, o quão coerente é a fala nas comunidades linguísticas?

Ismael C. Freitas,
Bruna S. dos Santos

Resumo

Fundamentado nos trabalhos de Labov (2006), Becker (2016), Oushiro (2015, 2019), Mendes (2016; 2019) e Eckert (2008), Gregory Guy promove em sua fala uma discussão acerca da coerência dialetal nas comunidades de fala. Em primeiro lugar, Guy procura evidenciar como a experiência linguística individual é usada para construir e performar identidades sociais. Em segundo, partindo dos trabalhos de Labov e de Becker, o conferencista toma como premissa a heterogeneidade social e individual da língua, para, por meio das pesquisas de Guy, de Mendes e de Oushiro, discutir a noção de coerência dialetal. Dessa forma, calcado em análises de dados empíricos, o palestrante prevê uma diminuição da coerência impulsionada pelo contato entre línguas e pela simplificação das complexidades linguísticas promovidos pela globalização.

Texto

Até que ponto os falantes em uma comunidade usam, de forma paralela, as múltiplas variáveis disponíveis a eles? É através desse questionamento que podemos compreender a construção da hipótese do professor Gregory R. Guy[1] acerca da coerência dialetal – conceito que busca investigar se as múltiplas variáveis coexistentes se distribuem similarmente extra e intralinguísticas na comunidade de fala. Procurando responder se há ou não sistematicidade na correlação entre variáveis, isto é, se elas possuem simultaneamente uma estratificação social, linguística e estilística, o conferencista apresenta alguns estudos quantitativos e conclui que a coerência depende da estrutura social. E, com isso, a partir dos resultados analisados, Guy infere que quanto maior for a diferenciação social mais incoerentes são os padrões de uso das variáveis linguísticas. Partindo dessa premissa, o horizonte final da fala parece ser a coerência face à globalização moderna. Segundo a argumentação, há uma tendência das línguas a se tornarem mais incoerentes, pois, a globalização amplia os horizontes linguísticos e aumenta o contato entre as línguas, promovendo uma grande estratificação social. Com a finalidade de apresentar a comunicação ao leitor, tentaremos reconstruir os passos que o professor toma em sua arguição.

Assim, em primeiro lugar, devemos nos perguntar: o que é língua, como defini-la e onde encontrá-la?

O conceito de língua que fundamenta o trabalho é o de um conjunto de elementos linguísticos presentes na mente e verificados no uso dos falantes. Encerrando nessa definição um viés descritivo, o conferencista aponta que o objeto de análise linguística deve ser as comunidades de falas complexas, formadas por falantes diversos. Nesse sentido, constituída por uma heterogeneidade ordenada, a língua é inerentemente variável e inerentemente estruturada (cf. WEINREICH et al., 2006 [1968][2]). Diante dessa diversidade e variabilidade, Guy questiona-se: há coerência no uso da língua?

Antes, porém, faz-se necessário compreender o que é uma comunidade de fala. Conforme enunciado pelo professor, para constituir uma comunidade de fala os falantes precisam: compartilhar elementos linguísticos; compartilhar normas e avaliações acerca da língua; estabelecer uma densidade de comunicação interna relativamente alta. Na sequência, Guy apresenta dois tipos de comunidades de fala. O primeiro refere-se às comunidades “aninhadas”, isto é, que se aglutinam e se restringem a grupos maiores ou menores, como uma boneca russa linguística. O segundo tipo diz respeito às comunidades interseccionais, compostas por membros que fazem parte simultaneamente de duas comunidades de fala. Configurando, então, a primeira dimensão com a qual Guy aborda o tema da conferência, a comunidade de fala remete a uma estrutura social em que as variáveis linguísticas assumem uma função constituidora e delimitadora.

A segunda dimensão diz respeito à variação interna ao falante. Mais especificamente, relaciona-se à heterogeneidade na fala de cada indivíduo, que usa diferentes variáveis de acordo com o estilo, o contexto, o interlocutor etc. Weinreich, Labov e Herzog entendem que o “domínio de um falante nativo de estruturas heterogêneas [...] é parte da competência linguística monolíngue” (WEINREICH et al., 2006, p. 36[2]). Isto posto, Guy afirma que a língua é a forma mais expressiva de comportamento social disponível a nós. Ela é a ferramenta central para construir e performar nossas identidades.

Na continuidade, Guy nos presenteia com um exemplo simpático da experiência linguística de seu próprio filho. Na infância, Jesse teve contato com o inglês de três países diferentes: Estados Unidos, Austrália e Canadá. Nos dois primeiros, há diferenciação fonêmica entre /ɔ/ e /ɑ/, enquanto no Canadá as duas vogais não têm valor distintivo. Na sua trajetória, Jesse adquiriu essa diferenciação antes de mudar-se para Toronto e a manteve nos anos iniciais em que morou lá. No entanto, em algum momento parou de produzir a distinção. Quando o pai o interroga sobre o fenômeno, este devolve que, sim, consegue fazer a diferenciação, mas questiona o porquê de querer produzi-la. Guy compreende esse momento como crucial e, refinando a pergunta do próprio filho, o conferencista indaga: por que você diria algo de uma forma e não de outra? No caso específico do menino, tratava-se do desejo de aceitação e pertença ao novo grupo em que estava se inserindo. Jesse aprendeu a pronúncia canadense e a adotou a partir de uma escolha pessoal para construir e expressar uma identidade social. E, como resultado dessa adoção, ele aumentou a coerência do grupo.

No entanto, quando olhamos para o comportamento individual de Jesse, podemos enxergar esse episódio como assistemático. Nesse sentido, para explicar as variações linguísticas dos indivíduos é necessário entender a comunidade em que ele está inserido. As comunidades são fontes de associações indiciais, das quais os falantes evocam para fazer escolhas de uso e, por decorrência, performar identidades. Pode-se notar que essas associações são multidimensionais, pois compreendem uma série de estratificações sociais. Considerando isso, Guy se pergunta qual seria o nível de agentividade dos falantes acerca de seu uso, o quão fluido são as escolhas individuais a respeito das variáveis e o quão coerente é o comportamento da comunidade em relação a suas avaliações linguísticas e os significados sociais.

A fim de ilustração, Guy discute o trabalho de Mendes (2016[3]) sobre a concordância nominal em São Paulo, variável saliente que possui uma norma cristalizada na comunidade. Nesta pesquisa, o autor fez uso de quatro vozes masculinas e aplicou a técnica matched-guised (LAMBERT, 1967 apud LABOV, 1972[4]) – usada para observar a avaliação subjetiva de ouvintes em relação a uma variável. Foram observados três componentes principais nas respostas (competência linguística, amigabilidade e efeminidade) com o objetivo de investigar a percepção de masculinidade. Os resultados de Mendes mostraram que a produção da marca zero é entendida como proveniente de pessoas menos escolarizadas e menos efeminadas. Para todos os ouvintes, a escolaridade foi a variável mais relevante. Assim, como fator mais significativo, a escolaridade tem efeito sobre a avaliação da fala individual. Logo, quanto mais saliente1 for uma variável na comunidade de fala, mais relacionada à concepção de certo e errado ela é.

Desse ponto, Guy volta-se para Labov para mostrar um exemplo clássico de uma variável saliente: a estratificação do (r) em Lower East Side. Nesse estudo, Labov verificou que a incidência de /r/ aumentava em relação à formalidade do contexto, definindo-a, assim, como uma marca prestigiada. Na continuidade, Guy faz uso de um segundo estudo na cidade de Nova York, cinquenta anos após o primeiro (BECKER, 2016[5]). Este último evidenciou a correlação entre o alçamento das vogais em BOUGHT e BAD e a presença/ausência de (r). Os resultados revelaram uma mudança das variáveis antes predominantes para Labov, demonstrando aí uma forte correlação entre as três variáveis, especialmente entre a vogal de BOUGHT e o /r/.

Em uma pesquisa do próprio conferencista no Rio de Janeiro, Guy (2013[6]) também procurou correlacionar quatro variáveis: duas fonológicas (apagamento do /s/ e desnasalização em sílabas átonas finais) e duas sintáticas (concordância nominal e verbal). No entanto, interessa questionar o resultado da correlação da dupla de variáveis fonológicas entre si, pois, com pouca correlação, pode-se entender que ambas variáveis são mais abstratas e, portanto, seus significados sociais são menos evidentes. De qualquer maneira, a conclusão de Guy demonstra que os falantes tendem a correlacionar variáveis que se assemelham.

Em outro estudo, agora na cidade de São Paulo (GUY et al., 2019[7]), a investigação concentrou-se em seis variáveis, três fonológicas e três sintáticas. Os resultados desta pesquisa demonstram os efeitos da consciência do falante em relação às correlações operadas: por exemplo, as três variáveis sintáticas e o /r/ retroflexo são variáveis salientes e, portanto, correlacionam-se acima do nível da consciência, enquanto que, por outro lado, o apagamento do (r) em coda, por ser uma variável fonológica não saliente, correlaciona-se com as variáveis sintáticas de forma inconsciente. Do mesmo modo, as duas variáveis fonológicas — apagamento do (r) e alternância do /r/ — também se correlacionam abaixo do nível da consciência social.

Por fim, Guy propõe algumas conclusões acerca da coerência dialetal. O enquadramento geral da problemática parece se dar por conta das mudanças na estrutura social propiciadas pela globalização. Através do crescimento de falantes L2 e D2 e o contato entre línguas, as complexidades linguísticas tendem a inibir-se nas línguas ocidentais. De fato, as diversidades sociais e o contato entre línguas promovem o crescimento da incoerência refreando a preservação e a transmissão de complexidades linguísticas. Todavia, por meio da transmissão intergeracional, o conferencista prevê que as línguas manterão sua coerência, mesmo que não sejam tão coerentes como seus estágios anteriores.

Referências

THE (in)coherence of linguistic communities. Conferência apresentada por Gregory R. Guy [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 26min 09s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JKBE9vW1pL0. Acesso em: 11 junho de 2020.

BECKER, K. Linking community coherence, individual coherence, and bricolage: The co-occurrence of (r), raised bought and raised bad in New York City English. Lingua, v. 172-173, p. 87-99, march-april, 2016.

ECKERT, P. Variation and the indexical field. Journal of Sociolinguistics, v. 12(4), p. 453-476, 2008.

GUY, G. R.; MENDES, R. B.; OUSHIRO, L. Indexicality and cohesion. In: International Conference on Language Variation in Europe 10, 2019, Leeuwarden/Ljouwert. ICLaVE10 Program, 2019. v. 1.

GUY, G. The cognitive coherence of sociolects: How do speakers handle multiple sociolinguistic variables? Journal of Pragmatics, v. 52, p. 63-71, 2013.

LABOV, W. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.

LABOV, W. The social stratification of English in New York City. - 2.ed. - New York: Cambridge University Press, 2006.

MENDES, R. B. Diphthongized (en) and the indexation of femininity and paulistanity. Cadernos de Estudos Linguísticos, v. 58, p. 1-23, 2016.

WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG M. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2006 [1968].