Feminismos e linguagens para repensar o Brasil
Resumo
A mesa redonda ocorreu no dia sete de junho de dois mil e vinte, a partir das dezesseis horas (com duração de uma hora e trinta e sete minutos) e ficou disponível no site da Abralin ao Vivo. Depois de explicar um pouco sobre o que consiste o evento virtual, a moderadora Paula Mesti (UNESPAR) apresentou a trajetória científica de cada uma das palestrantes. A moderadora explicou que o objetivo da mesa redonda seria refletir sobre os diversos feminismos enquanto possibilidades de posicionamento do sujeito no mundo, com as ciências da linguagem dialogando com a filosofia. Ambas vão ao encontro do militantismo feminista, promovendo uma reflexão científica interseccional sobre as diversas formas de opressão sofridas no Brasil contemporâneo, representadas de modo mais amplo do eixo tóxico machismo-racismo-capitalismo, que busca conquistar a linguagem e os meios de produção, evitando que essas minorias tenham voz e que sejam efetivamente ouvidas.
Texto
Júlia Costa[1] iniciou explicitando que, mesmo que as relações de poder massacrem subjetividades na sociedade, existe a união dos sujeitos como elemento fundamental para transformar valores e instituições. O feminismo pode ser pensado como movimento social porque tem como base: o reconhecimento da necessidade de luta das mulheres como específica e sistematicamente oprimidas; a certeza que as relações entre homens e mulheres não estão inscritas na natureza e existe a possibilidade política de transformação.
O recorte da pesquisa da palestrante é o ciberfeminismo: um desdobramento digital do feminismo, que trata da luta por direitos das mulheres e da luta pelos modos de produção da linguagem, que reconstrói subjetividades (e vem sendo utilizada como ferramenta pelo turbomachismo que ocupa os espaços tecnológicos na inserção no ambiente digital e na dominação das áreas de produção dos meios, aplicativos, sites, códigos e algoritmos que ditam as regras da interação online).
Júlia Costa frisa que a Análise do Discurso enfoca as relações da língua com a classe e deve ser cada vez mais interseccional (analisando, refletindo e posicionando-se sobre as diversas opressões), abrangendo os sentidos construídos no discursos que integram gênero e raça, englobando a análise dos discursos do militantismo digital e do feminismo que se consolida na internet e encarna o ciberativismo. A construção conjunta e contínua das identidades de gênero são um terreno a ser explorado nas perspectivas linguísticas, discursivas e argumentativas do ciberativismo.
No contexto brasileiro, Júlia Costa destaca que os discursos do feminismo digital são coconstruídos pela máquina e a implicação entre o discursivo e as práticas técnicas não podem ser pensadas separadamente: a hashtag, por exemplo, é um elemento linguístico e carrega as funcionalidades da máquina – é um hiperlink que dá acesso a um fio discursivo acerca de determinado tema. Para analisar os movimentos sociais contemporâneos é crucial pensar na relação entre sujeito, sociedade, linguagem e tecnologia.
Fatos recentes na política do Brasil – deposição da presidenta Dilma, ascensão de Temer, prisão de Lula, eleições presidenciais de dois mil e dezoito, crises da pandemia Covid-19 – demonstram fortes mobilizações sociais no ambiente digital. Esses tecnodiscursos concretizam posicionamentos ideológicos, encarnam visões de mundo, constroem subjetividades, propõem novas formas de reivindicação.
A ressignificação é usada no feminismo como forma de dar visibilidade a questões importantes dos movimentos sociais, combatendo a dominação: é um processo técnico-léxico-discursivo que apreendem denominações ou discursos ofensivos para reapropriá-los e transformá-los em uma bandeira identitária de orgulho (por exemplo, o termo vadia intitula hoje uma marcha feminista; a palavra fraquejada como símbolo de orgulho, força, poder, engajamento e luta pelo movimento #elenão, após Bolsonaro ter usado tal termo pejorativamente para se referir à sua filha). Enquanto tecnodiscurso, a ressignificação é uma prática linguística e material de resposta a um enunciado ofensivo, efetuada pelo sujeito agredido. O novo uso, quando aceito coletivamente, produz uma reparação e uma resistência.
Já na apresentação da Professora Glória França foi ressaltada a relevância da tomada de uma posição ética, plural e diversa, dedicando sua fala às mulheres negras, indígenas e pessoas do movimento transfeminista, buscando contribuir para fazer circular e repetir sentidos que apontem para formas de vida, contrapostas às políticas de morte que circundam nosso cotidiano. A professora enfatizou que as fake news disseminadas pelo partido político do atual governante do Brasil têm a intenção de controlar, limitar e perseguir o sexo e a sexualidade (um exemplo disso foi a postagem feita pelo presidente Jair Bolsonaro, no twitter, no ano de dois mil e dezenove, na qual ele compartilhou um vídeo de conotação sexual, expondo a prática de golden shower).
Glória França utiliza a formulação do presidente, que precede o vídeo (Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto:), para parafraseá-la, expondo imagens e notícias diversas, impactantes, ameaçadoras, doloridas e violentas (que se encaixariam muito bem – e até melhor – do que tal vídeo, caso fossem substituídas): imagens de mãos simulando armas (mãos sem rostos/corpos, mãos do presidente e de uma criança em seu colo repetindo tal gesto); mãos de Bolsonaro segurando uma arma ou imitando estar com uma (em situações diferentes); um adolescente segurando um cartaz com a pergunta E se fosse o filho da patroa?, em alusão à morte de Miguel Santana, de cinco anos, que caiu do nono andar de um prédio, quando estava sob os cuidados da ex-patroa de sua mãe; imagens de placas de ruas denominadas Marielle Franco e Black Lives Matter.
A palestrante utilizou os exemplos para pensar e discutir manifestações feministas e antirracistas que circulam em ambiente digital, enfocando o papel da linguagem enquanto discurso: ou seja, para além da língua, incluindo silêncios e corpos como constitutivos da reprodução dos sentidos dominantes e dos gestos de resistência. Glória França demonstrou a relação da escrita e do corpo como lugar e ferramenta de movimentos de contra identificação e resistência a sentidos dominantes sobre as mulheres, com imagens do coletivo Negração (em que mulheres seguravam cartazes com dizeres machistas e racistas) e da manifestação da ONG Davida (em defesa das trabalhadoras sexuais, com frases escritas no próprio corpo).
Continuando sua explanação acerca das concepções de feminismos e discursos para além da língua em si, relacionando-os com a linguagem do corpo e o digital, ela apresentou imagens de mãos como centro do imagético-discursivo: mãos coletivas, plurais, sociais, engendradas, racializadas, que afirmam, se protegem, se posicionam e enfrentam; de mulheres que se dão as mãos; mãos abertas, com a #elenão escrita; mãos que seguram umas às outras, com a afirmação Ninguém solta a mão de ninguém; mãos empunhadas, para reforçar que Vidas negras importam.
Márcia Tiburi, por sua vez, iniciou frisando a necessidade de disputar os espaços - incluindo a esfera pública, contemporaneamente destruída pelo fascismo. A professora colocou que o diálogo sempre possui uma dimensão subjetiva, analítica, crítica e envolve o processo interior. Ela contou que desenvolveu o conceito de cotidiano a partir do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos: um lugar só se torna cotidiano, quando marcado pela dimensão da linguagem; nos lugares onde a linguagem falta, é como se desaparecesse a existência, a ambientação que dá significado ao cotidiano.
A filósofa menciona o cotidiano digital como o mundo virtual no qual se habita e que, no momento atual da pandemia, torna-se fundamental. Já o cotidiano analógico (lugar onde nos constituímos como seres humanos) aparece como rememoração porque foi perdido por conta da experiência do vírus. O feminismo no cotidiano digital, como teoria ético-política que demanda uma ação, expande-se para um engajamento além da academia disciplinar, fechada e de caráter ornamental (para bonito), e tem o objetivo de destruir o patriarcado e o fascismo.
Ela acrescenta que pessoas que buscam mudar esse cenário, tornam-se vítimas de discursos de ódio, misoginias, maldades, violências simbólicas e físicas; mesmo com tais adversidades, essa é a tarefa de intelectuais, professoras, pensadoras, ativistas, militantes e pessoas que querem um mundo mais justo para se viver. Márcia Tiburi reitera ser necessário ter vivência, amadurecimento, e elaboração interna acerca do feminismo para escrever sobre ele. A professora discutiu a sexologia política do ponto de vista de um sistema semiótico que funciona nos níveis do enunciado, do imagético e da produção de artefatos.
Ela exemplificou que padres, fundamentalistas neopentecostais e políticos usam gênero contra o próprio gênero, e ideologia de maneira distorcida, em um procedimento de inversão, com a finalidade de atingir as massas: o sexo virou uma arma de guerra dentro de um jogo astucioso de poder contra os estudos de gênero, para abalar palavras e expressões, fazendo com que esses termos sejam ressignificados, passando a valer contra eles mesmos. Trata-se de uma guerra híbrida contra o gênero, em que (nesse sistema semiótico) existem tags sempre repetidas: homofóbicas, anti-petistas, misóginas, racistas, etc.
Quanto à produção dos artefatos performativos/performáticos do sexo empoderado, a filósofa exemplifica Bolsonaro e seus filhos como personagens do tipo macho histérico: gritam, falam palavrões, ameaçam, empunham armas, incorporam o fascismo, possibilitando a eles se apresentarem mais masculinizados e astuciosos (já que não possuem traços clássicos da forma física do super-macho/macho alfa). Dessa forma, a histeria machista se apresenta como um caráter grotesco da sexologia política - ela explica o uso dessa expressão porque a situação brasileira atual envolve o debate sobre sexo em sentido estrito, mais do que gênero.
Foram respondidas questões feitas no chat do site: em uma delas, Márcia Tiburi, enfatizou a necessidade de um feminismo teórico-prático com a mais próxima, que misture pessoas das mais diversas procedências, permitindo que todas as mulheres (e pessoas que se auto denominam mulheres, ou não) participem da construção do mundo onde estão, desenvolvendo suas estórias, ocupando espaços do poder. Isto envolve práticas, ações, movimentos, posturas, trocas, políticas de escuta e presença consistente de um feminismo que transcenda cercados disciplinares para além das disputas masculinistas. Envolve persuadir que as políticas machistas e patriarcais não servem mais, e é preciso driblar o narcisismo masculinista na construção da hegemonia. A marca deixada pelas palestrantes foi a indubitável urgência por um [re]pensar e agir na disseminação de assuntos tão fundamentais.
Referências
FEMINISMOS e linguagens: possibilidades para (re)pensar o brasil. Mesa-redonda apresentada por Márcia Tiburi; Júlia Lourenço Costa; e Glória França [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 37min 0s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dGA_UHPoTGk Acesso em: 07 jun 2020.