A importância dos estudos historiográficos nas ciências da linguagem

Luciana Debonis,
Jéssica Máximo Garcia

Resumo

Esta resenha tem o objetivo de compartilhar questões centrais discutidas na mesa redonda promovida pela Abralin Ao Vivo que contou com a presença de quatro pesquisadores da Historiografia da Linguística, discutindo tendências atuais nos estudos historiográficos da linguagem no Brasil. As comunicações apresentadas abordaram, respectivamente, a metodologia de organização de base documental, a partir de portais de documentação, os critérios e pressupostos teórico-metodológicos da História do ensino de Língua Portuguesa e o antagonismo histórico entre os papéis de um gramático e um linguista. As reflexões apresentadas colocaram em perspectiva a importância dos estudos historiográficos para a ciência da linguagem, mostrando três linhas de estudo que podem servir de inspiração e despertar interesse para várias outras linhas de pesquisa.

Texto

A mesa[1] formada por quatro pesquisadores da área dos estudos da Historiografia da Linguística, em que três deles proferiram suas respectivas comunicações, moderadas por Ronaldo de Oliveira Batista (UPM/CNPq), objetivou discutir as tendências das pesquisas em Historiografia da Linguística (HL) na atualidade no Brasil. Batista fez a introdução da mesa definindo História da Linguística como o conjunto de eventos que tratam da linguagem ao longo do tempo e esclarece que fazer HL é estudar tais eventos, bem como todo pensamento em torno da linguagem, dentro de um determinado recorte temporal.

A primeira comunicação realizada por Marli Quadros Leite (USP), intitulada Base documentária: o primeiro passo para a pesquisa histórica, abordou a importância do desenvolvimento de uma base documentária como etapa da pesquisa em HL que, infelizmente, é vista cientificamente como menos importante, por não tratar de uma fundamentação teórica e metodológica, apesar de fazer parte de um método de pesquisa nas áreas que contam com análise de dados. Como resultado observamos, no Brasil, um atraso no início da elaboração de bases de dados robustas para estudos da linguagem e somente no final do século XX o trabalho de organização de corpus1 começou ser desenvolvido, tornando-se essencial na metodologia dos estudos historiográficos.

Segundo Leite, a formação de um corpus para base documentária precisa seguir parâmetros relacionados ao campo de pesquisa que se pretende atender. Dessa maneira, o conceito de organização de um corpus deve estar pautado no desenvolvimento de critérios, na seleção de textos metalinguísticos, no conhecimento linguístico e na divulgação eletrônica. Um corpus organizado para atender um idioma no formato heterogêneo (do ponto de vista dos gêneros discursivos e textuais) pode resultar em um material que servirá para diversos escopos de pesquisa e fonte de dados.

Leite encerrou sua comunicação ressaltando que um dos resultados do enorme trabalho na organização de um corpus é a possibilidade de o pesquisador estudar a fundo um autor em sua área, além de promover conteúdo colaborativo para outros pesquisadores, impulsionando o crescimento dos estudos científicos da linguagem.

A segunda comunicação, de Neusa Barbosa Bastos (UPM/PUC-SP), intitulada Ensino e Historiografia da Linguística, apresentou critérios utilizados para o desenvolvimento da pesquisa historiográfica em materiais didáticos, que envolve, principalmente, o estudo em desenvolvimento no Grupo de Pesquisa Historiografia da Língua Portuguesa, coordenado por Bastos e que defende um entrelaçamento entre HL e Ensino de Língua Portuguesa. Três autores nortearam as explanações de Bastos: Konrad Koerner, Pierre Swiggers e Sylvain Auroux. Cada um desses autores contribui de forma diversa para o fazer historiográfico. Alguns critérios e princípios desses autores são responsáveis por traçar caminhos e procedimentos teórico-metodológicos para trabalhos que envolvem a Historiografia da Língua Portuguesa.

Um dos princípios de Koerner é a metalinguagem como instrumento utilizado pelo historiógrafo da língua e que leva em conta três aspectos: contextualização, imanência e adequação. A contextualização procura compreender um conhecimento sobre o campo de investigação e da história geral. A imanência corresponde a discussões sobre o objeto a ser investigado, podendo considerar objetos metalinguísticos e não metalinguísticos, por exemplo, ao investigar uma gramática, temos um objeto metalinguístico, porém é necessário levar em conta as leis educacionais do período, neste caso, o objeto não metalinguístico. Por fim, há a adequação, que busca possíveis diálogos entre aspectos de uma obra do passado com aspectos teórico-metodológicos do presente do pesquisador, se necessário.

Os principais pressupostos de Swiggers, apresentados por Bastos, são parâmetros e objetivos. Os parâmetros são: cobertura (período, campo geográfico, temática), perspectiva (interna ou externa) e profundidade (determinada pelo historiógrafo ou material). Além disso, Swiggers apresenta um triplo objetivo para o historiador do ensino de línguas: atitude reflexiva, formas descritivas e contextualização do ensino. Esses objetivos consistem em refletir a respeito do ensino de uma língua, descrever as formas utilizadas no ensino da língua e contextualizar a língua. A partir desses elementos, Swiggers constitui um quarto objetivo, a fim de apreender o modo com que os autores organizam seus argumentos na relação com os leitores.

Por fim, temos Sylvain Auroux, que está ligado também à questão da metalinguagem e considera os trabalhos sobre a história da linguística em três categorias: aqueles que constituem uma base documentária; aqueles homogêneos às práticas cognitivas que derivam; aqueles que voltam ao passado para legitimar uma prática contemporânea.

Ao analisarmos um material didático de escola básica, por exemplo, temos a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que norteia a produção desses materiais, mas em outras épocas estavam presentes outras leis e documentos oficiais. Sendo assim, é possível destacar que o entrelaçamento entre o material de ensino e o contexto histórico e educacional de cada época é essencial para as pesquisas dessa área, como defendido por Bastos. Posto isto, Koerner, Swiggers e Auroux são grandes influências, pois a partir dos seus princípios e critérios, somos capazes de nortear pesquisas de Ensino e HL.

A terceira comunicação contou com a fala de Ricardo Cavaliere (UFF), que trouxe à mesa o tema Gramático, Linguista e Falante: uma trajetória de conflitos, no qual abordou de maneira enriquecedora as questões que geram rivalidade entre os papéis de gramático e linguista, a partir da visão do leigo. Cavaliere fundamentou sua reflexão em conceitos sapirianos que nos levou a definições sobre diferenças das funções de um gramático e um linguista.

O gramático, no conceito sapiriano, é um indivíduo que focaliza seu trabalho exclusivamente nas estruturas gramaticais do texto e, a partir da visão de um leigo, é visto como quem trata o texto com frieza, sem gosto pelo conteúdo. A partir de uma perspectiva pragmática, o leigo demonstra interesse pessoal por funções que lhe proporcionem retorno financeiro e, dentro dessa concepção, a função do gramático é mais fácil de ser entendida e aceita. O gramático, para o leigo, é o indivíduo que ensina a língua e tem bom desempenho no conhecimento e na aplicação dela. O leigo, geralmente, convive ou conviveu grande parte de sua formação educacional tendo como referência um gramático.

Por outro lado, a linguística não consegue demonstrar claramente, para o leigo, qual seria a função do linguista dentro de sua área e qual sua compensação financeira no exercício do seu trabalho. Assim, Cavaliere avançou na reflexão explicando que com um estereótipo estabelecido para o gramático, o leigo tem pleno entendimento do que um gramático faz, porém não faz ideia da função de um linguista.

O linguista fica cercado dentro de um ambiente acadêmico em que, apesar de ter consciência da relevância do seu trabalho, não possui visibilidade e importância reconhecida fora da comunidade acadêmica. O leigo não reconhece o linguista como um cientista e, por vezes, seus estudos são questionáveis, uma vez que se assume a dúvida por não confiar na perspectiva científica do trabalho do linguista, resultando, consequentemente, num distanciamento do interesse por parte do leigo nas ciências da linguagem.

Segundo Cavaliere, no Brasil, em particular, a rivalidade entre gramáticos e linguistas ocorreu em um contexto político, resultado do período do regime militar que teve início a partir da década de 1960. Nessa ocasião a universidade tornou-se símbolo de resistência ao regime e o linguista assumiu um papel de impulsionador do movimento de resistência, dentro do ambiente acadêmico; enquanto isso, o gramático, marcado por sua característica de domínio do texto, recebeu o estereótipo de protetor das normas do regime em vigor. O professor conclui que tal visão antagônica entre os papéis já não faz sentido atualmente e não é mais observada da mesma maneira.

A mesa História da Linguística: o que é? apresentou diferentes estudos da área da HL, a partir da comunicação dos três convidados que representam diferentes tendências que a área assumiu no Brasil. Sendo assim, com as apresentações compreendemos a elaboração de uma base documentária para disponibilização de materiais que são fundamentais fontes de dados para a pesquisa historiográfica, refletimos sobre alguns critérios e pressupostos teórico-metodológicos que sustentam análises sobre a História do ensino de Língua Portuguesa e vimos que a oposição entre gramático e linguista não faz mais sentido atualmente, já que cada um possui a sua função e relevância para a ciência da linguagem.

As oportunidades de discussões como esta mostram a importância de pensar a história do conhecimento linguístico de cada período, reforçando a importância do estudo historiográfico na pesquisa acadêmica e na formação de linguistas e professores de língua. Aspecto que, infelizmente, ainda não é compreendido dessa forma no campo das ciências da linguagem.

Referências

HISTÓRIA da Linguística: o que é? Conferência apresentada por Marli Quadros Leite, Neusa Barbosa Bastos e Ricardo Cavaliere [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 55min 54s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x0MtWPkkSjQ&t=4933s. Acesso em: 02 jun 2020.