Por uma linguística de base antropológica

Kedilen Dutra,
Gabriela Rodrigues Santana,
Mariana Machado Pozza

Resumo

A conferência ministrada pelo Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores parte dos conceitos de linguagem, línguas e falante para subsidiar uma Linguística de base antropológica. Assim sendo, o conferencista alicerça-se, fundamentalmente, nos estudos de Humboldt, Saussure e Benveniste, bem como nas indagações epistemológicas de Hagège, Milner e Kant. Tal enquadramento permite que Flores entenda a linguagem como algo que: a) é propriedade humana; b) é realizado nas línguas; c) encontra existência no falante ao ser realizada nas línguas. Assim, o que temos na exposição é uma fagulha para a prospecção de uma Linguística que está essencialmente ligada à natureza do humano e à categoria de enunciação, concebida à luz dos estudos benvenistianos.

Texto

Linguagem. Línguas. Falante. Três construtos teóricos definidores do humano e incontornáveis aos linguistas, logo, também essenciais para a Linguística. É assim que o Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores (UFRGS) instaura a tese da conferência intitulada “A Linguística como reflexão antropológica: a linguagem, as línguas e o falante”[1], realizada no dia 01 de junho de 2020, com mediação de Carmem Luci da Costa Silva (UFRGS), parte da programação do evento Abralin Ao Vivo – Linguists Online. Alicerçado nos estudos desenvolvidos por Humboldt, Saussure e Benveniste e nas indagações epistemológicas de Hagège, Milner e Kant, o Linguista brasileiro, responsável pela disciplinarização da Linguística da Enunciação no Brasil, promove uma reflexão prospectiva para os estudos da linguagem; isso por que o Pesquisador coloca em cena o savoir-faire dos linguistas. Para Flores, tal fazer não pode se desviar da reflexão sobre o humano e do fato de que todos os falantes falam por meio de uma ou mais línguas e têm uma experiência vinculada a esse uso; sendo assim, nesta perspectiva, fazer Linguística é propor uma reflexão antropológica, pois aborda aspectos ligados ao humano na linguagem. Dessa forma, o linguista, ao falar da linguagem, problematiza o humano.

Valdir Flores, inspirado no linguista francês Claude Hagège, lança mão das seguintes perguntas, estruturantes do percurso a ser trilhado em sua exposição:

a) que lugar cabe à linguagem na definição de homem?

b) que lugar cabe ao homem na definição de linguagem?

Tais indagações são disparadoras para o que virá adiante, visto que ambas questões possibilitam o entendimento do lugar do homem nos estudos da linguagem. Para tanto, a conferência organiza-se da seguinte forma: em um primeiro momento, são abordadas as noções de linguagem, língua(s) e falante, bem como as propriedades existencial e emergencial da linguagem; em um segundo momento, Flores realiza três proposições acerca do pressuposto teórico adotado e da concepção acerca do duplo aspecto da linguagem; finalmente, o Linguista busca mostrar quais são as especificidades existentes nas línguas que permitem que o falante seja nela captado; neste momento, Valdir Flores atinge, portanto, o ponto de chegada de sua reflexão, que diz respeito à enunciação como universal antropológico, haja vista que todas as línguas têm a possibilidade de serem atualizadas pelo homem/falante. Em síntese, de acordo com Flores, não é possível pensar em língua(s) sem anteriormente compreender que essas carregam manifestações de propriedades da linguagem e que se realizam por meio de um falante.

Apesar de fundamentais para a Linguística, as definições de linguagem, língua e falante – que na conferência são entendidas em relação – não têm unanimidade conceitual. No entanto, no quadro teórico assumido por Flores, entende-se que o homem não fala a linguagem, mas sim as línguas, o que se apresenta para o linguista sempre como um trabalho de abstração. Nesse viés, o conferencista lembra que é necessário pensar sobre a natureza do vínculo estabelecido entre as línguas e a linguagem; tal afirmativa implica interrogações em dois sentidos, no domínio da língua e no domínio da linguagem:

  • Acerca da língua, pondera-se: o que é uma língua? o que diferencia a língua de outros sistemas semiológicos? e o que as línguas têm em comum?

  • Acerca da linguagem, apresentam-se os enigmas: a linguagem é uma faculdade? se sim, de que natureza é esta faculdade?

A partir de tais questionamentos, o conferencista propõe que, ao refletir sobre tais princípios, o estudioso da linguagem não coloca em dúvida o objeto da Linguística, realiza, justamente, o movimento inverso: o linguista possibilita a condição para que se defina o objeto da Linguística em um novo quadro reflexivo centrado no humano e na linguagem. Isso posto, estamos diante de uma epistemologia dos primitivos teóricos.

Por esse prisma, Flores entende a linguagem em um duplo aspecto, o que faz com que esta comporte simultaneamente os seres falantes e as singularidades que são apenas visíveis nas línguas, privilegiando a ideia de que é da natureza do homem a sua singularidade de falante. Dessa forma, a díade aspectual da linguagem relaciona-se ao caráter:

a) existencial da linguagem – semelhante a um pressuposto filosófico – em que se reconhece a existência da linguagem e dos falantes;

b) emergencial da linguagem, em que se concebe a unicidade e a capacidade de se definir propriedades que emergem e que possibilitam que se reconheça a existência do falante nas línguas.

Dessa leitura resulta a conclusão de que linguagem e língua estão imbricadas de maneira específica. Tal percepção, por sua vez, conduz-nos à reflexão sobre a propriedade das línguas e da linguagem. À vista disso, no centro de tais hipóteses, Flores deriva três axiomas promissores para uma teorização linguística. No primeiro axioma – o principal a ser detalhado – o Linguista concebe a linguagem como atributo humano, para isso, apoia-se em Humboldt, em Saussure e em Benveniste. Assim, o conferencista busca subsídios para formular sua tese da seguinte maneira:

  • em Wilhelm Von Humboldt, precursor de Ferdinand Saussure, que tem o homem como objeto de estudo, Flores assume a definição de homem como um ser que fala, isto é, dotado de linguagem, cujas manifestações desta são as línguas; a linguagem, por sua vez, diz respeito à realidade humana – ao falante. Daí deriva-se o primeiro ângulo da tese de Flores: Humboldt, ao partir do homem, chega às línguas.

  • em Ferdinand de Saussure, Flores encontra a ideia de que não se tem acesso direto à linguagem, estando a investigação desta quase toda contida no estudo das línguas, que têm manifestações diversas, leis gerais e que podem ser reduzidas às formas particulares. Daí deriva-se o segundo ângulo da tese: ao partir-se das línguas, chega-se à linguagem, aos princípios gerais, ou seja, língua e linguagem são uma a generalização da outra.

  • em Émile Benveniste, Flores depreende uma visão ampla de linguagem: há uma relação constitutiva entre homem e linguagem. Logo, o homem na linguagem é adotado como um axioma geral, dentro do qual está contido um axioma específico: o homem está na língua; estar presente ao mesmo tempo tanto na língua, quanto na linguagem, no entanto, não significa uma ocorrência de mesma maneira. Enfim, para operar a passagem da linguagem à língua, Benveniste coloca o falante; o linguista sírio-francês compreende, então, que há recursos constitutivos da língua que permitem ao falante se enunciar. Isso posto, encontramos o quadro que engendra a tese formulada por Flores: a tríade linguagem-língua-falante.

O segundo e o terceiro axiomas são abordados de forma conjunta por Valdir do Flores. No segundo axioma, a linguagem se realiza nas línguas, a saber, as línguas realizam e contêm a linguagem. Nesse sentido, para o estudioso da linguagem, a investigação sobre as especificidades existentes nas línguas que permitem captar e emergir o falante são de suma importância. No terceiro axioma, que combina os anteriores, a linguagem – que se realiza nas línguas – tem existência no falante; isso diz respeito às propriedades da linguagem que emergem na língua, colocando em questão a natureza do homem que está profundamente ligada à noção de singularidade.

Por consequência, Flores traz à cena, à luz de Benveniste, a categoria de enunciação, assimilada como universal antropológico, que permite conceber o falante como o que emerge das línguas em sua experiência enunciativa de colocar uma ou várias línguas em funcionamento. Em outras palavras, a enunciação pode ser entendida como o ato de dizer que carrega duas propriedades: a) a de ser universal (não existem línguas nas quais o falante não possa enunciar) e b) a de ser particular (cada língua tem sua configuração para que a enunciação aconteça). Finalmente, são fundamentais outras três categorias para que o movimento de conversão da língua em discurso seja possível: pessoa, tempo e espaço. Com a organização deste conjunto, é possível perceber como o homem mostra-se presente na língua e na linguagem. Com efeito, nessa linha argumentativa, o conferencista defende que cada língua tem um dispositivo próprio com “lugares” para o falante na enunciação.

Flores é categórico ao afirmar que a particularidade de as línguas admitirem a presença do falante é universal, reforçando, destarte, seu argumento e sua filiação teórica. Em suma, o que vemos nascer nesta conferência é uma reflexão madura que deriva e que cria uma Linguística alicerçada em reflexões antropológicas, porque está ligada à ideia do humano na linguagem. Como relembra Flores, em paráfrase à grande linguista francesa Claudine Normand, estamos diante de uma Linguística como uma prática inofensiva, sem que esta seja ineficaz; uma Linguística que parte de Benveniste e Saussure, mas que não se propõe a continuar legados, tampouco distanciar-se deles: estamos diante de uma proposição de um outro modo de fazer Linguística. Tal Linguística assume a posição de que a enunciação é o vínculo do homem à linguagem, vínculo esse previsto na organização das línguas, pois, ao apresentarem elementos de “lugar” para o falante em suas organizações, as línguas possibilitam sempre experiências renovadas do falante na linguagem. Vemos uma Linguística de base antropológica que ainda está por vir, que está a ser fundada por um homem de fundamentos, na linhagem do mestre genebrino Ferdinand de Saussure, que é o Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores.

Referências

A Linguística como reflexão antropológica: a linguagem, as línguas e o falante. Conferência apresentada por Valdir do Nascimento Flo-res [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 45min 15s). Publicada pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=blPRQHdSAZw. Acesso em: 02 jun 2020.