O português brasileiro como uma língua colonial

Manoel Siqueira,
Viviane Silva de Novais

Resumo

Neste texto, resenhamos a conferência proferida pela professora Esmeralda Vailati Negrão no ciclo de conferências promovido pela Abralin Ao Vivo. Nessa conferência, Negrão discorre, entre outros tópicos, sobre aspectos sintáticos do português que podem ser resultado do contato linguístico entre diferentes povos que dividiam o espaço territorial do Brasil. A autora defende que, para que se possa compreender a estrutura da língua, é preciso que se pense o português brasileiro como uma língua colonial, resultante do multilinguismo existente durante sua consolidação. Com isso, a discussão levantada por Negrão ajuda-nos a expandir novos olhares em relação à constituição do português brasileiro, tanto voltados a sua estrutura, quanto voltados ao seu contexto sócio-histórico de surgimento.

Texto

Dentre as conferências proferidas durante a série de conferências ofertada pela Abralin, ocorreu, no dia 04 de maio de 2020, a da Professora Doutora Esmeralda Vailati Negrão. Negrão é professora titular na USP, bacharel (1975) e licenciada (1974) em Letras pela Universidade de São Paulo, possui doutorado pela Universidade de Wisconsin – Madison (1986), nos Estados Unidos, e fez estágio de pós-doutoramento na Universidade de Los Angeles, também nos Estados Unidos. Em suas pesquisas, Negrão observa a interface entre sintaxe e semântica. Atualmente, tem voltado sua pesquisa para o impacto do contato entre línguas africanas e línguas indígenas para a formação do português brasileiro.

Negrão organiza sua conferência intitulada Aspectos da sintaxe do português brasileiro: emergência de uma língua colonial[1] na qual estabelece paralelos sobre elementos que justificam o comportamento do português brasileiro, variedade do português que apresenta distinções (sintáticas, morfológicas, fonéticas/fonológicas e prosódicas) de sua língua de origem, o português europeu. A conferência é dividida em duas partes, que apresentamos a seguir.

Na primeira parte da conferência, Esmeralda usa como ponto basilar de sua discussão a ideia de que o português brasileiro (PB) foi, em sua origem, uma língua colonial, no sentido de que, no período colonial, o Brasil era uma sociedade multilíngue, onde diferentes línguas circulavam pelo território brasileiro: línguas indígenas, africanas, dos colonizadores, etc. Por meio dessa pluralidade de línguas que havia na sociedade da época, aspectos sintáticos, fonéticos/fonológicos, morfológicos da língua portuguesa foram alterados, incorporados e criados para que se pudesse surgir a variedade do português hoje falado no Brasil (que está longe de ser uniforme).

Durante sua discussão, Negrão apresenta outras hipóteses em relação ao que faz do português brasileiro ser como é, como as de i) Naro e Scherre (2007[2]), que defende uma deriva na língua, ou seja, as mudanças que nela ocorreram já estavam programadas em sua estrutura; ii) a de Guy (1981[3]), que defende que o português brasileiro é um derivado de uma língua crioula; iii) a de Holm (1987[4]), que propõe que o português brasileiro, em seu estado inicial, havia se crioulizado (de forma leve), passando em seguida por uma descrioulização, o que resultou na língua hoje falada; iv) e a de Baxter (1992[5]), em que o português brasileiro é resultado de uma transmissão linguística irregular: o português era aprendido de forma defectiva pelos escravizados e indígenas como L2 e, assim, era passado para seus descendentes, que a aprenderam como L1.

Para a conferencista, é indispensável a ideia de que o contato linguístico seja o principal motivador para a constituição da gramática do português: o sistema de colonização no território brasileiro propiciou relações entre europeus, africanos e indígenas. Houve um multilinguismo, sendo que duas ou mais populações etnolinguísticamente distintas dividiam o mesmo território, podendo, ou não, interagir umas com as outras. Esse ambiente multilinguístico foi divido em dois períodos: i) em um primeiro momento, houve uma concentração no litoral, focando, principalmente, na produção de cana-de-açúcar e no mercado internacional; ii) em um segundo, o foco era a corrida do ouro, tendo uma nova leva de imigrantes vinda para o Brasil, além do trabalho escravo que foi deslocado para essa atividade. Com isso, os períodos sócio-históricos no Brasil colônia são centrais para a compreensão da língua como uma nova realidade a ser descrita.

Na segunda parte da conferência, Negrão aponta a seguinte questão: “o que algumas peculiaridades da sintaxe do português brasileiro, visto como uma nova língua colonial, podem nos dizer sobre a evolução linguística?”. Para a conferencista, compreender os aspectos da sintaxe do português brasileiro como resultante de um multilinguismo pode dar dicas de como uma língua muda no tempo e no espaço, já que a formação dessa variedade da língua é relativamente recente. Informações sobre os contatos que lhe deram origem podem ser mais acessíveis, o que daria grande suporte para a discussão.

De forma complementar a sua discussão, Esmeralda apresenta evidências linguísticas para dar suporte a ideia, estabelecendo comparações sintáticas entre outras línguas de base africana. Um dos pontos que a autora observa é a marcação de sujeito de terceira pessoa do plural. Para a conferencista, a instabilidade dessa marcação no quimbundo e em outras línguas banto criou as condições necessárias para a impessoalidade no PB.

Por fim, Negrão destaca que estudar o PB como uma língua colonial, uma língua resultante do multilinguismo territorial, dá embasamento para compreender características sintáticas do PB, o que oferece novos olhares em relação a fenômenos já tão estudados na língua, como a marcação do sujeito (seu preenchimento) e a impessoalidade.

A discussão proposta pela conferencista traz, de fato, uma nova visão em relação ao comportamento sintático do PB, podendo concorrer com propostas como as de Naro e Scherre (2007[2]) e Baxter (1992[5]), já tão conhecidas na área de formação do PB. Tratar a realidade linguística da época seguindo o conceito colonial, de pluralidade étnica e linguística, ajuda-nos a melhor compreender qual era o ambiente na qual a língua estava exposta.

Essa discussão reaviva um cenário que parecia já ter se esgotado de explicações, trazendo novos olhares em relação aos fenômenos já descritos seguindo outras perspectivas, ajudando a retomar investigações em relação a aspectos sintáticos do português brasileiro. Compreender o português brasileiro como língua de contato é compreender que diferentes povos contribuíram para sua constituição.

Referências

Aspectos da sintaxe do português brasileiro: emergência de uma língua colonial por Esmeralda Vailati Negrão [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 27min 5s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=1z0fA_S7TLI&t=2793s> Acesso em: 04 de jun. 2020.
BAXTER, Alan N. A contribuição das comunidades afro-brasileiras isoladas para o debate sobre a crioulização prévia: um exemplo do Estado da Bahia. Actas do Colóquio sobre Crioulos de Base Lexical Portuguesa, editado por Ernesto d’Andrade & Alain Kihm, p. 7-35, 1992.
GUY, G. R. Linguistic variation in Brazilian Portuguese: Aspects of the phonology, syntax, and language history. University of Pensylvania, PhD Dissertation. Ann Arbor: University Microfilms International, 1981.
HOLM, J. Creole influence on popular brazilian portuguese. In : GILBERT, G. (ed.). Pigdin and Creole Languages. Honolulu: University of Hawaii Press, 1987.
HOW pidgins emerged? Not as we have been told. Conferência apresentada por Salikoko S. Mufwene [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (1h 19min 11s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9nsTHFxq-9w. Acesso em: 04 de jun 2020.
LUCCHESI, D. Aspectos da gramática do português brasileiro afetado pelo contato entre línguas: a flexão de caso dos pronomes pessoais. O Português Afro-Brasileiro, Salvador, EDUFBA, p. 41-79, 2009.
NARO, A. J.; SCHERRE, M. M. P. Origens do português brasileiro. Parábola Editorial, 2007.