Uma rede filológica luso-brasileira de pesquisas e manuscritos

Antonio Ackel

Resumo

Esta resenha apresenta discussões desenvolvidas, no evento Abralin Ao vivo, na mesa Grandes Projetos em Rede: os livros do Tombo da Bahia, M.A.P. Mulheres na América Portuguesa e Pombalia. Pombal Global. Destaca-se a formação de projetos que, em uma rede de pesquisadores, vem contribuindo para alcançar o objetivo maior da filologia: trazer ao público obras manuscritas ainda em estado inédito. Uma vez mais, a filologia observa os tantos enlaces existentes nas escrituras de um documento, os adventos histórico-políticos, científicos, imaginários, ideológicos, que podem responder a relevantes perguntas que especialistas dos mais variados campos vêm fazendo ao longo do tempo.

Texto

O fazer filológico é motivado pela divulgação de documentos ainda em estado manuscrito, para que informações contidas em seus textos sejam pensadas criticamente para a compreensão da história. É por meio da filologia que uma pessoa que escreveu ou concebeu um texto consegue alcançar maior público, que, muitas vezes, desconhece a existência de suas escrituras. Nesse momento, o filólogo torna-se o responsável por assegurar que o que será lido esteja “...tão próximo quanto é possível daquilo que o seu autor escreveu” (CASTRO, 1984)[1].

Analisar documentos, à luz desse pensamento, permite, além de unir pesquisadores de variados campos do saber, descobrir e compartilhar características culturais e sociais. A união de pesquisadores que buscam transmitir os textos ainda em estado manuscrito atualmente se consolida em uma rede de diferentes projetos, permitindo não só o diálogo entre filólogos e historiadores, por exemplo, como também o desenvolvimento de hipóteses interpretativas mais abrangentes sobre a autoria do documento e a elaboração de edições de obras manuscritas. Dessa forma, permite que o público tenha acesso a documentações inéditas para que possa examinar algumas das principais evoluções culturais e sociais da escrita de séculos passados, relacionando-as ao momento atual em que vivemos.

Essa forma de trabalho filológico pôde ser conferida no evento Abralin ao vivo (promovido pela Associação Brasileira de Linguística, com a colaboração de associações e sociedades internacionais de linguistas). Alícia Duhá Lose (UFBA), Vanessa Martins do Monte (USP) e Joana Balsa de Pinho (ULisboa) fizeram parte, no dia 13 de maio de 2020, da mesa intitulada Grandes Projetos em Rede: os livros do Tombo da Bahia, M.A.P. Mulheres na América Portuguesa e Pombalia. Pombal Global[2].

Alícia Duhá Lose apresentou o projeto Livros do Tombo do Mosteiro de São Bento da Bahia: relatos de uma longa jornada. Trata-se de uma coleção de livros pertencente ao Mosteiro de São Bento da Bahia, que abriga uma antologia de traslados de imóveis no Brasil, entre os séculos XVI e XX. O título refere-se a seis códices de teor notarial e o material é considerado importante fonte primária para a história da construção nacional, do Brasil Colônia e do Brasil Império, na medida em que o livro contempla assuntos imobiliários e características socioeconômicas das primeiras famílias fundadoras da sociedade brasileira, durante os três primeiros séculos de colonização do país, de 1522 a 1913. Os códices encontram-se em excelente estado de conservação, com exceção do primeiro que parece ter sido o mais manuseado, razão pela qual pôde-se conjecturar tratar-se do único original da coleção, o que, ao longo do labor filológico, foi desfeito, atestando-se como originais, todos os códices. Com exceção da primeira obra, Livro Velho do Tombo (editada pela Thipografia Beneditina em 1945), os demais códices ainda eram inéditos. Assim, Lose e Telles (2005) propõem uma empreitada filológica que, ao longo de 10 anos, consubstanciar-se-ia em um projeto de variadas edições semidiplomáticas publicadas. Para além de transcrições semidiplomáticas, outros estudos foram desenvolvidos, como análises nos níveis diplomático e paleográfico, análise sobre a construção dos volumes, estudos sobre a toponímia, estudos genealógicos e onomásticos. Ao ser aprovado no edital Petrobrás Cultural, de 2013, pela Lei Rouanet, o projeto recebeu o convite da própria concessionária para um patrocínio direto, sem que precisasse se submeter às regras do edital público. Para tanto, deveria arcar com uma edição filológica que alcançasse um público muito mais amplo do que o acadêmico. A solução foi a proposta de elaboração de uma segunda edição, dessa vez, como classificou Lose, “edição limpa” para o público leigo. O objetivo foi o de apresentar uma edição filológica composta por cinco volumes impressos, sendo um livro de arte, com apresentações, análises, descrições, estudos codicológicos, paleográficos, toponímicos, onomásticos, quatro livros com a edição limpa e um site com as edições facsimiladas e semidiplomáticas.

Vanessa Martins do Monte refletiu acerca da constituição de uma rede de documentos relacionados a mulheres que, durante muito tempo, tiveram suas identidades apagadas, suas vozes ensurdecidas, seus textos guardados. À luz de pensamentos feministas e, por meio do projeto M.A.P. Mulheres na América Portuguesa, a rede de pesquisadoras centra-se em entender o papel prioritário que as mulheres desempenharam nos movimentos sociais, por meio de uma ainda escassa documentação que elas vêm coletando ao longo dos últimos anos. Neste momento, o projeto reúne documentos escritos por e sobre mulheres que estiveram na linha de frente das resistências contra grandes adventos e entidades históricas como a Igreja, o Estado, capitalismo, extrativismo (FEDERICI, 2017)[3]. O catálogo do M.A.P. é disponibilizado para o público de forma virtual e pode ser acessado em http://mapusp.hypotheses.org/ e continua sendo alimentado e apresenta, para cada documento contemplado na coleção, uma ficha que contém: a) um campo chamado voz, que mostra um fragmento selecionado do documento; b) o facsímile do documento original; c) a transcrição parcial do manuscrito e d) algumas informações que puderam coletadas sobre o documento e a autora. O projeto M.A.P. Mulheres na América Portuguesa é divido em diversas frentes, quais sejam, frente computacional, que cuida da parte de elaboração do catálogo, desenvolvido em linguagem XML; frente de extroversão, que atualiza o projeto por meio das redes sociais e do blog; frente de filologia, responsável pelas visitas aos arquivos, levantamento de documentação, definição de chaves de busca para facilidade do desenvolvimento do trabalho; frente de iconografia, que trabalha com a coleção de gravuras e imagens encontradas na documentação; frente linguística, que lida com a transcrição e análise dos textos utilizados nos projetos, em sua maioria inéditos. O objetivo dessa última frente é transformar a documentação em corpus de pesquisa. O projeto ainda inclui oficinas formativas de edição eletrônica, pelo programa eDictor e oficinas de Paleografia. Além disso, outras atividades práticas incluem rodas de leitura que se concentram nas obras de Federici (2017)[3], Lacerda (2010)[4], Mello e Souza (1986)[5], Del Priori (1997)[6].

Joana Balsa de Pinho apresentou o projeto Pombalia. Pombal Global. Trata-se de um trabalho de pesquisa em Portugal que engloba também documentos e pesquisadores brasileiros. Com o objetivo de identificar e editar os escritos da autoria material e/ou intelectual do Marquês de Pombal, esse projeto é um consórcio de mecenas que inclui universidades e câmaras municipais, fundações e institutos públicos. Pombalia foca-se na figura de Sebastião de Carvalho e Mello, o Conde d’Oeiras, que, depois de assumir o cargo de Secretário de estado do Reino (equivalente ao cargo de primeiro ministro), em 1755, tornou-se o Marquês de Pombal. Pombal é, no entanto, uma figura controversa. Segundo Kenneth Maxwell (1996)[7], é considerado com um paradoxo do iluminismo, por ser simultaneamente um reformador e um repressor. É certo que a edição completa de sua obra poderá lançar luz sobre o real papel que desempenhou na história de Portugal e do Brasil. O método desse projeto é definido em função dos diferentes projetos anteriormente desenvolvidos e constitui-se em rigorosos passos que vão desde inventários dos testemunhos documentais, processo de investigação que implica percorrer todos os arquivos em Portugal e em outros países do mundo até um considerável número de provas que podem garantir a transmissão textual de forma fidedigna ao público que se deseja alcançar. Nesse contexto, já foram iniciadas transcrições de alguns textos de caráter historiográfico, a pedido da Fundação para Ciência e Tecnologia. As edições a serem desenvolvidas servirão de leitura também para o público não especializado, o que leva à definição de normas para atualização de ortografia, de pontuação e outras intervenções definidas logicamente em função das características do texto original.

Pelas apresentações da mesa, pode-se concluir que os projetos de pesquisa documental não param nas margens de seus fólios. Pelo contrário, a comunidade acadêmica tem se constituído, cada vez mais, como uma rede global, privilegiando formas de contato virtual, características do nosso tempo. Ao possibilitar a divulgação de pesquisas desse gênero, o evento Abralin Ao Vivo compartilha largamente seus saberes como uma proposta de interdisciplinaridade em que a filologia se torna atividade primeira para dar garantias do que será́ lido.

Tramando as redes de projetos filológicos, eventos como esse que se apresenta, promove interações no meio científico entre as principais universidades do mundo interessadas em assuntos linguísticos. Um grupo de trabalho de uma investigação internacional que assegura o metodologias, fontes, critérios de publicação, temas técnicos, formas de operacionalizar e assegurar a pesquisa em diversos países do mundo.

A julgar pelos trabalhos apresentados na mesa Projetos em rede: Os livros do Tombo da Bahia, M.A.P. Mulheres na América Portuguesa, Pombalia. Pombal Global, parece estarmos, felizmente, em linha de continuidade com a produção de pesquisas em filologia portuguesa no Brasil, como apontado, em 1999, por Megale e Cambraia[8] na comemoração de 30 anos da Abralin.

Referências

CASTRO, Ivo. Livro de José de Arimateia. Dissertação (Doutoramento em Filologia) – Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1984.

COMISSÃO ORGANIZADORA DAS COMEMORAÇÕES DO BICENTENÁRIO DA MORTE DO MARQUÊS DE POMBAL. Catálogo Bibliográfico e Iconográfico. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1982.

DEL PRIORE, Mary. História das Mulheres do Brasil. Editora da UNESP, 2004.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo: Elefante, 2017.

GRANDES Projetos em Rede: os livros do Tombo da Bahia, M.A.P. Mulheres na América Portuguesa e Pombalia. Pombal Global. Conferência apresentada por Alícia Duhá Lose, Vanessa Martins do Monte, Joana Balsa de Pinho [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (2h 26min 30s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HeaMo04BpcQ&t=608s. Acesso em: 14 mai 2020.

LACERDA, Marina Basso. Colonização dos corpos: ensaio sobre o público e o privado. Dissertação (Mestrado em Letras) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Paradoxo do iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MEGALE, Heitor e CAMBRAIA, César Nardelli. Filologia Portuguesa no Brasil. D.E.L.T.A. Revista de Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada. São Paulo, Vol. 15, nº Especial, p. 1-22, 1999.

MELLO E SOUZA, L. O diabo e a terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

RUSSELL-WOOD, A. J. R. Women and Society in Colonial Brazil. Journal Of Latin American Studies. Grã-bretanha, p. 1-34. maio 1977.