Aquisição de línguas de sinais e teoria linguística: Contribuições de pesquisas brasileiras e norte-americanas

João Paulo da Silva Nascimento,
Roberto de Freitas Jr.

Resumo

A conferência ministrada pela Prof.ª Dr.ª Diane Lillo-Martin (University of Connecticut) propôs-se à apresentação do panorama de pesquisas sobre aquisição de línguas de sinais (doravante LS), realizadas em cooperação entre pesquisadores norte-americanos e brasileiros. Teve como intuito maior a reflexão de como investigações no domínio da aquisição de LS evidenciam pormenores atrelados a universais linguísticos, de modo a contribuir a hipóteses e teorias já difundidas em estudos anteriores com línguas orais (doravante LO). Em vista disso, abordaram-se tópicos de interesse às áreas de psicolinguística e estudos em aquisição de línguas, tais como questões estruturais das LS, especificamente de American Sign Language (ASL) e Língua Brasileira de Sinais (Libras); efeitos de modalidade visuo-espacial, especificidade do processo de aquisição de linguagem por crianças surdas bilíngues bimodais e implicaturas de privação linguística.

Texto

Os estudos em aquisição de linguagem, independente da vertente teórica em que se ancorem, ainda se mostram investigações instigantes do ponto de vista da complexidade do processo paulatino de representação mental do conhecimento linguístico. Certamente, a elucidação de como se dá a aquisição de LS por crianças surdas pode enriquecer esse campo, dadas as características intrínsecas à modalidade visuo-espacial, que podem expandir interpretações sobre universais linguísticos independentes de questões sobre diferenças de modalidades linguísticas.

Nesse sentido, em revisão a estudos anteriormente realizados em cooperação entre pesquisadores de ASL e Libras, Lillo-Martin (2020)[1] aborda a questão ao observar quatro fenômenos linguísticos no contexto da surdez que podem ser contemplados em pesquisas sobre aquisição de linguagem em perspectiva formalista: a) estruturas de foco discursivo; b) particularidades do sistema pronominal típico da modalidade visuo-espacial, c) implicaturas de ambientes bilíngues bimodais1 e d) casos de privação linguística.

Segundo a pesquisadora, ao considerarmos o tema da conferência proferida, é necessário estipular como base alguns apontamentos de pesquisa. O primeiro deles é a existência de possíveis convergências entre os processos de aquisição de LS e LO, o que permite identificar evidências para explicações do fenômeno da aquisição de maneira geral.

Em seguida, é importante observar como o efeito da modalidade visuo-espacial pode impactar a aquisição de estruturas específicas, tanto em casos de crianças bilíngues bimodais, que adquirem simultaneamente uma LS e uma LO, quanto em casos de crianças surdas, que adquirem (ou não) uma língua na primeira infância. Norteada por essas questões e a fim de demonstrar a prática da pesquisa em aquisição de linguagem com LS, Lillo-Martin (op. cit.) enriquece sua discussão com exemplos de estruturas sintáticas de focalização da ASL, de apontamentos dêiticos com função linguística pronominal e reflexões sobre ambientes bilíngues bimodais e impactos da privação de LS.

Apoiando-se em estudos longitudinais anteriores e partindo de características sintáticas comuns a ASL e a Libras, a pesquisadora discute resultados de experimentos aplicados com duas crianças norte-americanas e duas crianças brasileiras, falantes de ASL e Libras, respectivamente, para a testagem da aquisição de sentenças com marcação de foco. Especificamente, são observadas estruturas de ordenação básica SVO e a existência de certos tipos de elementos focalizados que podem aparecer em posições inicial e final, com ou sem reduplicação.

As sentenças de focalização em ASL e Libras assemelham-se, podendo ser marcadas (a) pelo preenchimento in situ, na posição inicial (LILLO-MARTIN & QUADROS, 2008)[2]; (b) por duplicação ou (c) unicamente em posição final (NUNES & QUADROS, 2004)[3].

(a)2 I read book Jairo;

(b) John can read can;

(c) Mary go Spain finish.

Decerto, diferentes teorias contemplam a aquisição de construções como essas de maneiras distintas. No entanto, na pesquisa de Lillo-Martin e Quadros (2006; 2007; 2008)[2,4,5], por se valerem da abordagem experimental, as autoras apontam duas hipóteses. A primeira é a de que construções com reduplicação (b) e construções somente com posição final preenchida (c) correspondem à mesma estrutura subjacente e a aquisição dessas estruturas se daria simultaneamente. A segunda é a de que se tais construções corresponderem a projeções estruturais distintas, diferenças longitudinais poderiam ser percebidas, uma vez que uma apareceria na sinalização primeiro que a outra.

Durante o período de coleta de dados, que se iniciou quando os informantes possuíam por volta de 1 ano e 6 meses (1;06) e terminou quando se encontravam por volta dos 3 anos de idade (3;00), as pesquisadoras atentaram-se às ocorrências prolongadas dessas estruturas sintáticas, observando possíveis diferenças estatísticas do período em que ocorreram. Os resultados podem ser vistos na tabela a seguir:

Criança Inicial Reduplicada Final
Crianças falantes de ASL Aby 1;09 2;01 2;00
Sal 1;07 1;09 1;09
Crianças falantes de Libras Ana 1;06 2;00 2;01
Leo 1;10 2;01 2;02
Table 1. Resultados – primeiras repetições adaptado de Lillo-Martin e Quadros (2006; 2007; 2008)[2,4,5]

De acordo com os resultados expostos acima, além da curiosidade atrelada ao fato de as estruturas de foco marcado aparecerem cedo na sinalização de crianças surdas expostas a inputs de LS, a primeira hipótese parece sustentar-se como verdadeira: as construções com duplicação e aquelas somente com foco na última posição da sentença aparentemente não se distinguem do ponto de vista de estruturas subjacentes, sendo, portanto, adquiridas em mesmo momento (a partir de 1 ano e 9 meses).

Além do caso das estruturas de foco, Lillo-Martin (op. cit.) confere destaque à maneira como vêm sendo tratadas questões relativas aos apontamentos e usos de espaços em LS, situando-as como efeitos naturais da modalidade visuo-espacial. De fato, apontamentos são recorrentes mesmo no curso da comunicação entre ouvintes usuários de LO e reverberam efeitos pragmáticos caros à eficiência comunicativa; entretanto, em LS, percebe-se que esse recurso assume uma função linguística fundamental à referenciação, podendo ser apontados como integrantes de sistemas pronominais.

Assim, o problema posto para a aquisição diz respeito ao modo como crianças surdas passam a reconhecer apontamentos com função anafórica/dêitica típica da categoria pronome. Deve-se considerar, ademais, que essa questão ainda não se mostra consensual dentre estudiosos da área de descrição e aquisição de LS. Enquanto algumas pesquisas não consideram apontamentos como pronomes (JOHNSTON, 2013)[8], há estudos, por outro lado, que os situam como atos linguísticos que podem ter, cumulativamente, propriedades pronominais e não pronominais (CORMIER et al, 2013)[6], ou pronomes que somente distinguem a 1ª pessoa do discurso (MEIER, 1990)[7].

Isso posto, tomando como argumentos dados oriundos do registro de aquisição, a investigação sobre a aquisição dessa propriedade permite ainda a resolução de alguns impasses de pesquisa, uma vez que pode vir a demonstrar como o apontamento pronominal se distingue do não pronominal.

Em vista dessas questões, Lillo-Martin et al. (2018 - em progresso)[9] partem para o estudo experimental acerca da aquisição desta propriedade, a fim de investigar o modo como essa se relaciona ao sistema dêitico da ASL. Antes da apresentação de seus resultados, as autoras abordam achados provenientes do estudo de Demuth et al. (2006; 2009)[10], o qual identificou que crianças ouvintes falantes de inglês, entre 2 a 3 anos de idade, somente apontariam para pessoas ao longo do discurso oral em contextos muito restritos e nunca com função anafórica – fator de distinção entre crianças ouvintes e surdas.

Na ocasião do estudo com crianças surdas mencionado, que seguiu o mesmo protocolo metodológico da investigação das construções de foco em LS, foram controlados os apontamentos (a) a seres inanimados; (b) a 1ª pessoa; (c) a 2ª pessoa e (d) a 3ª pessoa.

Apesar de percebida uma distinção da velocidade com que as crianças surdas participantes do experimento adquiririam apontamentos pronominais, destacam-se duas questões importantes à compreensão da aquisição: o fato de o apontamento a objetos inanimados, um recurso comum a surdos e ouvintes, emergir muito cedo nas produções comunicativas e, no caso de crianças surdas, a ordem cronológica, segundo a qual os tipos de apontamentos listados em (a) a (d) aparecem primeiramente nas sinalizações infantis. Assim, de acordo com as autoras, percebe-se que o sistema pronominal da ASL, que se vale do recurso não específica e unicamente linguístico do apontamento por uma questão de modalidade, aparentemente apresenta uma ordem de aquisição, sendo o apontamento inanimado o mais simples – e, portanto, o primeiro adquirido.

Outra questão debatida por Lillo-Martin (op. cit.) foi a maneira como o bilinguismo bimodal pode surtir impactos na aquisição de linguagem de CODAS3 e crianças surdas, filhas de pais surdos, com implante coclear. Nesse ponto, debateu-se a possibilidade de influências mútuas entre as LS e as LO envolvidas, citando-se, por exemplo, resultados de estudos diversos que mostram que crianças CODAS norte-americanas tendem a usar sentenças interrogativas com o preenchimento da primeira posição de wh-question (perguntas QU-), à semelhança do inglês, enquanto crianças surdas não bilíngues, estatisticamente, tendem a reduplicar a wh-question com mais frequência.

Lillo-Martin (op. cit.) também aborda a questão impactante da aquisição de linguagem tardia por crianças surdas, o que, infelizmente, ainda se mostra bastante recorrente, dado que somente 5% de surdos nascem em lares em que recebem LS como L1, enquanto os outros 95% só têm esse contato a partir da escolarização.

Em experimento com dados naturalísticos de duas crianças surdas sem acesso precoce à LS, filhas de pais ouvintes, analisa-se a marcação de concordância verbal em ASL em dois contextos: (i) envolvendo a utilização de um pronome pessoal e (ii) em sentenças com argumentos locativos. Partindo do objetivo de identificar erros de performance de usos de verbos de concordância, o estudo foi capaz de demonstrar que esses indivíduos possuíam altas tendências a erros de concordância, sobretudo no contexto que envolvia a utilização de um apontamento pronominal, ao passo que crianças surdas que adquiriram LS precocemente apresentaram erros mínimos de produção (BERK, 2003)[11].

Abordando tais questões, de modo geral, a conferência de Lillo-Martin exibiu como o estudo da aquisição de LS mostra-se uma fonte pertinente à explanação da natureza da linguagem como um todo, além de uma possibilidade inovadora para a compreensão de outros fatores, tais como o modo como a bimodalidade pode entrever estudos sobre processamento linguístico e testagens de hipóteses diversas sobre a aquisição de uma gramática ainda nos primeiros anos de vida por indivíduos surdos.

Referências

BERK, S. Sensitive Period Effects on the Acquisition of Language: A Study of Language Development, unpublished Ph.D. Dissertation, University of Connecticut, Storrs, 2003.

DEMUTH, K. et al. Childes providence corpus. Disponível em: https://phonbank.talkbank.org/access/Eng-NA/Providence.html. 2006, 2009.

CORMIER, K.; SCHEMBRI, A.; WOLL, B. Pronouns and pointing in sign languages. ScienceDirect, v. 137, 230-247, 2013.

JOHNSTON, T. Functional and formational characteristics of pointing signs iin a corpus of Auslan (Australian Sign Language): are the data sufficient to posit a grammatical class of ‘pronouns’ in Auslan? Corpus Linguistics and Linguistic Theory, v. 9, 109-159, 2013.

LILLO-MARTIN, D.; CHEN PICHLER, D.; PALMER, J. A short introduction to heritage signers. Sign Language Studies, 309-327, 2018.

LILLO-MARTIN, D; QUADROS, R. M. Gesture and the Acquisition of Verb Agreement in Sign Languages. In: 31st annual Boston University Conference on Language Development. Cambriedge: Cascadilla Press, v. 2. p. 520-531, 2006.

LILLO-MARTIN, D; QUADROS, R. M. Focus constructions in American Sign Language and Língua de Sinais Brasileira. In: Signs of the Time: Selected papers of theoretical Issues of Sign Language Research 8. Hamburg: Signun Verlang, v. 1, p. 171-176, 2008.

LILLO-MARTIN, D; QUADROS, R.M. The Position of Early Wh-Elements in in American Sign Language and Língua Brasileira de Sinais. In: GALANA Conference, 2007, Honolulu, HI. The Proceedings of the Inaugural Conference on Generative Approaches to Language Acquisition North America. Storrs/Connecticut: University of connecticut Occasional Papers In Linguistics, v. 4. p. 195-203, 2007.

MEIER, R. P. Person deixis in ASL. In: FISCHER, S.D; SIPLE, P. (Eds.). Theoretical Issues in Sign Language Research. Linguistics, v. 1. Chicago, University of Chicago Press, p. 175-190, 1990.

NUNES, J.M; QUADROS, R. M. Focus duplication of WH-elements in Brazilian Sign Language. In: 35th Annual Meeting of the North Eastern Linguistic Society, 2004, Storrs. NELS 35 - Annual Meeting of the North Eastern Linguistic Society. Storrs: University of Connecticut, 2004. v. 1. p. 13-14.

SIGN Language Acquisition and Linguistic Theory. Conferência apresentada por Diane Lillo-Martín [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 32min 30s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cUOA1MjkCXI&t=3069s. Acesso em: 10 mai 2020.