Combatendo fake news: o papel da literacia no pensamento crítico

Marina Grilli

Resumo

A conferência define os conceitos de literacia e pensamento crítico, demonstrando o impacto da primeira sobre o segundo e sobre outras capacidades cognitivas, como a memória e a compreensão da linguagem. A pesquisa relatada, em andamento, trabalha com a hipótese de que a literacia contribui para elevar a qualidade e a profundidade do pensamento crítico, recurso de autodefesa intelectual em relação às fake news e a outras manobras de desvirtuação dos fatos ou de propaganda mentirosa. São apresentados os resultados de estudos realizados anteriormente por outros pesquisadores e os resultados preliminares de um projeto experimental que a conferencista integra, no qual diversos grupos de adultos subletrados realizam testes de literacia, literacia de mídia, pensamento crítico, habilidade de leitura de emoções e identificação com valores fascistas. Conclui-se que, quanto maior o nível de literacia, maior a capacidade de pensamento crítico.

Texto

A professora Régine Kolinsky integra um grupo de pesquisa na Bélgica que investiga a relação entre o pensamento crítico e a literacia. Na conferência intitulada A Literacia e seus desafios: promover o pensamento crítico em pessoas sub-letradas[1], ela defende o uso do termo literacia, em vez de letramento. Segundo a pesquisadora, o sufixo -mento remete a um processo; assim, após passar pelo processo do letramento, o indivíduo atinge a condição de literacia. Portanto, o termo literacia está mais associado ao uso pessoal das habilidades de leitura e escrita, enquanto o letramento se refere mais comumente a seu uso social.

A literacia, enquanto condição pessoal, tem influência sobre muitas capacidades mentais, perceptivas e cognitivas do indivíduo. Kolinsky cita em sua fala uma grande quantidade de estudos que investigaram essa influência, antes de passar aos resultados preliminares obtidos por seu próprio grupo de pesquisa.

A memória verbal auditiva, por exemplo, é muito mais fraca em adultos iletrados e sub-letrados do que em adultos letrados. Os letrados também estão acostumados a estruturas sintáticas diferentes daquelas dos iletrados, porque o discurso escrito é diferente do oral: na escrita, a coesão é estabelecida por meio de estruturas sintáticas complexas, nas quais os conectivos evidenciam as relações entre proposições. A linguagem oral, pelo contrário, é aditiva e agregativa. Desse modo, iletrados apresentam dificuldade na compreensão de frases faladas mais complexas, pois sua compreensão é baseada na ordem e na linearidade dos termos.

A aquisição da leitura e, de modo geral, a educação formal, aumentam e diversificam o banco de dados de conhecimento do indivíduo. Isso porque, para além da compreensão básica na leitura, há a possibilidade de o leitor relacionar as ideias veiculadas por um texto escrito aos conhecimentos provenientes de fontes não escritas que já teve a oportunidade de acumular. Em resumo, a literacia está relacionada à qualidade e à profundidade do pensamento crítico.

Posteriormente, Kolinsky apresenta uma definição do pensamento crítico como julgamento proposital e autorregulador, que articula conhecimentos, experiências e competências; afirma que ele implica, ainda, raciocínio lógico e funções executivas que incluem comportamentos como tomada de decisão, planejamento e execução, isto é, comportamentos orientados para metas.

Então, Kolinsky passa aos resultados do PISA 2018. PISA é a sigla para o Programa Internacional de Avaliação de Alunos, que consiste em uma prova internacional destinada a medir o nível de conhecimento de jovens de 15 anos por meio de três provas: Leitura, Matemática e Ciências. O exame é aplicado, no Brasil, a alunos de escolas públicas e particulares, selecionados por sorteio.

Kolinsky observa que, segundo o PISA, a maior parte dos candidatos não demonstra capacidade reflexão crítica no processamento da informação escrita: 23% da média dos alunos em países da OCDE obtiveram desempenho de nível 2 na prova de leitura, em uma escala de 1 a 5. Essa categoria caracteriza indivíduos sub-letrados, isto é, aqueles que são capazes de localizar trechos de informação em um texto, mas têm dificuldades para compreender mais do que seu sentido literal.

O nível 4 do PISA se caracteriza pela capacidade de ler e compreender o sentido de um texto relativamente longo e relacioná-lo aos seus conhecimentos, de maneira a formular hipóteses a respeito dele e avaliá-lo de maneira crítica. Já o nível 5 exige compreensão aprofundada, avaliação da coerência entre várias afirmações e reflexão crítica face à informação escrita. Esses dois níveis foram atingidos, respectivamente, por 28% e 9% dos participantes da prova no ano de 2018. Podemos supor que os resultados obtidos somente pelos alunos de escolas públicas sejam ainda mais alarmantes.

Os números do Brasil, longe de impressionar aqueles que acompanham a situação das políticas públicas para a educação em nosso país, apenas nos envergonham: somente 1,5% dos jovens leitores brasileiros atingiram o nível 5 em leitura; 9% deles atingiram o nível 4; a esmagadora maioria, 73% dos candidatos, permanece no nível 2, são sub-letrados, ou analfabetos funcionais.

Bem, se o nível de literacia está diretamente relacionado à capacidade de pensamento crítico, e o pensamento crítico sustenta a capacidade de autodefesa intelectual, também não nos surpreende mais do que nos envergonha a facilidade com que o brasileiro é manipulado por fake news, teorias da conspiração e outras manobras de desvirtuação dos fatos ou de propaganda mentirosa. Kolinsky não se furta a mencionar, ao final da palestra, a ação criminosa de disparo de fake news no aplicativo de mensagens WhatsApp que teve papel decisivo em levar Jair Bolsonaro ao posto de autoridade máxima do Brasil. Mais de um ano e meio após as eleições e em meio à pandemia da doença Covid-19, assistimos à propagação cada vez mais explícita desse tipo de desinformação por diversas figuras do poder público, situada em algum lugar entre a mais pura ignorância e o cruel mau-caratismo.

Alguns estudos citados por Kolinsky mostraram uma relação direta entre os resultados de um teste de pensamento crítico conhecido como CCT [Cornell Critical Thinking Test] e os hábitos de leitura do participante, como, por exemplo, o número de livros lidos ao longo de um ano. A novidade é que foi verificada também uma correlação significativa entre a capacidade de pensamento crítico e a literacia de mídia [media literacy], isto é, a capacidade de entender e analisar diversos gêneros de mensagens veiculadas na mídia. Ao contrário de todos os outros testes de leitura e escrita, os itens de avaliação do teste de literacia de mídia [media literacy] estão significativamente relacionados com o pensamento crítico, nos moldes do CCT.

Esse teste, bem como os quatro testes brevemente descritos a seguir, são empregados pelo grupo de pesquisa da professora Kolinsky, em Bruxelas. Os sujeitos pesquisados pelo grupo são 37 adultos, de idade média 35 anos, em sua maioria mulheres e em sua maioria desempregados. Não são leitores de livros nem de revistas, leem jornais com pouca frequência, mas recorrem diariamente a seus smartphones a fim de informar-se. Esses adultos têm um nível de leitura parecido com o de crianças do 4º ano, mas, em alguns testes, chegam a apresentar um desempenho mais baixo do que crianças do 2º ano.

Um dos testes que avaliam a relação entre pensamento crítico e a literacia de mídia é o chamado teste de Raciocínio cívico online [Civic Online Reasoning], no qual é preciso determinar quem está por detrás da informação e avaliar as possíveis motivações dessa fonte.

O teste denominado F-Scale, com F de fascismo, foi desenvolvido em 1947 pelo célebre sociólogo Theodor Adorno, a fim de avaliar a adesão a valores convencionais e autoritários. Exemplos de itens integrantes do teste são: “as coisas mais importantes a ensinar às crianças são a obediência e o respeito à autoridade”; “os homossexuais não são melhores que os criminosos e devem ser castigados severamente”; “o mundo pode ser dividido em duas classes distintas: os fracos e os fortes”.

No teste de silogismos, o participante se depara com uma sequência curta de proposições simples e, ao final, deve determinar se está correta uma determinada relação estabelecida entre elas. Existe uma tendência a endossar argumentos em cujas conclusões se acredita, e a rejeitar argumentos em cujas conclusões não se acredita, independentemente da lógica empregada na sequência de proposições; trata-se do efeito de crença no raciocínio, em oposição ao efeito de validade no raciocínio.

Por fim, a Teoria da Mente [Theory of Mind – TOM] descreve a capacidade de atribuir estados mentais, a si mesmo e a outros, para explicar e prever comportamentos. Essa capacidade é importante para a compreensão de textos literários, e tem efeito retroativo sobre ela: ler textos literários melhora a empatia. No teste de leitura da mente através dos olhos [Reading the mind in the eyes test], o participante vê apenas o recorte dos olhos em uma fotografia e deve selecionar a alternativa correspondente ao modo como a pessoa retratada está se sentindo.

Os resultados preliminares do grupo de Kolinsky demonstram que, quanto maior a pontuação dos participantes no teste de literacia de mídia, maior a capacidade de pensamento crítico e menor a quantidade de traços de personalidade autoritária demonstrados no teste F-Scale. Assim, o grupo observa a importância de considerar, nesse tipo de estudo, também a literacia de mídia, e não só os processos tradicionais de leitura e escrita. Como hipótese, coloca a importância de considerar as emoções, tema do teste TOM, até mesmo no pensamento crítico.

É fácil extrapolar os resultados obtidos no grupo de informantes mencionado para a realidade brasileira: os sujeitos pesquisados apresentam nível de literacia similar ao da maior parte dos adolescentes brasileiros, conforme o PISA 2018. Observando o descrédito da ciência e das universidades públicas no país, compreendemos que a falta de pensamento crítico também se estende massivamente aos adultos. O fato de que a memória verbal auditiva é fraca em adultos sub-letrados confere uma face macabra ao dito “brasileiro tem memória curta”.

Note-se que a descrição do nível 2 em leitura do PISA afirma que tais indivíduos não possuem o nível de competência necessário para lidar com exigências complexas do trabalho. Resta, portanto, a essa esmagadora maioria de brasileiros, o trabalho mecânico, não qualificado, não intelectual. Trata-se do inevitável efeito do sucateamento sistemático da educação pública brasileira – mudar essa realidade definitivamente não está entre os planos de autoridades eleitas a partir de fake news.

Referências

A literacia e seus desafios: promover o pensamento crítico em pessoas sub-letradas. Conferência apresentada por Régine Kolinsky [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 31min). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://youtu.be/VQ4iEkGG3-4zz. Acesso em: 17 mai 2020.