Argumentação no discurso: Compreender a comunicação e as crises sociais profundas expressas na maneira de pensar de grupos opostos

Clemilton Lopes Pinheiro,
Sílvio Luis da Silva

Resumo

Este trabalho dedica-se à recensão da conferência “Les gilets jaunes sont-ils ‘le peuple’?" Une question de société au prisme des interactions verbales dans les médias français” proferida por Ruth Amossy no evento Abralin ao Vivo. Na conferência, Amossy desenvolve a análise, com base na perspectiva da Argumentação no Discurso, de um extrato do programa televisivo francês On n´est pas couché (Não estamos na cama), cujo assunto é o movimento Gilets Jaunes (Coletes Amarelos), e as conversas que abordam a repercussão desse extrato, em um fórum de discussão online da RTL (uma rádio comercial francesa). A primeira análise evidencia a emergência de uma polêmica pública em que entra em jogo uma guerra de legitimidade entre o discurso dos Coletes Amarelos e o do governo. A segunda mostra uma interação verbal marcada pelo confronto não regrado.

Texto

Ruth Amossy é professora emérita da Universidade de Tel Aviv e uma reconhecida pesquisadora sobre os aspectos discursivos de interações verbais. Ela elaborou a perspectiva Argumentação no Discurso (AMOSSY, 2000[2]), que combina a Análise do Discurso dita francesa e a Argumentação inspirada na Nova Retórica de Perelman (AMOSSY; KOREN, 2009[1]). Trata-se, como a autora assinala, de uma abordagem empírica, um quadro não normativo, que privilegia a imersão em dados reais e não um esquema de compreensão prévio do discurso. Em outras palavras, toma-se como ponto de partida um corpus em contexto e procura-se observar, com base na análise de mecanismos linguísticos e retóricos, o que emerge desse corpus em relação ao funcionamento do discurso em um dado espaço social, à maneira como um locutor constrói suas significações, como se submete a certos raciocínios, e como ver as coisas de uma maneira ou de outra.

Com base nessa perspectiva, Ruth Amossy tem desenvolvido uma série de análises sobre interações verbais em que examina usos retóricos, objetivos argumentativos e funções sociopolíticas (cf. PINHEIRO e AMOSSY, 2018)[3]. Nesta conferência[4], ela apresenta um exemplo desse trabalho. Ela parte de um extrato do programa televisivo francês On n´est pas couché (Não estamos na cama), e, em seguida, se concentra nas conversas que abordam o assunto desse extrato, em um fórum de discussão online da RTL (uma rádio comercial francesa). No programa do dia 09 de março de 2019, Marlene Schiappa, Secretária de Estado da França, responde a uma pergunta de Laurent Ruquier, âncora do programa, sobre os Gilets Jaunes (Coletes Amarelos), movimento de protesto, de grande repercussão, que se iniciou na França, em outubro de 2018. No extrato em questão, a Secretária desenvolve um raciocínio sobre a atribuição do status de povo aos Coletes Amarelos.

A primeira parte da conferência é dedicada à microanálise discursiva dessa curta interação verbal. Amossy destaca uma série de mecanismos linguísticos (emprego de modalizadores, escolhas lexicais), fenômenos discursivos (ethos prévio, pressupostos, gênero discursivo, interdiscurso) e processos argumentativos (raciocínio falacioso, argumentação por definição) presentes na fala de Marlene Schiappa, com base nos quais se identifica sua reflexão crítica sobre a relação entre os Coletes Amarelos e a democracia.

Ao empregar e discutir, por exemplo, as expressões le peuple c´est nous (o povo somos nós), le peuple c´est moi (o povo sou eu), le peuple c´est moi aussi (o povo sou eu também), Schiappa realiza um jogo com discursos reportados, promove um deslizamento semântico do termo peuple (povo) (povo como nação, povo como uma camada da população que se opõe à elite) e oferece uma definição argumentativa de povo: le peuple c´est aussi les Gilets Jaunes mais ce n´est pas que les Gilets Jaunes (o povo é também os coletes amarelos, mas não apenas). A partir daí, uma série de procedimentos argumentativos são empregados. Amossy chama um desses procedimentos de denúncia de raciocínio falacioso. Schiappa denuncia raciocínios falaciosos em relação aos Coletes Amarelos (a fala do povo é sagrada, a voz dos Coletes Amarelos é a voz do povo, logo essa voz é sagrada). Esse e outros procedimentos argumentativos servem para marcar uma posição de deslegitimização dos Coletes Amarelos, acusando-os, inclusive, de negar o debate contraditório, essencial à democracia. Amossy conclui essa microanálise com o destaque do fato de que a Secretária de Estado se envolve em uma polêmica pública em que entra em jogo uma guerra de legitimidade entre o discurso dos Coletes Amarelos e o do governo.

A segunda parte da conferência é dedicada à análise da recepção e da repercussão dessa posição de Marlene Schiappa no espaço público, com o propósito de observar como os assuntos polêmicos abordados por uma representante de governo são discutidos publicamente, e quais são as maneiras de pensar em um momento de crise social. Os dados em análise, a partir daí, são as postagens dos participantes do fórum de discussão online da RTL. A análise passa, então, de uma interação curta, caracteriza pelo diálogo em uma entrevista, para uma interação mais longa, caracterizada pelo poliálogo. Amossy assinala que esse fórum é totalmente centrado na performance de Marlene Schiappa.

Uma das primeiras constatações sobre essa interação é o fato de que as postagens não constituem uma discussão regrada, e se organizam em torno de dois grupos de opiniões que se opõem: o dos que defendem o discurso da Secretária de Estado e o dos que atacam. Desenvolve-se, nesse caso, uma interação polêmica em que uma série de réplicas se adicionam, se reforçam ou se contradizem. Amossy, então, passa a apresentar alguns fenômenos discursivos e os principais procedimentos argumentativos presentes nessa interação.

Um dos fenômenos discursivos é a refutação de uma posição através do ataque direto ou através da violência verbal que procura calar o outro. Um dos internautas, por exemplo, ataca a posição de Schiappa, recorrendo à acusação de que ela assume uma posição de superioridade, de desprezo, em vez de assumir uma posição de igualdade com seus interlocutores. Ele diz: un monde d´instruits volant donner des leçons de bon sens aux Français ignares qui ne comprennent rien (um mundo de instruídos que querem dar lições de bom senso aos franceses ignorantes que não sabem nada). Outros internautas atacam verbalmente a Secretária: elle commence à nous fatiguer, le gamine aux dents longues…et personne pour lui faire ferme son claper! (ela começa a nos cansar, criança dentuça, e ninguém para lhe calar a boca).

Um exemplo dos procedimentos argumentativos a que recorrem os internautas é a argumentação por definição, ou seja, um caso em que um mesmo termo da língua recebe diferentes definições. Essas definições acirram a polêmica em torno de temas importantes, como é o caso em análise: os Coletes Amarelos são o povo? Um dos internautas, por exemplo, retoma uma fórmula usada pela Secretária, que substitui peuple (povo) por foule (multidão) e apresenta uma definição hiperbolizada: les gilets jaunes, ce n´est pas le peuple, c´est la populace (os coletes amarelos não são o povo, são um bando). Segundo Amossy, a definição que recorre ao termo pejorativo populace (que nós, aqui, traduzimos como bando) é um argumento contra a tese segundo a qual se deve dar importância às reivindicações do movimento. Outro internauta substitui o termo geral peuple (povo) por designações de classes de status mais preciso, como os policiais, os militares, os assalariados, os agricultores. Essa definição mobiliza a reflexão sobre o sentido de povo em relação ao de nação, à elite e ao governo.

Os diferentes procedimentos argumentativos acirram a polêmica em torno desse tema em especial, mas também conduzem a discussão para outras dicotomias, como representante/representado, maioria/minoria, e chegam a temas mais distantes, como a legitimidade do presidente Emmanuel Macron. A discussão, então, se volta para outros temas como a contestação da representatividade das pessoas eleitas, a democracia representativa, e sentido político e jurídico de representação.

Amossy, por fim, aponta as características do funcionamento da polêmica em um grupo de discussão online. Trata-se de uma interação verbal marcada pelo confronto não regrado. Os participantes (proponentes e opositores) afirmam e justificam uma posição a favor ou contra um tema/questão sem desenvolver uma reflexão comum, um diálogo no qual os argumentos do outro são levados em conta. As réplicas dos proponentes e dos opositores se desenvolvem de forma paralela, na forma de reflexão espontânea em que cada um procura reforçar sua visão sem analisar as razões do outro.

Nesse quadro, os problemas sociopolíticos essenciais não são abordados segundo as regras formais de argumentanção, mas, nem por isso, deixa de existir uma argumentação genuína. Para Amossy, se desenvolve aí uma argumentação do cotidiano, que também precisa ser estudada. Compreender o funcionamento dessa argumentação permite compreender não apenas a ruptura da comunicação entre grupos opostos, mas também as crises sociais profundas expressas na maneira de pensar dos participantes.

Na conclusão da conferência, Amossy assinala duas consequências da análise socioargumentativa tal como ela aplicou: a) um pequeno episódio ligado à fala de um sujeito pode revelar a lógica antagônica de dois grupos em dado espaço social, b) uma microanálise, centrada em textos, é necessária, em uma época em que apenas uma análise quantitativa baseada em grandes corpora recebe o selo de cientificidade.

Com esta conferência Ruth Amossy oferece aos estudiosos do discurso, de forma breve e muito clara, uma sistematização dos princípios teóricos e dos passos metodológicos da Argumentação no discurso. Trata-se, incontestavelmente, de uma perspectiva que muito contribui para a concepção de discurso, e, consequentemente, para a de análise do discurso. Essa análise do discurso apresenta, de forma muito particular, grande relevância social para este momento em que presenciamos grandes crises políticas e sociais sobre as quais precisamos tomar distância para um exercício de autorreflexão.

Referências

AMOSSY, Ruth. L’argumentation dans le discours. Discours politique, littérature d’idées, fiction. Paris, Nathan, 2000.

AMOSSY, Ruth ; KOREN, Roselyne. Rhétorique et argumentation: approches croisées. Argumentation et Analyse du Discours [En ligne], n. 2, p. 1-25, 2009. DOI: 10.4000/aad.561

Les gilets jaunes sont-ils “le peuple”? Une question de société au prisme des interactions verbales dans les médias français. Conferência apresentada por Ruth Amossy [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 35min 47s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5yrBhPH6Up4. Acesso em: 15 mai 2020.

PINHEIRO, Clemilton L.; AMOSSY, Ruth. L´échange polemique - interview avec Ruth Amossy. Calidoscópio, Vol. 16, n. 2, p. 355-358, 2018. DOI: 10.4013/cld.2018.162.16