Linguagem e sociedade em tempos de isolamento

Debbie Mello Noble,
Gabrielle Carvalho Lafin,
Mariana Terra Teixeira

Resumo

O presente texto é uma resenha crítica acerca da conferência do Prof. Rajagopalan que ocorreu em 6 de maio de 2020, na série de conferências on-line organizada pela Abralin durante a pandemia de COVID-19. O principal questionamento a que o conferencista se dedica é: de que estamos falando quando nos ocupamos de repensar a linguagem em seu contexto social nesses tempos? Diante deste questionamento, Rajagopalan desenvolve reflexões acerca da ressignificação dos sentidos dos termos em tempos de isolamento, ancorando-as no pressuposto de que linguagem e sociedade são mutuamente constitutivas. Nesta perspectiva, a condição humana precisaria ser colocada como anterior a qualquer aspecto, de forma a compreender a linguagem como entremeada à sociedade.

Texto

A palestra do Professor Rajagopalan[1] ocorreu em 6 de maio de 2020, na série de conferências on-line organizada pela Abralin durante a pandemia de COVID-19. O professor é Doutor em Linguística Aplicada (PUC-SP), e seus trabalhos se inserem no campo da semântica e da pragmática.

A exposição do Professor Kanavillil Rajagopalan começa com uma reflexão sobre a especificidade do momento que estamos vivendo, sendo o motivo do tema de sua fala, intitulada “Linguagem e sociedade em tempos de isolamento”. O linguista sempre prezou pela análise da linguagem em seu contexto social, mas como pensar linguagem e sociedade se estamos privados justamente do contato social? Diante disso, o professor acrescenta a pergunta: do que estamos falando quando nos ocupamos de repensar a linguagem em seu contexto social nesses tempos?

Para responder a esse questionamento, Rajagopalan apresenta a possibilidade de perceber o presente momento como um retorno ao conceito de bom selvagem, de Jean-Jacques Rosseau: a inocência e a pureza do indivíduo versus a sociedade, que serviria apenas para corrompê-lo. O conceito, que conhecemos a partir de Rosseau, também é debatido por John Dryden, poeta e dramaturgo inglês, que se valeu desse termo para apresentar o homem em seu estado essencialmente puro, antes de ser corrompido pela sociedade, ou seja, é uma crítica dura à civilização.

Para embasar o seu argumento, o professor traz a afirmação de Petra Costa, diretora do documentário indicado ao Oscar “Democracia em Vertigem”, sobre a pandemia funcionar como reveladora do ódio pela humanidade. Em tempos de pandemia, o individualismo se torna mais evidente. Nesse sentido, o professor traz como exemplo a questão do uso de máscara como prevenção ao vírus, uma vez que esta não serviria somente para a proteção de quem a usa, mas para a prevenção no conjunto da sociedade. Quando o indivíduo se nega a usá-la pelo bem comum, torna explícito este ódio à sociedade de que fala Petra Costa.

Outro questionamento apresentado pelo professor está relacionado ao impacto que a pandemia como acontecimento histórico tem na linguagem. Nessa perspectiva, Rajagopalan comenta uma interessante reportagem da Folha de São Paulo acerca do impacto que o COVID-19 tem na língua. Nesse texto, há uma brincadeira realizada por Pasquale Cipro Neto, com a atual ressignificação de termos: ninguém quer ser considerado “positivo”, uma vez que remete ao resultado dos exames; “distanciamento”, por outro lado, agora assume uma conotação boa, já que é essencial estarmos distantes. O professor Rajagopalan também comenta a transformação do termo “viralizar”, brincando que seja possível que os antigos usuários desse verbo o abandonem por um tempo.

Tudo isso aponta para o entendimento de que a língua é viva, ou seja, é uma entidade social que, portanto, move-se conforme os acontecimentos da sociedade, não fica alheia a eles. Por esse motivo, importa pensarmos sobre os termos utilizados durante esta pandemia, conforme a reflexão trazida por Rajagopalan em relação à expressão “distanciamento social” (social distance), cujo emprego foi debatido seriamente na Inglaterra. A adoção do termo “distanciamento social” para a proibição de aglomerações leva a uma questão central, que passa por uma confusão da linguagem quando se associa sociedade e multidão, já que sociedade é algo muito mais complexo. Nesse sentido, seria mais profícuo encorajar a “consciência social”, pois se leva em conta que a conscientização é a melhor forma de educar o povo. Coloca-se em questão o bem-estar individual do sujeito e coloca em vista o bem-estar da sociedade na qual este sujeito está inserido. Passa pela noção de responsabilidade coletiva, trazendo uma visão de sociedade sobre a qual deveríamos estar pensando.

O uso dos termos “distanciamento social” e “isolamento social” são um sério problema, passíveis de uma profunda análise. Ao nos afastarmos e cumprirmos o que de fato deve ser feito nesse momento, estamos, em um aparente paradoxo, mais próximos do social. Estamos agindo enquanto indivíduos integrantes de uma sociedade. Pensando para além do nosso umbigo. Rajagopalan, dotado de senso de humor ainda que estejamos nesses difíceis tempos, presenteia-nos com o conceito de “umbigofilia”, termo que utiliza para nomear o egoísmo dos indivíduos.

Esse individualismo está evidenciado nesses tempos de pandemia, o que é completamente avesso à ideia de sociedade. Rajagopalan cita o antropólogo inglês Robin Dumbar[2], autor da clássica obra Grooming, Gossip and the Evolution of Language, que traz pontos importantes para esse debate. Neste livro, o autor questiona por que a socialização é tão importante para os seres humanos, e entende que, apesar de sermos seres gregários, como os macacos, o que nos diferencia é que somos os únicos capazes de manter os laços sociais. Assim, é possível afirmar que o instinto gregário faz com que nos juntemos, mas é o humano que consegue nutrir e manter esses laços sociais.

Nesse sentido, para entender a sociedade, é preciso entender os diversos laços sociais que se criam. Neste ponto, é necessário ressaltar o papel da sociedade na linguagem. Para Rajagopalan, a sociedade é um componente essencial, constitutivo da linguagem, ela não vem após a linguagem. Segundo o pesquisador, os estudos da linguagem que partem da sociedade trazem uma visão completamente diferente daqueles que pensam o indivíduo aprioristicamente.

Para Rajagopalan, os linguistas se dividiriam entre aqueles que pensam que a linguagem parte “do indivíduo para a sociedade” e aqueles que avaliam que parte “da sociedade para o indivíduo”. O professor questiona se, de fato, tanto faz: uma perspectiva que trata a linguagem como atributo do homem deixa inelegível a ideia de linguagem como atributo de homens, no plural. Uma definição de linguagem que não comporta um elemento da sociedade, segundo Rajagopalan, não é uma definição de linguagem. É um mero simulacro da linguagem, pois, para ter linguagem, é preciso, pelo menos, duas pessoas comunicando-se, como na clássica imagem do Curso de Linguística Geral.

Quando se pensa em linguagem, pensa-se em quem nós somos. O que nos constitui ser humano e não um mero ser vivo? A inteligência somente? Para Rajagopalan, é preciso pensar nos laços que nós conseguimos estabelecer como seres humanos, os quais estabelecemos por meio da linguagem, a qual está assentada numa cultura. Não seria, portanto, questão de gosto, ou de conveniência: o ponto de partida determina o resultado, porque o ponto de partida está assentado sobre um posicionamento ideológico sobre a natureza do ser humano, a natureza da sociedade.

Em seu texto “Aspectos sociais da pragmática”, Rajagopalan[3] traz o conceito de pragmática como a intersecção entre a linguagem e o social, o que leva o título do texto a ser redundante, como chama atenção o próprio autor. Neste seu texto, Rajagopalan argumenta o conceito com o exemplo da doença AIDS (Acquired Immunodeficiency Syndrome). Segundo o autor, se tirássemos a sociedade da AIDS, a doença não existiria, funcionamento análogo à relação linguagem e sociedade. Portanto, para o autor, é impossível pensar uma sem a outra, isto é, linguagem sem sociedade, e vice-versa.

Nesse sentido, o que o coronavírus tem a nos ensinar, a nos fazer pensar sobre linguagem e sociedade? Para o professor, este momento já está afetando nosso modo de agir, de pensar, está fazendo com que reavaliemos nosso lugar no mundo e a importância da nossa linguagem. Assim como só podemos sair desse sofrimento pensando coletivamente, é preciso encontrar uma linguagem em comum, pensar a linguagem como algo que aglutina o homem, repensá-la como entremeada à sociedade. A condição humana, portanto, precisa vir antes de qualquer aspecto quando se discute linguagem. Isso é um desafio enorme e, ao mesmo tempo, uma possibilidade: de alguma forma, enquanto professores, nosso papel é ajudar os discentes a sair da “umbigofilia”.