Linguagem e sociedade: aproximações e distanciamentos em tempos de pandemia

Arthur Marques de Oliveira,
Larissa Colombo Freisleben

Resumo

A conferência aborda as mudanças sociais decorrente da pandemia, analisando a forma como alguns termos vêm sendo utilizados, como distanciamento social, e o significado desses usos, que apontam para um comportamento individualista frente à pandemia e um retorno à ideia de bom selvagem de Rousseau, em que a sociedade é identificada como um problema. Rajagopalan sugere a adoção novos termos, como a substituição de distanciamento social por conscientização. O linguista chama atenção para o retorno da magia da “palavra soprada” durante a pandemia, em que a voz assume uma importância antes esquecida. Além disso, questionando certas visões comuns na linguística, defende um estudo da linguagem que considere a sociedade como componente essencial e constitutivo de seu objeto, mas que deixe espaço para a ação do sujeito agente, resguardando a possibilidade de decisões éticas.

Texto

A conferência aqui resenhada[1] tem como tema a apresentação e discussão de algumas reflexões sobre linguagem e comportamento social no contexto da pandemia. A conferência faz parte do evento virtual Abralin ao Vivo, que foi organizado pela Abralin – Associação Brasileira de Linguística, em cooperação com o CIPL – Comité International Permanent des Linguistes, a ALFAL – Asociación de Lingüística y Filología de América Latina, a SAEL – Sociedad Argentina de Estudios Lingüísticos e a LSA – Linguistic Society of America. O linguista convidado para essa conferência foi Kanavillil Rajagopalan, que é professor titular na área de Semântica e Pragmática das Línguas Naturais da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), tendo em seu currículo: 6 livros, mais de 600 textos e o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico "Zeferino Vaz" no ano de 2016.

Rajagopalan inicia sua fala trazendo uma crítica ao contexto atual do Brasil, que atravessa não só a pandemia (viral) como também um pandemônio (político), e dissertando sobre o descaso de figuras importantes do governo com a real severidade e consequências do Coronavírus (COVID-19). Nesse viés, Rajagopalan adentra o tema do isolamento social e como esse fenômeno instaura uma comoção ruim nos indivíduos da sociedade. Dito isso, corrobora esse posicionamento trazendo o conceito de “bom selvagem”, elaborado pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau, que estava convencido de que o homem é bom por natureza, sendo o viver em sociedade a causa da sua degradação moral. O conceito de Rousseau é retomado, pois em tempos de pandemia, parece que a ideia de “bom selvagem” se mostra mais presente, revelando uma espécie de ódio à sociedade e aos indivíduos em geral, que são vistos como um problema.

Imerso nesse cenário, Rajagopalan faz alusão ao conceito de “umbiguismo”, neologismo utilizado para caracterizar a atual sociedade, que está doente e cega, permeada de narcisismo e egocentrismo. Desse modo, é possível aferir que a sociedade está sofrendo alterações em sua forma de ser/existir e, por consequência, a linguagem também. Um exemplo disso, é o fato de estar ocorrendo uma (re)significação de algumas palavras, como por exemplo, distanciamento e conscientização social. Desse modo, está em voga a questão da proibição de aglomeração/multidões de pessoas, contudo, o sentido que está sendo dado para o termo distanciamento social está equivocado; o termo sociedade não significa multidão ou aglomeração, é algo completamente diferente, mais complexo, não podendo assim ser reduzida a uma aglomeração. Nesse sentido, a questão da escolha, do emprego e do sentido léxico é uma discussão rica e preocupante ao mesmo tempo.

Essa (re)significação muda a forma como os indivíduos olham e interagem com a sociedade e com o mundo. Por isso, uma das sugestões de Rajagopalan é substituir o uso do termo distanciamento por conscientização social, com o sentido de colocar o bem-estar do eu em segundo plano, primando pelo bem-estar do todo. Cita-se aqui Freire (2008, p. 29-30)[2]:

a conscientização é um teste de realidade, à medida que o ser humano a desvela, tomando distância diante do mundo; toma distância para admirá-lo, desdobrando sua capacidade de “agir conscientemente sobre a realidade objetivada”, ato que funda a práxis humana, “a unidade indissolúvel entre minha ação e minha reflexão sobre o mundo.

Sob esse ângulo, também se faz necessário pensar a importância da fala ou da “palavra soprada”, de acordo com o autor, pois durante o período de quarentena está se fazendo mais uso de ligações ou de mensagens de voz para manter as relações sociais. Rajagopalan salienta que há um resgate da “magia” e importância da palavra soprada, que tinha sido esquecida até pouco tempo atrás. A partir dessa constatação, o autor afirma: “estamos “brincando” com palavras, mas isso é sério: vai criando uma forma de olhar para a vida e para o mundo”. Afinal, como discute em seu texto "Social aspects of Pragmatics", traduzido para português no livro Nova Pragmática, só é possível falar de Pragmática considerando os aspectos sociais.

Rajagopalan defende que a sociedade é um componente essencial e constitutivo da linguagem: subtraindo a sociedade da noção de linguagem, o que resta é apenas um simulado de linguagem. O linguista se opõe a perspectivas teóricas que colocam a sociedade como, no máximo, um plano de fundo, focando no falante individual (tese do autonomismo). Rajagopalan mostra que se historicamente os linguistas se dividiram entre os que tomam como ponto de partida o indivíduo ou a sociedade (inside-out ou outside-in), essa escolha não é meramente uma questão de gosto ou preferência pessoal, mas uma decisão que se assenta em visões ideológicas sobre o ser humano.

Além disso, Rajagopalan também abarca a seguinte questão: se para haver linguagem há sempre, pelo menos, um homem falando com outro homem, então é necessário incluir na definição de linguagem a sociedade e a cultura. Esse ponto de vista é sustentado por alguns autores que o próprio Rajagopalan apresenta, como por exemplo, o filósofo Christopher Belshaw[4]: “a linguagem é uma arte social”. Outra perspectiva, que não é citada por Rajagopalan, mas que também abarca essas questões, é a Linguística da Enunciação de Émile Benveniste, que sustenta o seguinte: “[...] é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como ‘sujeito’; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’” (Benveniste, 1958-2005, p. 286)[3].

Imerso nessa conjuntura, Rajagopalan discute na conferência a questão da transitividade e unicidade dos seres humanos: conforme o antropólogo Robin Dunbar, citado pelo linguista, a diferença entre o ser humano e os outros seres gregários é que, além de criar laços sociais, nós os mantemos. Para entender a sociedade, então, precisamos entender os laços sociais, pois é por meio dos quais criamos e refletimos uma cultura em comum. No entanto, Rajagopalan faz um alerta: a inclusão da sociedade e da cultura na reflexão sobre a linguagem não pode acabar com o indivíduo. Deve haver espaço para o sujeito agente, o sujeito conscientizado, que não está preso em uma teia sem possibilidades de escolha: pelo contrário, deve-se deixar espaço para decisões munidas de ética e criticidade. Dito isso, acreditamos que exista espaço a partir dessa discussão, para pensar algumas questões inerentes ao sujeito, como por exemplo, possíveis espólios consequentes da pandemia em sua identidade, subjetividade e intersubjetividade.

Rajagopalan convida todos a repensarem a condição humana e o individualismo que impera em nossa cultura a partir da pandemia. O autor convoca linguistas e professores a “respirar fundo e pensar no que estamos fazendo”: as visões canônicas que dominaram o pensamento sobre a linguagem durante muito tempo precisam ser repensadas. Assim, entendendo que nossos pontos de partida partem de visões ideológicas, somos convidados a repensar a constituição de nosso objeto e a sua abordagem, tendo em vista um futuro incerto para dois organismos vivos: a língua e os seres humanos.

Referências

BELSHAW, C.; KEMP, G. 12 Modern Philosophers. Hoboken: Blackwell Publishing, 2009.

BENVENISTE, E. (1958). Da subjetividade na linguagem. In: Problemas de Lingüística Geral I. 5ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2005.

FREIRE, P. (2008). Conscientização: teoria e prática da libertação. Uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro.

LINGUAGEM e sociedade em tempos de isolamento. Conferência apresentada por Kanavillil Rajagopalan [s.l., s.n], 2020. 1 vídeo (1h 17min 59s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g-vEw5u4V3M. Acesso em: 05 mai 2020.