Aspectos linguístico-discursivos para a análise do discurso humorístico

Rafael Prearo-Lima

Resumo

Esta resenha tem como objetivo fazer uma descrição da conferência apresentada por Sírio Possenti, não apenas avaliando seu conteúdo, como também discorrendo sobre pontos que merecem destaque. Em sua fala, Possenti analisa um conjunto de textos composto por alguns gêneros do campo humorístico (entre outros, piadas e charges) a fim de mostrar como a forma, isto é, os mecanismos linguísticos são, em geral, mais importantes do que o conteúdo em si na produção do efeito humorístico. Ao explicar o funcionamento de tais mecanismos em suas análises, Possenti explicita a importância do humor para os interessados nos estudos da língua/linguagem, como os analistas do discurso.

Texto

O evento virtual Abralin Ao Vivo, promovido pela Abralin (Associação Brasileira de Linguística) em parceria com o CIPL (Comité International Permanent des Linguistes), a ALFAL (Asociación de Lingüística y Filología de América Latina), a SAEL (Sociedad Argentina de Estudios Lingüísticos) e a LSA (Linguistic Society of America), foi uma iniciativa para promover um espaço para discussões e reflexões sobre os mais diversos aspectos dos estudos linguísticos durante a quarentena em razão da pandemia de coronavírus em 2020. O evento, que contou com a contribuição de nomes importantes da Linguística, propiciou a todos os interessados uma oportunidade de acesso livre a conteúdos relevantes.

Como parte desse evento virtual, a conferência “Por que o humor interessa a linguistas e a analistas do discurso?”[1], apresentada por Sírio Possenti, professor titular no Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), teve como objetivo analisar um conjunto de textos composto majoritariamente de piadas e demonstrar como mecanismos linguísticos produzem um efeito humorístico. Autor de vasta obra, que inclui mais de duas centenas de trabalhos publicados, entre artigos científicos, capítulos de livros e livros, Possenti é um dos grandes nomes da Linguística e da Análise do Discurso no Brasil e, entre outras questões, se dedica ao estudo do humor.

Em sua apresentação, direcionada não apenas aos estudantes de Letras e/ou Linguística, mas aos interessados nos estudos da linguagem em geral, Possenti dá maior ênfase à análise do corpus apresentado do que a princípios teóricos subjacentes, retomando conteúdos publicados em sua obra, encontrados especialmente em Os humores da língua (POSSENTI, 1998)[2] e Humor, língua e discurso (POSSENTI, 2010)[3]. A apresentação, em tom didático, é dividida em três partes: na primeira, muito concisa, Possenti explica dois conceitos teóricos para sustentar suas análises a seguir; durante a segunda, a mais longa, ele analisa um conjunto de piadas, demonstrando como mecanismos linguísticos produzem um efeito humorístico; por fim, Possenti responde a algumas perguntas dos espectadores.

A respeito dos conceitos teóricos, e a fim de sustentar suas análises, Possenti apresenta brevemente duas noções. Primeiramente, ele defende a proposição de Freud (2017)[4], para quem a piada está mais associada à forma do que ao conteúdo. Dito de outra maneira, ainda que uma piada tenha conteúdo e temas específicos, é sua forma que produz o efeito desejado – às vezes, o riso. Em segundo lugar, Possenti defende que o elemento principal de uma piada é a surpresa, em referência à teoria proposta por Raskin (1984)[5] sobre gatilhos, segundo a qual o ouvinte/leitor, ao ouvir/ler uma piada, deve fazer pressuposições, inferências ou conhecer determinados assuntos a fim de ‘preencher’ as lacunas linguísticas necessárias para sua compreensão.

Além desses aspectos teóricos, Possenti também menciona durante sua apresentação, ainda que indiretamente, o conceito de scripts, outra noção desenvolvida por Raskin (1984)[5], segundo a qual uma piada deve ser parcial ou totalmente compatível com dois scripts que se sobrepõem e que funcionariam – em tese – de formas opostas entre si. No caso de uma piada parcialmente compatível com dois scripts, um deles não seria aceitável como parte da interpretação em questão.

Tais noções, apesar de brevemente apresentadas, são suficientes para a análise do corpus selecionado para a conferência virtual. Entretanto, ainda que Possenti tenha afirmado não ser seu objetivo se aprofundar em aspectos teóricos, ele poderia ter dado, quer nesse momento, quer ao final de sua fala, sugestões de referencial teórico a fim de que os participantes pudessem pesquisar sobre o assunto.

No momento seguinte, Possenti analisa um conjunto de piadas para demonstrar como mecanismos linguísticos (de ordem fonética/fonológica, prosódica, lexical, semântica, sintática,…) são usados como gatilhos, resultando na surpresa característica desse gênero. Em alguns casos, é preciso acessar uma memória sobre o assunto e/ou tema, por exemplo, quando ele analisa uma piada sobre Ayrton Senna e Nelson Piquet, dois ex-pilotos brasileiros de Fórmula 1. Além de piadas, Possenti discorre sobre frases consideradas como humorísticas, conforme seu ensaio Humor e grandes frases (POSSENTI, 2018)[6]. De forma geral, a análise, apesar de relevante e enriquecedora, ficou restrita, em grande parte, a piadas e algumas charges. Possenti talvez pudesse ter incluído em sua apresentação – caso dispusesse de mais tempo – outros gêneros, como memes, dada a importância das redes sociais na sociedade contemporânea.

Na seção de perguntas e respostas, Possenti discute sobre importantes questões relacionadas ao humor, como a análise de gêneros multimodais, a tradução de piadas, a dissociação entre riso (cf. BERGSON, 1983)[7] e piadas, em que o riso não está necessariamente associado a piadas, mas também ocorre em outras circunstâncias, por exemplo, em resposta a representações exageradas de palhaços em um circo. Sua principal contribuição nessa seção ocorreu em dois momentos. Primeiramente, a respeito do politicamente correto, Possenti afirma se interessar pela polêmica que opõe dois lados: de um, aqueles para quem não é correto usar vocábulos que depreciem minorias sociais, nem mesmo no campo humorístico; de outro, aqueles que acreditam que o humor apenas revela a existência de preconceito(s) na sociedade e, portanto, deve ser livre. No segundo, Possenti, baseado na teoria de campos de Bourdieu (1989)[8], reafirma sua tese de que o humor é um campo (POSSENTI, 2010, 2018)[3,6], e, para defender sua posição, compara traços semelhantes entre os campos humorístico e o literário. É importante ressaltar que outras questões levantadas pelos participantes durante conferência foram deixadas de lado pela mediadora, por exemplo, o uso de termos como “humor negro”. Tais questões, ainda que muito controversas, enriqueceriam a apresentação de Possenti.

De modo geral, a conferência é muito produtiva para graduandos de Letras/Linguísticas e/ou para aqueles que gostariam de ter uma noção inicial a respeito do funcionamento do humor com base em aspectos linguísticos. Por outro lado, para aqueles que já são estudiosos da área, a apresentação serve para retomar alguns conceitos conhecidos sem, no entanto, apresentar conteúdos novos.

Referências

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.

FREUD, Sigmund. O chiste e sua relação com o inconsciente. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

POR que o humor interessa a linguistas e a analistas do discurso? Conferência apresentada por Sírio Possenti [s.l., s.n.], 2020. 1 vídeo (1h 20min 27s). Publicado pelo canal da Associação Brasileira de Linguística. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=csmXQymma0Y. Acesso em: 06 mai 2020.

POSSENTI, Sírio. Os humores da língua: análises linguísticas de piadas. Campinas: Mercado de Letras, 1998.

POSSENTI, Sírio. Humor, língua e discurso. São Paulo: Contexto, 2010.

POSSENTI, Sírio. Cinco ensaios sobre humor e análise do discurso. São Paulo: Parábola, 2018.

RASKIN, Victor. Semantics mechanisms of humor. Dordretch: D. Reidel: 1984.