Do fosso às pontes: um ensaio sobre natividade digital, nativos Jr. e descoleções

Ana Elisa RIBEIRO

Resumo

Este trabalho, de cunho ensaístico, apresenta uma releitura crítica e uma discussão sobre o texto “Digital natives, digital immigrants”, do designer de jogos norte-americano Marc Prensky, publicado em 2001 e mencionado até os dias de hoje, no contexto da pesquisa brasileira em linguística aplicada e em educação. Considera-se relevante repensar as questões ali colocadas, quase duas décadas atrás, e principalmente discutir a noção de um “fosso digital” estabelecido entre os atores que convivem nas escolas: alunos e professores. A fim de estabelecer algum contraste teórico e mesmo epistemológico sobre como pensar as questões de educação relacionadas às tecnologias digitais, recorremos a Néstor García Canclini e à proposta também mais democrática e mais contextualizada da pesquisadora Roxane Rojo.

1 Desbloqueando1

Em 2017, jornais e revistas divulgaram amplamente os resultados de uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)2 segundo os quais há mais telefones celulares do que habitantes no Brasil. Além disso, a maioria absoluta das pessoas que os possuem acessa a internet por meio do aparelho. Além de um dado estatístico considerado sério, essa é também a percepção de qualquer um que olhe ao redor e observe o comportamento de colegas, amigos, familiares e desconhecidos na rua ou no transporte público, por exemplo.

Ao que parece, os aparelhos de telefonia celular atravessam questões de classe social (se desconsiderarmos uma análise de quais modelos de aparelhos as pessoas usam, claro), gênero, etnia, etc. Todos, ou quase todos, temos um aparelho nas mãos ou nos bolsos – às vezes em ambos, inclusive em ambiente escolar, espaço onde uma discussão acirrada vem sendo travada a respeito dos usos dos dispositivos para finalidades pedagógicas ou não. Por enquanto, em muitas cidades e estados brasileiros, o aparelho é simplesmente proibido em sala de aula3, a despeito de uma silenciosa (ou nem tanto) desobediência da maioria sobre isso.

Se esse é o cenário no qual estamos inseridos já quase entrada a segunda década do século XXI, pode ser sinal de que, mais uma vez, as práticas sociais dão passos mais largos e mais ágeis em direção à mudança, enquanto a discussão e mesmo a teoria vêm atrás, nointuito de compreender ou mesmo de descrever o que acontece e oque se transforma em nossa sociedade, em especial no contexto sulamericano, que é o que mais nos interessa.

Se os telefones celulares estão nas mãos de quase todos os brasileiros e se a internet está razoavelmente acessível por meio deles, como temos gerenciado nossas práticas comunicativas, culturais e outras? Se grande parte desses equipamentos são os chamados smartphones, isto é, telefones microcomputadores capazes de acessar a web e operar com aplicativos, conectar pessoas e permitir aampliação das redes sociais, como temos composto e administrado nossas coleções (CANCLINI, 2013[1])? Quão produtiva e integradora é, hoje, a ideia de natividade digital, se a população massiva consome e produz por meio dos recursos de um telefone esperto? Como podemos pensar a questão do fosso (digital divide)4 entre “nativos” e“imigrantes” digitais nos dias de hoje, quase duas décadas depois da publicação do artigo de Marc Prensky que propôs esses rótulos e essa divisão geracional, esse aparte entre professores e alunos?

2 Natividade, migração: um texto fundadorde quê?

Em outubro de 2001 (portanto, quase vinte anos atrás), o palestrante, consultor e designer de jogos Marc Prensky (Nova Iorque, 1943, hojecom 73 anos) publicou um texto de seis páginas na revista americana On the horizon, sem referências ou fontes, iniciando sua proposição num parágrafo em que dizia que o sistema educacional não havia sido desenhado para ensinar aos estudantes de hoje (2001[2]), que haviam mudado “radicalmente” em relação a gerações anteriores, como a sua própria. Prensky comparava, então, os estudantes da virada do milênio aos de décadas anteriores, entre os quais haveria uma “grande descontinuidade”5, uma ruptura que iria muito além de roupas, gírias eadornos.

Em 2001, o autor falava de uma geração que crescera (grow up) em contato com as novas tecnologias (digitais), cercados por (surrounded by) e usando (using) computadores, video games, câmeras, telefones celulares, segundo uma lista composta pelo game designer. Segundo Prensky, os graduandos (estudantes do ensino superior) da viradado milênio passaram muito mais horas jogando videogame ou vendo TV do que lendo livros. E daí partia-se para a procura de um novo nome ou de um rótulo para eles. Refutando os anteriores N-gen e D-gen (Net e digital generation, respectivamente), Prensky cunhouseu pregnante “nativos digitais”, amplamente aceito no Brasil desde pouco depois da publicação do texto, certamente importado/traduzido por entusiastas das então NTIC na escola e disseminadoresde certo discurso empresarial. Diz ele: “Nossos estudantes de hoje são todos ‘falantes digitais’ da linguagem digital dos computadores, dos videogames e da internet”6 (PRENSKY, 2001, p. 1[2]).

E o resto de nós?, pergunta o autor, “nós que não nascemos no mundo digital mas que, num ponto tardio de nossas vidas,ficamos fascinados e adotamos menos ou mais aspectos das novas tecnologias”7, nós, então, seremos chamados de “imigrantes digitais”, que teremos sempre, em algum grau, um “sotaque” e um “pé no passado”8 (PRENSKY, 2001, p. 2[2]). É de se notar o uso do pronome pessoal de primeira pessoa do plural (We/nós), que incluiria o próprio Prensky, mas que, muito provavelmente, não passava de uma manobra retórica e discursiva convincente. Talvez seja interessante reiterar que o autor era, àquela altura, com pouco mais de 50 anos de idade, um bem-sucedido empresário dos jogos e da informática, e publicava um texto justamente para ensinar como deveria ser o futuro das escolas e do ensino, em um exercício propositivo, mas de certa futurologia.

Para defender a distinção que criara entre nativos e imigrantes (uma metáfora no mínimo indelicada, nos dias que correm, com tantas questões humanitárias graves ligadas a imigrantes, preconceitos e diásporas), Prensky dava exemplos sobre como estes agiam em relação àqueles: “lendo um manual de um programa em vez de compreender que o programa mesmo os ensinaria a usá-lo”(PRENSKY, 2001, p. 2[2])9. O modo de socialização dos imigrantes também estava obsoleto e viriam mais “centenas” de exemplos, como “imprimir e-mails ou ter uma secretária que o faça”, editar documentos impressos em vez de fazê-lo diretamente na tela, fazer reuniões presenciais para ver um site interessante em vez de simplesmente enviar a URL ou, para um último exemplo, dar um telefonema para dizer que enviou um e-mail.

Apesar de mencionar que isso tudo poderia ser uma brincadeira, Prensky (2001[2]) logo viria dizer que a seriedade da situação residia no fato de que esses imigrantes estavam dando aulas a pessoas que falavam uma linguagem inteiramente nova, os nativos. Para estes a descrição incluía jovens multitarefas, que recebiam informação rapidamente e a processavam paralelamente (e não linearmente, supõe-se), que preferiam o gráfico antes do texto, acesso aleatório às informações, trabalhavam melhor em rede (network) e gostavammais do jogo do que o que fosse sério demais. Ao contrário dos imigrantes, que, para Prensky, aprendiam e ensinavam “lentamente, passo a passo, uma coisa de cada vez, individualmente e, acima de tudo, seriamente”. Para os imigrantes de Prensky, era difícil aceitar que os jovens pudessem estudar vendo TV ou ouvindo música, ou que aprender fosse divertido, afinal, não haviam crescido assistindo ao Vila Sésamo (sim, o autor cita a Sesame Street).

Quanto aos professores “imigrantes”, agora diretamente, Prensky (2001[2]) os considerava um tanto incapazes de lidar com pessoas que estivessem em sala de aula e tivessem por hábito assistir à MTV ou jogar videogames, pessoas acostumadas à “instantaneidadedo hipertexto, da música para download, fones nos bolsos, uma biblioteca em seus laptops, mensagens de transmissão instantânea”(PRENSKY, 2001, p. 3[2]). Baseado em breves depoimentos de estudantes, ele passa então a criticar os professores “imigrantes”, criando, finalmente, uma cisão, uma barreira ou um fosso, entre nativos e imigrantes.

E como lidar com isso? “Os nativos digitais devem aprender das velhas maneiras ou os imigrantes digitais devem aprender a novidade?”10 (PRENSKY, 2009, p. 3[2]). Reforça-se a metáfora da imigração e o fosso entre nativos e imigrantes ao se dizer, literalmente, que mesmo que os professores desejem se aproximar de um ensino mais novo, não podem, não conseguem, devido ao “sotaque” que sempre terão ou, pior, ao funcionamento de seus cérebros, que não aprenderam um novo jeito de estar no mundo. A solução, então, é mudar os conteúdos e as metodologias de ensinar o quanto antes, mantendo o que for tradicional e importante como legado (legacy), mas admitindo uma mudança no jeito de ensinar e na entrada de novos conteúdos (future). Legado são conteúdos como leitura, escrita, aritmética, pensamento lógico etc. Já os conteúdosdo futuro, segundo Prensky (2001, p. 4[2]), deveriam incluir “ética, política, sociologia, línguas” e o uso de computadores.

Mas o autor se pergunta (e se responde): quem ensinará isso aos jovens? Não há professores preparados. O importante seria, então, ensinar o currículo tradicional (legacy) e o do futuro, na linguagem dos nativos digitais. Neste ponto, o autor defende o ensino por meio de jogos11, mesmo que os conteúdos sejam “velhos”, já que os games são uma linguagem considerada por ele totalmente familiar à juventude. Daí em diante, Prensky passa a fazer propaganda de um dos jogos bem-sucedidos aperfeiçoados/criados por sua empresa.

Diante desta leitura atenta e relativamente pormenorizadado texto, considerado seminal para a ideia da natividade digital; um texto difundido à exaustão, embora eu tenha dúvidas sobre sua leitura atenta e contextualizada por muitos que o citam; diante da proposição, também, de um fosso entre estudantes e professores devido às suas gerações; o que se pode pensar, nos dias de hoje, quase vinte anos depois dessa publicação? O que um texto como “Digitalnatives...” fundamenta? Um fosso ou uma ponte?

3 Duas décadas depois

Há alguns elementos que podem ser discutidos desde o texto de Prensky, na virada do milênio, a que eu e o leitor provavelmente assistimos. Pretendo abordar aqui, embora brevemente, cinco aspectos, quais sejam: a) o contexto de publicação do texto de Prensky e a importância de sempre considerá-lo deiticamente; b) minha situação particular em relação ao texto de Prensky, na tentativa de angariar a identificação de outros colegas e estudantes; c) a metáfora triste do imigrante, em seus significados velados; d) a proposição de dois rótulos em oposição (nativo vs imigrante), generalizadamente criando também um fosso entre duas gerações que precisam viver em contato, isto é, alunos e professores, nas escolas; e) a necessidade de pensarmos teorias mais integradoras do que desintegradoras, além de pensarmos desde a América Latina e o Brasil, contextos, a meu ver, muito específicos (usarei exemplos da virada dos anos 1990/2000, de que me lembro muito bem).

3.1 Um texto datado e uma conta em eterno movimento

O texto de Marc Prensky foi publicado nos Estados Unidos, nos meses finais de 2001, em uma revista da área de Educação que dava seus primeiros passos. O periódico existe desde 200012 e, naquele mês, publicava seu quinto número do ano, que continha cinco breves artigos, sendo o de Prensky o primeiro. Ter claro que se trata de um texto de 2001 é fundamental para todas as leituras posteriores de “Digital natives, digital immigrants”, uma vez que nele o autor faz uma espécie de “conta” matemática, no presente, isso é, no momento em que enunciava. Dessa forma, tratava-se de um texto “dêitico”, que por isso é também datado.

Essa característica é especialmente importante para pensarmos quem era Prensky em 2001 e quem éramos nós, leitores, professores, duas décadas atrás em nossas vidas. Tem sido comum encontrar referências à ideia de “nativos digitais” que incluem os estudantes de hoje, 2019, e mantêm o fosso digital em que acreditava (ou propunha?) Prensky, mesmo que os autores de um artigo de 2019 sejam um daqueles jovens universitários da virada do milênio. O que nos ocorreu e à escola, desde então?

Há elementos no texto do norte-americano que são inegáveis: a mudança da sociedade sob influência das tecnologias digitais; os novos comportamentos das pessoas, em especial dos jovens; a necessidade de a escola mudar sempre, acompanhar, minimamente, seu tempo e seu público; a formação dos professores em acordo com sua época; etc. No entanto, esses grandes temas precisam ser vistos de maneira mais ampla e mais vaga. É importante conseguir olhar fixamente para algum ponto e enxergar também especificidades.

Parece óbvio que as escolas sejam compostas por um corpo de pessoas cujos papéis são diversos (estudantes, professores, funcionários administrativos, de logística, de segurança, de biblioteca, etc.) e que essas mesmas pessoas tenham características variáveis. Háprofessoresdeidadesdiferentes, assimcomoestudantes e funcionários, em uma mesma escola, convivendo ao mesmo tempo. Portanto, não é verdade que todos os professores de todos os jovens sejam velhos e desatualizados.

É de supor, então, que seja possível encontrar em uma escola diferenças de idade entre alunos e professores que sejam pequenas ou grandes. Além disso, a chegada das tecnologias digitais, em especial do computador e da internet, ocorreu em um ponto discreto de nossa linha do tempo, em nossa história (humana e individual), o que quer dizer que todas as pessoas foram afetadas por isso, embora certamente de maneira desigual não apenas por serem, em tese, menos ou mais capazes de aprender sobre novas tecnologias, como afirmava Prensky (2001[2]), mas também, e talvez principalmente, porque temos acessos, necessidades, papéis e desejos muito diferentes entre nós.

É fundamental ler o texto de Prensky, em especial no Brasil, onde ele frutificou, mas sempre tendo em mente que a conta que ele fez valeu para aquele momento, e que todos os envolvidos envelheceram e se movimentaram junto com seu texto.

3.2 Quem éramos e onde estávamos na virada do milênio

Esta é uma seção bem pessoal deste ensaio, onde pretendo me mover na história e me localizar na época da publicação de “Digital natives, digital immigrants”, em 2001, aproveitando o ensejo para convidar o/a leitor/a a fazer o mesmo. Naquele ano, eu acabara de entrar no mestrado, depois de me formar na graduação em Letras, pela Universidade Federal de Minas Gerais. O computador, no contexto brasileiro, era ainda uma novidade, assim como os telefones celulares. Tive meus primeiros contatos com um personal computer cerca de cinco anos antes, quando ainda estava no ensino médio, mas a máquina não era, em absoluto, um item popular.

Durante a faculdade, já no primeiro semestre, senti a necessidade real de saber usar um computador, mais especificamente o programa Word, para conseguir uma bolsa de Extensão. E ainda não eram comuns as pessoas que sabiam operar o pacote Office. Ainda era o tempo de cursos livres de informática, de indivíduos que precisavam fazer cursos de digitação e de um discurso de que operar uma máquina dessas era imperativo para o mercado de trabalho futuro.

No entanto, ainda entregávamos trabalhos manuscritos na faculdade, em uma metrópole brasileira, na região Sudeste do país, e nenhum de meus colegas portava um telefone móvel. Não havia o que hoje chamamos de redes sociais e duas aplicações muito populares começavam a fazer sucesso: os chats (em salas de bate-papo) e os blogs. Os provedores de internet ainda eram pagos, as contas de e-mail ainda não eram massivamente “na nuvem” (começava o Hotmail, mas ainda usávamos Eudora nas máquinas, em que as mensagens eram baixadas) e a banda larga era ainda um sonho distante. A internet funcionava por pulsos telefônicos, quando alguém a tinha em casa, em geral preferia-se usá-la depois da meia-noite.

Pelas contas de Marc Prensky, eu era uma “nativa digital”. Tinha cerca de 25 anos, mas meus colegas poderiam ter um pouco menos; cursava a faculdade, onde encontrava professores da idade dele ou mais velhos, alguns já se aposentando (embora as pessoas se aposentassem mais cedo naquele tempo). Usar um computador e a internet foram necessidades minhas e dos meus colegas, mas isso ainda era uma demanda de estudo e de trabalho, não exatamente um recurso familiar; não em meu contexto imediato.

Pela simples conta de 2001 para cá, eu deveria assumir o privilégio de ser uma “nativa digital”, sentir-me parte do contexto de mudança tecnológica que me teria feito preferir o videogame ao livro, a velocidade do videoclipe, a não-linearidade do hipertexto13 e o processamento paralelo dentro do cérebro. Enquanto isso, talvez eu devesse assumir o discurso de que tive professores “imigrantes”, em sua maioria desatualizados, com grandes dificuldades de se comunicarem comigo e muito lentos em suas formas de dar aula. No entanto, não posso dizer que tenha me sentido no fosso digital, assim como não posso me esquecer de que foi justo na faculdade que as primeiras demandas de uso do computador e da internet ficaram sérias para mim. Também foi lá que usei muito os chats do UOL para me entreter.

O posicionamento de nossas timelines, o recurso à memória, me parece importante para que equilibremos nosso discurso sobre o fosso digital, para que relativizemos todos os movimentos da virada do milênio até os dias de hoje, lembrando sempre que mudamos todos, nesse tempo, e que nosso contexto tem suas especificidades. A descrição de Prensky sobre aqueles jovens americanos que tinham ao seu alcance, facilmente, computadores, a MTV (no Brasil, foi por cabo durante muito tempo) e telefones celulares14 não coincidem com o cenário de que consigo me lembrar, quando tínhamos todos vinte anos menos, no Sudeste brasileiro.

3.3 Imigrante em metáfora

Para erigir seu modelo de funcionamento das escolas e da relação entre estudantes e professores, com o objetivo de propor um novo currículo e a produção de jogos para ensinar, Marc Prensky empregou metáforas. A força de sua analogia com nativos/imigrantes e a dificuldade de falar uma nova língua, quanto mais velho se é, mostrou resultados relativamente rápido. O autor empregou argumentos de autoridade para sustentar suas descrições de como funcionam jovens e velhos (visita supostas pesquisas médicas e neuropsicológicas, menciona o funcionamento cerebral), além de traçar um paralelo entre as pessoas que jamais conseguirão falar uma língua perfeitamente por terem entrado em contato com ela tarde demais. De outro lado, exibe a predisposição dos mais jovens à natividade em tecnologias, já que foram expostos a elas mais cedo e passam a raciocinar com elas.

O nativo digital fez sucesso junto à academia, no Brasil. O imigrante é menos mencionado, mas é o segundo elemento, quase o antagonista deste construto. A ideia de imigrante de Prensky (2001) é a daquele que não pode aprender; aquele que, mesmo que deseje, não poderá alcançar níveis altos de performance, simplesmente porque está fora da faixa etária. Em meu entender, além de homogeneizar professores e alunos, conforme suas gerações, o autor os separa em territórios opostos, sem diálogo possível; além de desconsiderar que se possa aprender sobre tecnologias (que não são línguas, de fato) em qualquer idade.

Seria ingênuo não admitir que a exposição precoce a tecnologias, artefatos, ferramentas torne as pessoas familiarizadas com elas, capazes de compreender seus usos e suas utilidades, daí em diante incorporando-as em seus repertórios de soluções e de possibilidades. No entanto, talvez seja excessivo considerar que todas as pessoas jovens têm acesso às tecnologias igualmente e que todas as pessoas não jovens sejam incapazes de alcançar uma performance boa e de aprender com novas tecnologias, por exemplo.

3.4 Dois rótulos e um fosso

O construto de Prensky em 2001 propõe novos rótulos para o que ele separa em dois tipos de pessoas: as que têm contato desde jovens com as tecnologias digitais e as que só têm esse contato tardiamente (à revelia delas, já que não têm culpa de terem nascido cedo demais). As primeiras se tornariam experts nos usos das TDICs, além de se tornarem seres diferentes das segundas pessoas, isso é, aquelas seriam mais ágeis, mais rápidas na aprendizagem, menos lineares, multitarefas, sugerindo-se que estas, mais velhas, são sempre e generalizadamente o contrário.

Entre esses dois tipos de seres, que têm entre si a barreira da idade ou da geração, haveria, segundo o autor, um fosso, uma distância, para ele intransponível, que afeta o ensino, a aprendizagem e a escola, de maneira preocupante. A solução, já que não se pode excluir os mais velhos de suas tarefas de ensinar, seria mudar tudo: o conteúdo da escola, a metodologia de ensino (por exemplo, aderindo aos jogos e à gamificação) e a linguagem em que as coisas são ensinadas. No entanto, não haveria quem o fizesse. Quem sabe se os próprios nativos digitais, um dia, se tornassem professores, como eu mesma me tornei? Será que tudose resolveria? Nossa comunicação, hoje, com nossos estudantes, que chamarei aqui, não sem constrangimento, de “nativos jr.”, é muito melhor do que aquela dos imigrantes conosco? Ou os nativos Jr. trazem, agora, novos desafios intransponíveis? Estaremos sempre mudando os personagens de cada lado do fosso?

3.5 Pensar desde aqui

Assim como suspeito que houvesse e ainda haja mais diversidade nas escolas do que apenas dois perfis antagônicos de pessoas, também suspeito que haja pontes entre os supostos dois lados de algum eventual fosso. Não creio na passividade dos professores, nem na esperteza inata e quase mágica dos estudantes. As mudanças necessárias para que a educação melhore são construídas por todos; sem dúvida, hoje em dia, envolvendo a discussão sobre as tecnologias digitais, que inundaram nossa sociedade, mesmo no Brasil, mas muito minimamente ainda a instituição escolar.

Quase vinte anos depois do número 5 de On the horizon, o debate sobre aplicações das tecnologias digitais continua intenso no Brasil, as desigualdades de acesso se mantêm, alunos se formaram (alguns viraram professores), professores saíram de cena, os telefones celulares se transformaram no recurso número um em popularidade e usos sociais, mas a escola continua sem saber ao certo como incorporar esses meios e essas linguagens, mesmo sendo povoada por antigos nativos digitais e a despeito dos esforços de professores ou projetos isolados.

Quase duas décadas depois do texto de Prensky, não creio que seja por falta de tentativas, de discussão ou pela tomada dos espaços escolares por ex-jovens dando aulas de aritmética. Se os há, já são bem menos. Uma nova geração já ocupou as salas de aula, as diretorias, aquela geração que tem hoje cerca de 40 anos e que namorou em chats, comprou os primeiros iPhone e se lembra de sua primeira conta de e-mail. Uma geração que joga jogos de console até hoje e que passa o tempo nas salas de espera do dentista dos filhos jogando em aplicativos de smartphone. O que aconteceu então? Por que o futuro de Prensky continua no futuro? E no Brasil, que teve contato com as TDICs obviamente depois dos EUA, haverá futuro otimista?

4. Estamos em rede, fazendo descoleções

Seções atrás, questionei quão produtivo é pensar em termos de divisão, cisão, fratura, de incapacidades, de rótulos e de fossos intransponíveis. Na verdade, era mais simples do que isso, mas a questão pode ter se ampliado. Quão produtivo é construir um modelo de antagonismos sem solução, sem diálogo e sem diversidade? Se não for para oferecer soluções comerciais, no dia a dia das escolas e das pessoas, não vejo vantagem.

Pensando desde a América Latina e considerando nossos contextos mais lentos, mais desiguais e mais diversos15, parece-me produtiva e ideia de coleção/descoleção, do antropólogo argentino Néstor García Canclini (2013[1]), cuja obra, originalmente publicada em 1989, mira os países historicamente colonizados, levando em consideração nossa história peculiar, em especial de acesso aos bens culturais. Segundo ele, vivemos uma época (pós-tecnologia eletrônica, pós-cultura de massas, etc.) em que as instituições que antes reuniam e nos ofereciam coleções de bens simbólicos não são mais tão fortes (museus, bibliotecas, etc.). A separação entre folclore e arte culta já não consegue mais fazer tanto sentido, uma vez que as pessoas, portando seus equipamentos e em rede, desamarram as coleções preestabelecidas e compõem as suas próprias, conforme sentidos e linhas muito particulares. Portando seus smartphones, as pessoas descolecionam e recolecionam, muito livremente; sendo importante respeitar suas necessidades, seus desejos, suas possibilidades, num mundo de relações em rede, com menos fronteiras rígidas (e fossos) do que se supunha. Certamente, o currículo está entre essas descoleções, ainda que a escola pense ter controle sobre isso ou que resista um tanto à mudança.

Pensar que estamos juntos, ligados em rede, e que podemos compartilhar interesses ou respeitar o que não compartilhamos pode ser mais útil a uma escola que ainda procura boa direção, em países como o nosso, de alfabetização tardia e tecnologias que nos chegam em cascatas. E onde é possível flagrar algumas de nossas coleções mais caras, mais singulares e também nossas interseções – pontos de contato? Nas telas de nossos smartphones. Dessa perspectiva mais democrática e mais realista – para um país como o Brasil, é Roxane Rojo (2012[3]) que vem propondo modos mais compartilhados e mais respeitosos da relação nas salas de aula, na formação de professores e na discussão sobre o currículo. Em um capítulo intitulado “Pedagogia dos multiletramentos – Diversidade cultural e de linguagens na escola”, fundamentada em Canclini e nas propostas do New London Group (1996[4]), a autora oferece exemplos de práticas escolares viáveis, além de uma discussão que propõe a conciliação e o respeito.

A imagem (Figure 1) a seguir, cedida por uma estudante de Letras de uma instituição pública mineira, mostra uma coleção possível (ou descoleção). L (não vou identificá-la) tem 18 anos, isto é, sequer era nascida quando Prensky escrevia sobre o fosso digital ou quando eu me formava bacharel e licenciada. Segundo a estudante, que cursa o primeiro semestre da faculdade, seu celular é um companheiro constante, ambiente em que ela coleciona aplicativos para estar nas redes sociais (Facebook, Instagram), em comunicação com as pessoas (WhatsApp, e-mail, etc.), tomando notas porque gosta de escrever (Notes), ouvindo música, jogando truco para passar o tempo, além da navegação na internet. Em relação à minha própria descoleção, eu e L não estamos tão distantes.

As interfaces de celular são privadas, dado que os aparelhos são pessoais, geralmente fechados com senhas e mantidos discretamente. É delicado solicitar prints de telas, assim como é delicado pegar, mexer ou tocar no aparelho de outrem. Geralmente, as pessoas ficam constrangidas ao emprestar um celular. Minha descoleção é composta pelos itens de série do telefone (referentes à marca, ao Google, etc., pois o sistema operacional é Android), mas traz minhas marcas, no tempo presente (que mudarão sempre, a depender de meus interesses e de minhas necessidades atuais). Estão ali aplicativos para deslocamento (ônibus, Waze, Uber, 99), assim como redes sociais, sempre em uso; aplicativo para escaneamento, lembretes e e-mail, além da foto de fundo, escolhida por razões afetivas muito particulares.

Figure 1. Tela inicial de celular de L com aplicativos mais usados ou aparentes. Fonte: Printscreens cedidos por L.

Eu e L temos uma diferença de idade de mais de 25 anos. Talvez pudéssemos nos sentir apartadas por falarmos línguas muito diferentes, por ela ser uma nativa jr. e eu, uma nativa digital já obsoleta. Mas não é o que temos sentido em nossa interação frequente em ambiente acadêmico. As pontes que temos construído nos parecem de mão dupla: aprendo com ela e ela, comigo. Intercambiamos nossos saberes, que são tão diferentes quanto nossas descoleções aparentes nos smartphones. Há pontos de interseção, como se pode ver; assim como os há entre minha tela inicial e a de meu pai, que tem a idade de Marc Prensky hoje, mas tem um celular e participa de grupos de WhatsApp.

E o que têm em comum as descoleções minha, de L e de F? Enviamos e-mails, participamos de redes sociais (as mesmas e estamos conectadas), navegamos, usamos transportepor aplicativos, escaneamos documentos. A estudante F, hoje com 26 anos, também iniciando o curso de Letras, tem relação íntima com a música e deseja aprender línguas usando o smartphone. Em que podemos nos conectar? E em que nos distanciamos, afinal?

Figure 2. Telas iniciais de celular da autora e da aluna F, com aplicativos mais usados ou aparentes. Fonte: Printscreen da autora. Fonte: Printscreen cedido por F.

Entre as telas iniciais de muitos estudantes e as de muitos professores, provavelmente encontraremos descoleções tão diversas quanto individuais; e encontraremos também interseções e especificidades. O aparelho celular esperto parece ter sido o elemento ubíquo com que nem todos contavam para estabelecer mais relações do que interrompê-las. É possível, via redes sociais na palma da mão, criar pontes em uma linguagem comum, mesmo à distância de vários anos ou algumas gerações.

5 Quit

O que se propõe, afinal, neste ensaio é, além da releitura crítica de um texto que teve demasiado impacto – e mesmo acrítico – sobre a pesquisaemtecnologiasnaescolano Brasil, teravisãodeumconjunto de possibilidades menos polarizadas, com muita esperança de que nossas instituições escolares, em especial no ensino básico, não admitam ou absorvam a ideia, a nosso ver improdutiva e perniciosa, de serem um campo para um jogo entre times oponentes. Este ensaio não é cego às mudanças evidentes ocorridas em nossas sociedades, de algumas décadas para cá, decorrentes também das tecnologias digitais. Mas, tratamos aqui de discursos: a concepção, no discurso, de algo que não explica e não ajuda; não atinge com justiça a variedade de situações e de convivas que temos em nossos espaços escolares.

Observando ao redor, é possível compartilhar mais do que subjugar; construirereformar, emconjunto, maisdoquedesconstruir tudo e considerar que os que podem trabalhar sejam incompetentes para suas funções. A criação de diálogos e redes parece mais rica e viável do que a segregação porfaixa etáriaou a discriminação do gosto, da preferência, das necessidades de uns e outros. Abandonar a ideia de fosso nos parece fundamental para seguir em direção a um porvir que não sabemos ao certo o que será, mas que podemos planejar com muito mais senso de coletividade, diversidade e respeito, de todos para com todos, em especial aqueles que estão, temporariamente, nos papéis de estudantes e professores.