Entrevista com a Prof. Dra. Maria José Foltran (UFPR/CNPq)

Eloísa PILATI,
Marcus MAIA

Resumo

Nesta entrevista, os Professores Marcus Maia (UFRJ) e Eloisa Pilati (UnB) fazem perguntas para a Professora Maria José Foltran (UFPR) sobre linguística, ensino de gramática e educação linguística.

1. Na Antiguidade, o ensino de gramática não visava somente a ensinar as regras de uma variedade linguística considerada padrão. Como o prescritivismo veio a dominar as atividades de ensino gramatical? E no Brasil?

Em conversa pessoal com José Borges Neto, especialista na história das gramáticas tradicionais, ele me esclareceu que dizer que, na Antiguidade, a gramática visava principalmente os desenvolvimentos das habilidades de raciocínio lógico não contempla exatamente o significado de ensino gramatical em tempos idos. Essa crença é fruto de um equívoco. A gramática na antiguidade greco-latina tinha principalmente o objetivo de aprimorar os estudos literários e, secundariamente, de oferecer aos estudantes exemplos de grego “correto” (hellenismos) ou de latim “correto” (latinitas). Se olharmos a gramática mais antiga que conhecemos – a Téchné Grammatiké, de Dionísio Trácio, publicada por volta do ano 100 a.C. – vamos encontrar a afirmação de que a gramática tem seis “assuntos” (ou tarefas) e que o sexto “assunto” é “a crítica dos poemas, que é a mais bela das partes da arte”. Quanto ao prescritivismo, é só ver o que Diomedes (século IV) considera tarefa fundamental do ensino gramatical latino: para ele, “Latinitas é o cuidado com o falar de forma incorrupta, de acordo com a língua romana”. Mesmo um estoico, como Crates de Malos, que é considerado o introdutor dos estudos gramaticais em Roma e que, como os estoicos em geral, tinha como preocupação central a lógica e a ética, fala na necessidade de diminuir o papel do estudo da analogia (estudos dos paradigmas flexionais) na aquisição do grego “correto” (hellenismos) em favor da sunetheia (‘uso comum’), o que indica que o ensino do grego “correto” era, no fundo, um objetivo importante. E ele não fala em ensinar lógica.

Além disso, nem os gregos, nem os romanos consideravam que suas línguas eram “modelos de organização lógica”. A retórica, por sua vez, era assunto de escolas específicas, na Grécia: as escolas dos sofistas (algo como um “ensino médio”). O prescritivismo no ensino gramatical, em geral, é herança do hellenismos e da latinitas. As primeiras gramáticas não prescritivas foram as gramáticas especulativas medievais, que podiam deixar de lado o normativismo porque existiam paralelamente às artes grammaticae latinas, como a Ars de Donato ou as Instituitiones de Prisciano, que – essas sim – observavam a latinitas.

Lyons (1979) mostra que o período alexandrino (séculos III e II a. C.) foi o momento crucial em que o prescritivismo tomou corpo nos estudos gramaticais. Era uma época de extrema valorização de textos do passado, em especial os de Homero (presume-se que Homero tenha escrito suas obras pelo menos cinco séculos antes do período alexandrino). Os filólogos alexandrinos perceberem que a língua dos textos clássicos diferia em muitos aspectos do grego contemporâneo da Alexandria e passaram a publicar tratados de Gramática para elucidar a leitura dos antigos poetas. A grande admiração pelos poetas da antiguidade promoveu a crença de que a língua que eles usavam era mais pura e correta do que a fala corrente da Alexandria de então. Ora, diante desses fatos, os filólogos alexandrinos poderiam tomar duas posições: (i) o grego mudou no decorrer dos séculos ou (ii) o grego foi corrompido por parte dos iletrados. Se eles tivessem optado pela primeira conclusão, provavelmente poderiam ter dado início ao estudo da mudança linguística, estudos esses que só foram iniciados no século XIX, com os neogramáticos. Mas não, eles ficaram com a segunda opção, o que acarretou o que Lyons (1979, p. 9) chamou de “erro clássico”. Esse erro se desdobrava em duas concepções hoje completamente superadas nas instâncias científicas: a primeira diz respeito ao fato de a gramática tomar como base a língua escrita, considerando a língua falada como dependente; a segunda incorporava a suposição de que a língua dos antigos escritores era mais correta do que a fala coloquial do seu tempo, uma língua mantida pelo uso das pessoas cultas e corrompida pelos iletrados. Podemos perceber que esse pensamento se mantém até hoje no senso comum. Se ele não está explícito nas gramáticas tradicionais, está claro e evidente nos diferentes comentários que encontramos nos meios de comunicação dos dias atuais.

Esse fato ocorrido na Alexandria explica bem o caráter prescritivista subjacente na grande maioria das gramáticas tradicionais. A gramática surge, portanto, como instrumento para a divulgação de uma variedade linguística assumida como modelar. E o desdobramento dessa concepção foi dissociar, cada vez mais, o ensino da gramática de outras habilidades: num primeiro momento, o conhecimento gramatical era preparatório e complementar para o domínio das práticas literárias e retóricas; mais tarde, a gramática deixa de ser vista como complementar, para ser o centro das atividades de ensino (FARACO, 2017).

É importante observar que esse caráter prescritivista não está realmente explícito em muitas gramáticas, ou seja, não aparece na forma “diga/escreva isso, não diga/escreva aquilo”. As boas gramáticas adotam um discurso descritivista que, se não soubermos seus pressupostos, não as diferencia das gramáticas descritivas. Para esclarecer melhor, vamos tomar um exemplo concreto. Rocha Lima (1986), em sua Gramática Normativa de Língua Portuguesa, descreve as regras de concordância verbal da seguinte forma:

“1. Havendo um só núcleo (sujeito simples), com ele concorda o verbo em pessoa e número [...]

2. Havendo mais de um núcleo (sujeito composto), o verbo vai para o plural [...]” (p. 353, grifos do autor)

Observemos, agora, o mesmo fato descrito por Perini (2016), em sua Gramática Descritiva da Língua Portuguesa:

Regra de identificação do sujeito

Condição prévia: O sujeito é um SN [sintagma nominal] cuja pessoa e número sejam compatíveis com a pessoa e número indicados pelo sufixo de pessoa-número do verbo. (p. 97)1

Comparando a gramática tradicional de Rocha Lima com a gramática descritiva de Perini, vemos que não há dissonância significativa: ambas alertam para o fato de que o verbo concorda com o seu sujeito. Em que elas diferem, portanto? Elas diferem fundamentalmente na concepção de língua que adotam. Serafim da Silva Neto escreve o prefácio da gramática de Rocha Lima e alerta para o fato de ser uma gramática inovadora, por incorporar já as ideias da linguística moderna, o que resultou numa obra “longamente amadurecida no espírito e revitalizada com as doutrinas modernas” (p. xvi). Acrescenta, ainda: “Veja-se, por exemplo, como, ao estudar a teoria da frase, não nos oferece uma sintaxe hirta e gelada, mas bem ao contrário, procura interpretar estilisticamente os trechos de bons escritores da língua portuguesa” (p. 16, grifo meu). O caráter inovador da gramática de Rocha Lima é indiscutível, mas não podemos deixar de observar que as análises estão focadas na língua literária. Ressalte-se aqui a expressão “língua” e não “variedade de língua”. O que subjaz a isso é a crença de uma língua homogênea e, mais especificamente, a língua escrita. Na introdução, o autor confirma sua adesão “ao bom uso da língua literária”, contemplando inclusive “os prosadores e poetas de hoje”. No entanto, faz uma restrição aos “exageros postiços” trazidos pela “decantada rebeldia dos Modernistas de 1922”, um empreendimento, segundo ele, fracassado, pois essa rebeldia à tradição gramatical não passou de um boato falso. Completa sua reflexão dizendo: “Pois já agora, há 50 anos da Semana de arte Moderna, se pode ter por certo que, havendo realizado profunda renovação no estilo literário brasileiro, os continuadores do Modernismo não lograram, todavia, no terreno da língua, romper os compromissos com o passado: sua contribuição, neste particular, foi, de fato, muito mofina – e meramente episódica” (p. 18).

Vemos, portanto, que, embora inovadora em muitos aspectos, a gramática de Rocha Lima continua adotando, como modelo, a expressão literária dos “bons escritores”.

Em que a gramática de Perini (2016) é diferente da de Rocha Lima? Podemos perceber essa diferença no posicionamento do autor já no Prefácio: “Muito ao contrário da atitude tradicional, hoje se admite que uma gramática representa apenas um estágio em uma longa caminhada: qualquer afirmação aqui oferecida está sujeita a crítica e eventual reformulação.” (p. 24). Temos aí uma nova atitude diante dos fatos da língua: a descrição gramatical é sempre um recorte passível de reformulação. Na apresentação de sua gramática, Perini faz uma longa explanação em relação a diferentes posturas que devemos ter em relação a uma gramática. Não vou poder relatar todas aqui, mas gostaria de enfatizar algumas delas. O autor esclarece que a gramática que escreve tem como língua objeto o português brasileiro (PB). Isso já provoca um estranhamento em relação às gramáticas tradicionais que não concebiam a língua como um conjunto de variedades. Além disso, o autor avisa que levará em conta o português falado (não escrito) no Brasil. Ora, qualquer linguista já diria que isso não é suficiente para esclarecer o recorte que vai adotar, pois o português brasileiro também é um emaranhado de variedades. Como linguista que é, Perini continua sua delimitação do objeto, mencionando que o português brasileiro falado que será descrito é “uma variedade bastante conservadora – algo como a fala cuidada de pessoas mais escolarizadas” (p. 33). Podemos agora definir com mais clareza a diferença entre uma postura normativista e uma postura descritivista. Ao conceber a língua como uma realidade homogênea e limitá-la ao uso dos bons escritores literários, o gramático exclui qualquer outra manifestação linguística como pertencente à língua que está descrevendo. Esse posicionamento tradicional fortaleceu a dicotomia certo-errado: há formas certas – aquelas sacramentadas pelos modelos que os gramáticos assumiam, e há formas erradas – tudo o que foge a este modelo, um pressuposto que vimos já estar presente nas obras dos gramáticos alexandrinos.

Por sua vez, a gramática descritiva apresenta os fatos da variedade que está descrevendo sem se pronunciar em relação a outras variedades da língua. Além disso, como diz Perini, a descrição apresentada apresenta apenas um estágio e está sujeita a críticas. Os professores precisam ter clareza desses diferentes posicionamentos. Certamente, em sala de aula, surgirão enunciados do tipo Chegou os livros ou Saiu as notas. Precisamos saber como lidar com esses fatos e como explicá-los. Isso requer um conhecimento do professor que vai muito além daquilo que está escrito nas gramáticas.

Por fim, vou falar brevemente sobre a determinação da norma utilizada pelos gramáticos brasileiros. Para compreender melhor esse cenário, remeto o leitor a Faraco (2008), em especial os capítulos 2 e 3. O autor apresenta o cenário em que se deu a institucionalização da norma culta lusitana (e não brasileira) como modelo a ser seguido, o que criou uma profunda “esquizofrenia linguística” no Brasil – “uma cultura do erro que afeta pesadamente o nosso imaginário sobre a língua, as nossas relações sociais e o ensino de português” (p. 107). Esse cenário se configura logo após a independência do Brasil. A elite letrada brasileira estava satisfeita com a independência política, mas não queria deixar de se assemelhar à antiga metrópole, não queria deixar de parecer europeia. O português brasileiro já apresentava mudanças marcantes em relação a Portugal. Mas no embate entre um e outro, venceu o posicionamento mais conservador, aquele que promulgava a conservação da pureza da língua, ou seja, o português lusitano. No entanto, vale notar que a norma apresentada pelas gramáticas portuguesas também não correspondia, e não corresponde ainda hoje, uma realidade linguística verificável: a(s) língua(s) que os portugueses falam não é a que está nas gramáticas. A opção feita por esse modelo mais conservador explica por que, ainda hoje, os professores brasileiros continuam ensinando que não se começa frase com pronome átono, quando todas as evidências, cultas inclusive, apontam em direção contrária.

2. Muitos defendem que o ensino de língua materna deva priorizar textos de diferentes gêneros. Qual a sua opinião sobre os gêneros na escola? Como a gramática pode entrar no ensino?

Na minha opinião, a escola precisa, sim, ensinar a reconhecer as características dos gêneros textuais. É de grande utilidade para o aperfeiçoamento da leitura e dos textos escritos. O problema é entender essas orientações sempre de maneira maniqueísta: vamos ensinar gêneros textuais e não gramática. Precisamos ensinar tudo, tendo como norte as habilidades que precisamos desenvolver nos alunos. Mas faço um alerta: tanto o ensino de gêneros textuais como o ensino de gramática não podem cair na identificação pura e simples de nomenclaturas. As atividades precisam ser reflexivas tanto em relação a gêneros textuais como em relação a questões gramaticais.

Faço um adendo à decisão de tornar o texto como componente central do ensino de português. Tenho acompanhado esse processo e já foi possível perceber que a didatização do texto está levando ao mesmo caminho percorrido pelo ensino da gramática. Há um excessivo acúmulo de exercícios de identificação (características, classificações, valor semântico de conectores, identificação do referente dos pronomes) que se repetem e contribuem pouco, às vezes nada, para o aprimoramento da leitura e da escrita. Já constituem fórmulas mais ou menos marcadas que não exploram o potencial do texto nem a reflexão dos alunos.

Ainda sobre a relação texto-gramática, chamo a atenção para uma orientação que se formou no bojo dessa discussão sobre privilegiar o texto – época que remonta mais ou menos os anos 1960. De imediato, repudiava-se o ensino de gramática. Havia uma clara compreensão que a gramática não era necessária. Assim, a gramática só era admitida se fosse ensinada a partir do texto. Não vou voltar aqui aos argumentos que embasavam essa orientação, alguns bem consistentes. O problema é a maneira como isso acaba acontecendo nas escolas. Sabemos muito bem que o livro didático é um instrumental indispensável para o professor. E, acima de tudo, é o que orienta a prática em sala de aula. Portanto, o livro didático dá o tom. Os autores assimilam rapidamente as orientações dos órgãos institucionais relacionados à educação. Basta observarmos esses materiais para vermos como essa orientação foi colocada em prática. Os textos são sempre seguidos de várias questões de compreensão e de interpretação (em geral, privilegia-se a compreensão). No meio desses exercícios aparecem perguntas sobre uma questão gramatical suscitada pelo texto base. São perguntas rasas, em geral. Cito como exemplo exercícios em que se destacam algumas palavras para que o aluno dê a sua classe gramatical.

Os textos podem, sim, trazer interessantes questões para discutir a gramática da língua e geralmente trazem. Para que isso seja explorado com proveito, é essencial que o professor consiga transitar nas questões gramaticais e nos estudos linguísticos para não deixar o fato interessante passar em branco. Isso requer uma formação muito consistente. Acho que esse é o grande nó da educação. É necessário investir em uma qualificação continuada que dê ao professor as condições de acompanhar e tirar proveito das pesquisas linguísticas.

De qualquer maneira, a reflexão gramatical em sala de aula pode vir por meio de sistematizações mais dirigidas e não vejo nenhum problema que o professor traga sentenças, enunciados, isolados para fundamentar essa sistematização. E principalmente, que consiga selecionar expressões ou sentenças na fala dos seus alunos. Os alunos, por meio da sua fala, de seus textos, trazem o melhor material para que se possa refletir sobre a organização da língua.

3. De que forma, o pensamento desenvolvido sob a ótica da Teoria Gerativa pode contribuir para a formação de professores e para o ensino de línguas? Quais os limites dessa contribuição?

Acho que todas as teorias linguísticas podem contribuir com o ensino, na medida em que elas oferecem descrições mais precisas de fatos da língua. A Teoria Gerativa se enquadra entre elas. Talvez a grande contribuição da gramática gerativa tenha sido levar ao limite a aplicação de um método científico: a partir de dados de fala, elaboramos e checamos hipóteses, propomos regras. Testar uma regra da gramática tradicional dentro de uma metodologia científica, por exemplo, leva facilmente à conclusão de que aquela regra ou cobre apenas uma determinada variedade, quando cobre, ou a hipótese não se sustenta.

Outro exemplo é a representação arbórea para a descrição da sintaxe de uma sentença. Embora esse tipo de representação não tenha sido inventado pela gramática gerativa, a teoria faz um uso alargado dela. A árvore permite perceber visualmente a hierarquia entre constituintes, o que é essencial para se entender o que é uma descrição sintática. Além disso, permite associar de forma inequívoca representações sintáticas diferentes para sentenças que são ambíguas e, desse modo, permite entender a ambiguidade e manuseá-la de forma mais efetiva na escrita de textos. Em relação a esse aspecto, a prática nos mostra que é preciso utilizar termos que não são citados na nomenclatura gramatical brasileira. Nas descrições sintáticas, não podemos prescindir das noções de sintagma, sintagma nominal, sintagma verbal, etc. Nas gramáticas tradicionais, pelo menos até o século XX, os únicos níveis admitidos eram as palavras e as orações, não havia nada intermediário, nenhuma noção que se aproximasse à noção de sintagma. E sabemos hoje que essa noção é essencial para a descrição sintática.

Podemos ainda, dentro deste tópico, citar a noção de gramática internalizada. Não é só a teoria gerativa que assume que todos, letrados e não letrados, falam seguindo regras. A gramática gerativa vai além disso ao afirmar que a aquisição da linguagem se dá graças a um dispositivo genético intrínseco à espécie humana. Para o ensino, considero que assumir que temos uma gramática internalizada é essencial e pode ser demonstrado por uma boa análise linguística. Se esse conhecimento que temos é viabilizado ou não por um dispositivo inato é secundário para o ensino. Mas a noção de gramática internalizada é fundamental. Os estudantes podem ser levados a observar a sua variedade e a variedade de sua comunidade para explicitar as regras que subjazem a ela. Importante dizer que não estou pensando no ensino de variedades linguísticas. A escola deve ter o compromisso de levar o aluno a dominar a norma culta (assumo a noção de norma culta apresentada em FARACO 2008). Mas o trabalho de explicitar regras em uso pode, inclusive, tornar as regras da norma culta mais assimiláveis, já que, por comparação, é possível ver o que converge e o que não converge com a norma de prestígio – e vamos descobrir que há mais convergências do que divergências. Diferentemente da crença incutida pela escola de que ninguém sabe falar a sua língua, essa prática vai em direção contrária: conhecemos muito, mas muito mesmo, a língua que falamos. Além de ser verdadeira, é uma ótica muito mais positiva.

É óbvio que isso não significa ensinar teorias linguísticas na Educação Básica. O que proponho é que o professor reúna as condições necessárias para beber dessa fonte. Mas para isso, os pesquisadores precisarão fazer uma transposição didática das pesquisas realizadas na academia. Essa conversa ainda precisa ser muito aprimorada. Para tanto, além de se pensar na transposição didática desses conhecimentos linguísticos recentes para a sala de aula na Educação Básica, deve-se pensar também na didatização desses conhecimentos nos cursos de formação de professores que vão atuar nesse nível de ensino, pois não é necessário “transformar em linguista todo professor de língua do ensino básico” (LOBATO, 2003/2015).

4. O que se pode entender por gramática atualmente?

Essa pergunta já foi respondida nas anteriores. Em primeiro lugar, devemos entender que temos na nossa mente regras que regem a nossa expressão linguística. Ninguém fala sem gramática. Não há variedade de língua sem gramática. Isso é libertador, pois nos faz olhar para cada língua e para cada variedade de língua como manifestações de um conhecimento complexo que todos os falantes detêm. Essa é a chamada gramática internalizada, ou gramática do falante. Isso não significa dizer que esse conhecimento não possa ser ampliado. Kato (2013) explora essa questão afirmando que a “gramática nuclear”, resultado da aquisição espontânea da criança, pode, após o letramento, incorporar um sistema periférico de regras e isso se assemelha à aprendizagem de uma segunda gramática.

A gramática internalizada serve de base para as gramáticas descritivas, ou seja, por meio de observação e análise, essas gramáticas procuram deslindar, explicitar as regras que estão na mente do falante. Por este motivo, os estudos gramaticais se voltam não apenas para a fala dos falantes cultos, mas para a fala de qualquer usuário da língua. Ter condições de transitar por esses saberes constitui o grande desafio para os professores da Educação Básica e para os pesquisadores em linguística.

5. A variação linguística é um tema que tem sido levado para a formação de professores e para a sala de aula. Como os Gerativistas entendem a variação entre as línguas.

Como já mencionei nas perguntas anteriores, a prática pedagógica tradicional foi colocada em xeque por pesquisadores da linguística em meados do século passado. Uma das propostas que surgem a partir dessas discussões desmistificava que as variedades linguísticas populares fossem fruto da ignorância e da falta de escolaridade. Todas as variedades linguisticamente se equivalem. O que as diferencia é a avaliação social conferida a cada uma. Há formas de prestígio, que integram a chamada norma culta e há formas estigmatizadas. Obviamente essa crença vem no bojo da Sociolinguística, que teve nessa época a sua efervescência. Foi de consenso total que essa discussão deveria ser levada para a sala de aula, com o objetivo de explicar o mito da língua padrão como certa, colocando para fora do balaio todas as variedades não prestigiadas. E isso realmente aconteceu com eficácia questionável. Houve uma falta de compreensão dos propósitos dessa discussão nas salas de aula. Alguns começaram a propagar que os linguistas eram contra o ensino da norma culta. “Agora, tudo vale”. Essa crença foi confirmada por alguns linguistas inclusive que diziam que “o importante é se comunicar”. Esse imbróglio até hoje volta à tona nos meios de comunicação. Haja vista o episódio que houve em 2010, referente a um livro didático distribuído pelo MEC. Este livro, ao tratar de concordância nominal, apresentava a forma não padrão “os livro” para diferenciá-la da forma padrão “os livros”. A conclusão é que se estava ensinando o português errado. Não foram poucas vezes que tivemos de esclarecer quais eram os propósitos de levar essa questão à Educação Básica. Certamente, em épocas de “Escolas sem partido” essa sanha purista, normativista ainda voltará à tona. Portanto, essa é uma batalha que ainda exigirá muitas energias de nossa parte. Embora a pergunta não se volte exatamente para essa questão, achei importante relembrar essa discussão tão necessária para o empreendimento linguístico.

A gramática gerativa também reconhece a variedade linguística, mas está interessada naquilo que há de comum nas diferentes línguas, ou seja, uma Gramática Universal, tendo em vista o pressuposto inatista. Esse pano de fundo permitiu que entendêssemos melhor as línguas humanas. Apesar da variação, as línguas se parecem muito mais do que imaginávamos. Assim, lançando mão do conhecimento que temos de outras línguas, é possível entender melhor certos comportamentos da nossa língua. É comum que, numa determinada classe de aula, encontremos alunos que falam outra língua em casa. Se não houver, o professor pode recorrer, por exemplo, ao inglês, disciplina obrigatória na Educação Básica.

6. Uma disciplina que vem ganhando corpo na Linguística, tanto no Brasil, quanto no mundo, é a Sintaxe Experimental, que coloca em diálogo questões da teoria gramatical com teorias e métodos da Psicolinguística Experimental. Como você vê a utilização de testes psicolinguísticos informados por questões teóricas no desenvolvimento de pesquisas educacionais?

Embora haja ainda muita pesquisa por se fazer, a linguística já conta com uma série de descrições que podem servir de base para o professor da Educação Básica. O que precisamos fazer é construir uma ponte para que esse conhecimento chegue ao professor dos níveis fundamental e médio. A Psicolinguística também trouxe importantes contribuições para a compreensão de certos fatos da língua. Vou utilizar, como exemplo, a pesquisa apresentada em Costa (2011). Essa pesquisa diz respeito às relações relativas (orações subordinada adjetivas, na terminologia da gramática tradicional). Experimentos feitos por alguns pesquisadores demonstram que o processamento de orações relativas de objeto (quando o pronome relativo desempenha a função de objeto direto), como em “Gostava de ser o menino que a mãe penteia__” são mais difíceis de processar do que as relativas de sujeito (quando o pronome relativo desempenha a função de sujeito), como em “Gostava de ser o menino que __ penteia a mãe”. O pronome relativo se relaciona com a posição marcada pelo traço. No primeiro caso, a mãe penteia o menino, no segundo caso, o menino penteia a mãe. Essa interpretação (ou processamento) é fundamental para a compreensão de um texto. Ora, sabendo que a aquisição das relativas de objeto é mais difícil (ou mais tardia, como diz o autor) e que esse processamento é mais difícil também para os adultos que fizeram parte da pesquisa, o professor, compreendendo todo esse cenário, poderá dar um tratamento especial a essas construções.

7. Que conselho daria para jovens que desejam ser futuros professores?

Trabalhei 18 anos no ensino fundamental e médio e 26 anos na universidade. Teria muitos conselhos a dar aos professores porque já senti na pele todas as agruras dessa profissão, mas também carrego muitas experiências para dizer o quanto ela vale a pena. É difícil resumir as convicções adquiridas durante todos esses anos. Elenco abaixo as que considero primordiais.

Nós só conseguimos ensinar o que sabemos. Impossível ensinar o que não sabemos. Com isso quero dizer que a busca e o aprimoramento do conhecimento é primordial para que possamos ser intermediadores desse conhecimento. A formação do professor é contínua – não cessa nunca.

Por conhecer muito bem a rotina de um professor da Educação Básica, sei que aprimorar conhecimentos precisa de tempo disponível, o que raramente esse professor tem. Buscar esse conhecimento através do autodidatismo, é sempre mais custoso. Por isso, sugiro que o professor não tenha medo de voltar à universidade e travar contatos para que possa ter orientações ou até assistir às aulas como ouvinte. Estou certa que há muitos professores universitários que gostariam de ter esse contato. O importante é não desistir nunca.

Por último, gostaria de dizer para que os professores da Educação Básica procurem questionar a visão apocalíptica de que a língua está piorando ou que “os jovens de hoje estão contribuindo para a deterioração da língua”. Ao contrário dessa crença, devem mostrar que as línguas mudam e que as inovações podem redundar em mudanças no futuro. É fácil comprovar isso apresentando as transformações pelas quais a língua já passou. E que antes de qualquer mudança se efetivar, as formas linguísticas alteradas oscilaram entre uma e outra em algum momento, ou seja, variavam num determinado momento, até que uma se sobrepôs à outra. Esse é um bom jeito de mostrar que a variação é um estágio anterior à mudança, movimento natural por que passam as línguas. Assim, em vez de disseminarmos a sensação de que ninguém sabe falar a sua língua, promovemos a ideia de que o falante sabe muito a respeito de sua língua.

Referências

COSTA, J. Desenvolvimento da linguagem e ensino da língua materna. In I. M. DUARTE; O. FIGUEIREDO (eds.). Português, Língua e Ensino. Porto: Universidade do Porto, 2011.

FARACO, C. A. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

FARACO, C. A. Gramática e ensino. Diadorim 19, vol. 2, Rio de Janeiro, 2017. p. 11-26.

KATO, M. A gramática nuclear e a língua-I do brasileiro. In: MARTINS, M. A. (org.). Gramática e Ensino. Natal, Editora da UFRN, 2013.

LOBATO, L. O que o professor da educação básica deve saber de linguística. In: PILATI, E.; NAVES, R.; VICENTE, H.; LIMA-SALLES, H. (Orgs.) Linguística e ensino de línguas, coleção Lucia Lobato, vol. 2. Brasília: Editora UnB. 2015.

LYONS, J. Introdução à Linguística Teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional e Editora da Universidade de São Paulo, 1979.