As tarefas da linguística brasileira: ciência, história e identidade social

Ronaldo de Oliveira BATISTA

Resumo

Neste artigo, analisam-se na perspectiva da Historiografia da Linguística características do que foi percebido como ser linguista no Brasil em meio à pluralidade teórica da linguística do século XX. Em destaque a busca por tarefas da linguística, compreendidas de maneiras específicas a depender da inserção teórica do linguista que definia perspectivas para a atuação em ciência da linguagem. Para a elaboração de uma interpretação historiográfica, argumenta-se que uma das perspectivas privilegiadas a ser adotada em uma reconstrução histórica da ciência da linguagem é aquela que coloca como objeto de observação a retórica dos linguistas em busca de validação de suas práticas científicas.

Introdução

Em homenagem a Cristina Altman1

Na década de 1940, nos Princípios de Linguística Geral (reconhecido até pelo menos os anos 1960 como o melhor manual introdutório publicado na América Latina2), Joaquim Mattoso Camara Jr. (1904- 1970) fez uma afirmação que, em meio a movimentos incipientes de uma docência brasileira em ciência da linguagem, possibilita-nos entrever posicionamentos que podem ser considerados como topoi do discurso dos linguistas do século XX, a constituir uma retórica3 científica elaborada em torno de uma imagem simbólica4 para esses cientistas, isto é, uma identidade5 social: (i) a aproximação da linguística com outros domínios científicos; (ii) a ruptura com saberes sobre a linguagem que não se enquadram na percepção de descontinuidade científica que assumiu a configuração da linguística após o impacto da obra de Ferdinand de Saussure (1857-1913), dos estruturalistas europeus (como Roman Jakobson [1896-1982]) e norte-americanos (como Leonard Bloomfield [1887-1949]):

A linguística descritiva, ou sincrônica, trata de deduzir o estado linguístico cientificamente, isto é, por um método objetivo à maneira de qualquer outra ciência descritiva; cria-se assim um novo conceito de gramática, que está para as formas linguísticas como a geometria para as formas espaciais. Para tal desiderato, a nomenclatura e os antigos conceitos gramaticais têm-se mostrado em grande parte inutilizáveis. Por isso, estabeleceram novas técnicas de análise, coincidentes em muitas de suas linhas mestras, várias escolas linguísticas contemporâneas. (MATTOSO CAMARA Jr., 1989[1941]), p. 42[1])

Neste artigo, procuro relacionar a esses topoi características do que foi percebido como ser linguista no Brasil, em meio à pluralidade teórica que sempre definiu a linguística do século XX.

Em destaque, portanto, a busca por tarefas da linguística, que passavam a ser compreendidas de maneiras específicas a depender da inserção teórica do linguista que definia perspectivas para a atuação em ciência da linguagem.

Linguistas de diferentes áreas passaram a reivindicar status de cientificidade para o campo que escolheram seguir nas atividades de descrição e análise linguística, elaborando, assim, questões identitárias que possibilitaram reconhecimento social a partir da formação de grupos e associações de pesquisadores. Nesse movimento, o anseio pela descontinuidade com outras tradições de tratamento das línguas (como a gramática tradicional e a filologia) se fez acompanhar pela procura de alinhamento com uma produção internacional em linguística, como a validar o conhecimento produzido a partir de corpora brasileiro.

Para elaborar uma interpretação historiográfica desses movimentos de ruptura e filiação internacional, argumento que uma das perspectivas privilegiadas a ser adotada em uma reconstrução histórica da ciência da linguagem é aquela que coloca como objeto de observação os discursos dos linguistas em busca de validação de suas práticas científicas. Esses discursos são tradicionalmente denominados em Historiografia da Linguística como a retórica dos linguistas6.

Há também, no direcionamento do que deveriam ser práticas científicas do linguista (definidas em manifestações discursivas de tom programático), uma ideologia linguística7 (cf. SWIGGERS, 2019[2]), no sentido de que são definidos na retórica dos cientistas da linguagem procedimentos normativos e convicções de cientificidade, de inovação, de elaboração de uma imagem simbólica que busca por uma identidade social em meio a diferentes possibilidades de analisar a linguagem humana e as línguas naturais.

Adotando, portanto, uma análise da retórica dos linguistas, procuro evidenciar como a prática científica é empreendimento humano, nosentidode que ao lado de escolhas teórico-metodológicas (ditas racionais e objetivas) há posicionamentos discursivos que buscam pela legitimação de ideias linguísticas. A interpretação aqui estabelecida, de natureza historiográfica, toma como objeto analítico retóricas de linguistas brasileiros circunscritos em diferentes contextos sociais e intelectuais de elaboração e circulação do conhecimento linguístico.

Um percurso interpretativo que parte de um tempo, de um espaço e de um problema para captar características de uma história da linguística compreendida na seguinte chave de indagação: “de que maneira os cientistas transmitem seus ensinamentos, se comunicam, promovem, criticam, honram, dão ouvidos e patrocinam uns aos outros? Qual é a natureza da comunidade da qual eles fazem parte?” (ZIMAN, 1979, p. 13[3]).

As próximas seções apresentam, além de uma discussão teórica sobre a perspectiva de análise adotada, três retóricas científicas na linguística brasileira das décadas de 1960 e 1970 que permitem alçar a um posto privilegiado de observação o discurso dos linguistas como elemento de elaboração de uma identidade e de uma especificidade teórico-metodológica diante de comunidades de pesquisadores em suas redes de interlocução.

1. Ciência, retórica e ideologia linguística

John Ziman (1925-2005) em sua abordagem da produção e difusão do conhecimento científico, visto como movimento também de natureza social e argumentativa, entendia ciência da seguinte maneira:

O empreendimento científico é corporativo. [...] Todo cientista vê com seus próprios olhos e com os de seus predecessores e colegas. Nunca se trata de um único indivíduo que passa sozinho por todas as etapas da cadeialógico-indutiva, esimdeumgrupodeindivíduos que partilham entre si o trabalho mas fiscalizam permanente e zelosamente as contribuições de cada um. A linguagem científica convencional trai a si própria em frases como esta: “Assim sendo, chegamos à conclusão de que...” A plateia à qual são endereçadas as publicações científicas não é passiva; por meio de aplausos ou vaias, de flores ou tomates, ela controla eficientemente a substância das comunicações que recebe. (ZIMAN, 1979, p. 25[3])

A interpretação de Ziman para a ciência é a de uma atividade coletiva, vinculada a processos de legitimação pelos pares, que em última instância vão garantir pertencimento ou exclusão a comunidades de interlocução científica. Essa busca por validação dos saberes é complexa e se materializa, em meio a fatores sociais (posições institucionais, financiamentos, publicações, formação de pesquisadores), nas manifestações discursivas dos indivíduos e grupos envolvidos na produção e difusão de conhecimento. Desse modo, estão na retórica dos cientistas posicionamentos tomados diante de diretrizes teórico-metodológicas que definem características de comunidades de pesquisadores, que passam a ser consideradas como grupos de especialidade teórica em torno de programas de investigação específicos8.

Ciência, portanto, é empreendimento também retórico, no sentido de que é possível captar uma dinâmica social de produção do conhecimento em termos de sua circulação, recepção, aceitação ou refutação. Nesse sentido é que se pode compreender por que determinadas iniciativas científicas, em recortes temporais e localizações espaciais específicas, não alcançam o resultado esperado e são abandonadas logo em sua proposição. As comunidades científicas, assim, é que determinam a presença ou a ausência de teorias e métodos na história da elaboração de conhecimentos em uma área do saber.

Com isso passa a se considerar, com Ziman (1979[3]), que de fato a ciência não está a depender apenas da cadeia lógico-indutiva de produção de ideias, mas está, sim, a depender do mesmo modo de um conjunto de fatores sociais e institucionais que permitem que essas mesmas ideias sejam difundidas como legítimas em um momento histórico específico.

Essa dimensão social do conhecimento científico pode ser captada exatamente na retórica dos cientistas, uma vez que há uma necessidade de validação de um conhecimento dentro de uma área específica. Essa retórica de apelo persuasivo visa essencialmente a adesão de pares para ideias elaboradas em torno de posicionamentos teóricos e procedimentos metodológicos de pesquisa. Uma dinâmica da prática científica que se faz presente também na ciência da linguagem, quando os linguistas reivindicam (mesmo que não intencionalmente) via retórica, a legitimação social e intelectual de sua produção científica.

Paralelasaessasretóricasdoslinguistas, háideologiaslinguísticas assumidas pelos cientistas da linguagem ao definir perspectivas de seleção e tratamento de seus objetos de análise e ao estabelecer parâmetros que consideram válidos e autênticos para seus domínios de atuação9. Trata-se de ideologias, nesse sentido, porque há uma espécie de imposição ou estipulação (SWIGGERS, 2019[2]) por parte de um indivíduo ou grupo de pesquisadores que definem alcances e limites das tarefas dos linguistas.

Sendo assim, entende-se ciência não como algo desvinculado de seu contexto social, mas como uma prática permeada por tomadas de posições intelectuais e anseios de legitimação de conhecimentos. Essa dinâmica científica (também histórica) pode ser interpretada pelo historiógrafo da linguística quando ele busca as relações entre ciência, retórica dos linguistas e a ideologia dos procedimentos de pesquisa (muitas vezes ignorada como elemento interpretativo da prática científica).

A retórica dos linguistas é a chave de compreensão da elaboração de sua identidade como cientista, que pode ser captada não apenas pelas credenciais que explicitam vinculações institucionais, mas também pela retórica desse cientista ao defender a legitimidade de suas pesquisas e da teoria que escolheu para traçar seu caminho na ciência da linguagem.

Na próxima seção, procuro demonstrar como esse aspecto retórico e ideológico da ciência está presente na história da linguística brasileira.

2. Ser linguista nas décadas de 1960-1970

Para apresentar uma história da linguística brasileira, procedo ao seguinte recorte analítico: interpretar uma retórica de filiação na qual linguistas procuraram definir tarefas para a ciência da linguagem que deveria ser feita no Brasil a partir do diálogo com a produção internacional, assumindo, desse modo, influências que viriam a caracterizar o desenvolvimento da linguística brasileira.

Defino como retórica de filiação o posicionamento discursivo de linguistas que procuraram se associar ao conhecimento produzido internacionalmente em ciência da linguagem, e assim legitimar uma produção difundida nas universidades e centros de pesquisa brasileiros. Nessa busca por associação, esteve em destaque o anseio por se aproximar do que estava sendo produzido em matéria de linguística nos centros europeus e norte-americanos de produção científica e a ruptura com outros modos de compreender fenômenos linguísticos.

O recorte delimitado será utilizado em material de análise10 composto pelos textos: a) o artigo programático de Aryon D. Rodrigues (1925-2014), “Tarefas da linguística no Brasil”, publicado em 1966 em Estudos linguísticos. Revista Brasileira de Linguística Teórica e Aplicada; b) a resenha de Miriam Lemle para o livro de Noam Chomsky Aspects of the Theory of Syntax, publicada nos volumes 15/16 da revista Tempo Brasileiro em 1967; c) a introdução e fragmentos de capítulos do livro de Cidmar Teodoro Pais (1940-2009) Ensaios semiótico-linguísticos, de 197711.

Toda historiografia é produto de uma operação seletiva, em que se definem recortes no que se estabelece como o material de análise e como fatores que demarcam uma periodização (o que incluir e o que excluir na análise do historiógrafo). Nesta narrativa, considerou-se como marco de partida para a análise três movimentos intelectuais e sociais que sucederam uma institucionalização da linguística em 1962 por meio de uma política de ensino que acarretou o surgimento de diferentes iniciativas de produção científica (cf. ALTMAN, 1998[4]).

Com esse marco temporal não se quer assumir que não tenha havido produção científica e docente em linguística pré-1962. No entanto, essas iniciativas anteriores ao decreto nacional que instituiu a obrigatoriedadedoensinodelinguística nasfaculdades deletrasnão tiveram continuidade e impacto em termos de produção e circulação institucionalizada em ciência da linguagem assumida como tal (é desse período a disputa entre filólogos e linguistas pelo campo de estudo das línguas), evidenciada, por exemplo, em produção periódica especializada (ainda que tenha havido publicação em revistas e boletins de filologia) e organização de associações de pesquisadores reconhecidos e legitimados por seus pares como linguistas. Ao lado desses fatores, a implantação de cursos de formação em nível de pós- graduação é outro aspecto que nos permite demarcar o período após 1962 como de institucionalização de fato de uma ciência da linguagem no Brasil (a seguir certos termos da argumentação de Altman na sua história de 1998).

A atuação destacada de Mattoso Camara Jr. – sob influência do estruturalismo norte-americano – em ensino e pesquisa em linguística a partir da década de 1940 não teve em sua época os efeitos sociais que permitissem uma implantação definitiva de uma ciência da linguagem no Brasil, que teria de esperar algo em torno de vinte anos para que de fato se institucionalizasse oficialmente em centros de ensino e pesquisa. Se recuarmos ainda mais no tempo, uma produção de gramática da língua portuguesa foi influenciada pelo pensamento dos naturalistas (como em Júlio Ribeiro) e também pelos neogramáticos (como em Said Ali). De qualquer maneira, se pode apontar que foram iniciativas muito mais individuais do que coletivas em termos de produção e circulação de ideias linguísticas.

O recorte que fizemos para esta análise privilegia três posicionamentos que já pertencem a um momento histórico em que se pode falar de fato de estudos linguísticos institucionalizados, com docência e pesquisa organizada em centros de formação, com publicação regular e reconhecida por pares, com a formação de grupos de especialidade que se reconhecem como praticantes de determinada corrente de pesquisa linguística e, desse modo, marcam sua legitimidade científica.

Mesmo diante desse recorte, outras operações seletivas foram empreendidas para a execução desta narrativa historiográfica. Não se consideraram, por exemplo, movimentos importantes na história da linguística brasileira, na periodização aqui adotada (1960-1970), que possibilitaram a formação de um amplo campo de pesquisa dedicado à variação e à mudança linguística. Nelson Rossi (1927-2014) foi pioneiro em estudos dessa área, além do projeto de um atlas prévio dos falares baianos (movimento considerado por muitos como inaugural de uma geografia linguística brasileira) e da criação de um primeiro laboratório nacional de fonética experimental, dialogou de perto com uma tradição em língua espanhola que estabeleceu o Projeto da Norma Urbana Culta. Esse diálogo internacional foi deixado de lado neste texto, ainda que se reconheça a importância de um intercâmbio que resultou num projeto de pesquisa de sucesso, com um número considerável de publicações e com uma destacada atuaçãonaformaçãodepesquisadores. Tambémemtermosdediálogo internacional, não se destacou a importância de Anthony Naro para a linguística brasileira. Participante de diferentes movimentos que determinaram rumos da institucionalização da pesquisa linguística no Brasil, deve-se a ele um produtivo diálogo com William Labov, permitindo que a sociolinguística também se formasse com destaque como grupo de especialidade na linguística brasileira12.

Nesse sentido, reforço que a seleção dos três materiais de análise aqui observados não implica que foram apenas eles que representaram movimentos de implantação de uma linguística nacional em diálogo com correntes e pesquisadores internacionais. Como toda história é uma versão, outras narrativas darão conta do que aqui não foi privilegiado para a elaboração de uma interpretação de momentos da história da linguística brasileira (não considerada, obviamente, em sua totalidade).

2.1  Rodrigues e um linguista descritivista13

Aryon Dall’Igna Rodrigues foi, ao lado de Mattoso Camara, pioneiro no ensino de linguística no Brasil, tendo um destacado papel a partir dos anos 1960 de líder organizacional (e também intelectual) ao promover cursos, arregimentar alunos e financiamentos para estudos, publicar artigos. Não à toa, ele foi o criador do primeiro departamento de linguística no Brasil e do primeiro curso de pós- graduação na área na Universidade de Brasília em 1963.

Essa articulação social e institucional de Rodrigues foi possível não só pelo seu esforço pessoal e talento ímpar (são dele sem dúvida importantes iniciativas, na continuidade do pioneirismo, entre outros, de Mansur Guérios [1907-1987], para implantação da área de linguística indígena como campo de pesquisa no Brasil), mas também porque naqueles primeiros momentos da linguística brasileira ele já tinha estabelecido um diálogo com centros norte-americanos de pesquisa, destacadamente com professores e pesquisadores do Summer Institute of Linguistics (SIL) que passaram a colaborar, via convênio, com a Universidade de Brasília14.

O convívio e a troca intelectual com esses linguistas do SIL possibilitaram a implantação de pesquisas na linha estruturalista norte-americana, com destaque para as descrições sincrônicas dos níveis fonético, fonológico e morfológico das línguas. Dessa rede de confluências, materializadaemvisitasdepesquisadoresestrangeiros, cursos de pós-graduação, estágios internacionais de pesquisa, uma diretriz teórico-metodológica para a linguística brasileira se destacava: o estruturalismo tal como desenvolvido, entre outros, por Leonard Bloomfield15.

Sob essa influência estrangeira, a ditar procedimentos de pesquisa, Rodrigues publicou em 1966[5], no primeiro periódico brasileiro a se assumir como de linguística (Estudos linguísticos. Revista Brasileira de Linguística Teórica e Aplicada) as “Tarefas da linguística no Brasil”, texto no qual estabelecia programaticamente rumos para a linguística que se fazia nos centros brasileiros de ensino e pesquisa. Formava-se, assim, umaidentidadeparaolinguistabrasileiro, que deveria atender às tarefas programáticas de Rodrigues, manifestadas em uma retórica que continha no seu substrato a marca inegável da associação com os pesquisadores norte-americanos e seus modos de direcionar o estudo sincrônico das línguas, vistas como objetos de uma pesquisa de campo.

Diretriz que parecia corresponder ao número de línguas indígenas ainda não descritas na época e também à quantidade escassa de abordagens científicas da estrutura do português e de outras línguas utilizadas no Brasil, sem descuidar da presença de línguas africanas ou de seus vestígios16. Ao lado dessas tarefas de uma linguística teórica “pura”, nas palavras de Rodrigues à época, estavam também diretrizes para uma linguística aplicada, com destaque para a metodologia do ensino de línguas estrangeiras (concebida estrutural e comparativamente) e os trabalhos de tradução mecânica (a associação na época com o Yázigi, centro de idiomas que financiava pesquisas em linguística e sua divulgação, naturalmente favoreceu a consideração paralela dessas tarefas aplicadas).

A retórica de Rodrigues era programática e conclamava a incipiente comunidade de linguistas, e também os jovens que começavam sua formação em ciência da linguagem, a reconhecer a importância das tarefas a serem executadas. Na elaboração retórica das atividades do linguista o tom discursivo era persuasivo e conclamava os primeiros linguistas brasileiros a se formarem de fato como tal para o que se concebia na retórica de Rodrigues como ideal de cientificidade em linguística:

A finalidade deste artigo é pôr em evidência vários problemas de natureza linguística que devem ser abordados no Brasil, mais cedo ou mais tarde, individual ou coletivamente, com intenções teóricas ou práticas. (RODRIGUES, 1966, p. 4[5])

O texto colocava em evidência um papel social para a ciência da linguagem, que deveria intervir com seu conjunto de conhecimentos em “problemas de natureza linguística” relevantes para o Brasil da época. A convicção dessa intervenção científica na sociedade estava presente, no discurso, no modalizador deôntico, que inseria a ideia de tarefas necessárias que a linguística deveria executar em meio ao destaque que assumia no interior das ciências humanas, já que o “objetivo é descobrir a natureza das línguas, o modo e o porquê de sua variação [...], suas relações entre si e com os outros fatos da cultura humana” (RODRIGUES, 1966, p. 15[5]).

Na retórica do linguista de 1966 há uma posição argumentativa em torno de relações de implicação: há fatos da realidade que precisam ser considerados cientificamente; esses fatos podem ser compreendidos pela ciência da linguagem, apta a tratá-los de modo coeso e coerente. Ou seja, à linguística não poderia escapar sua função social. Na mesma medida, esse posicionamento se ancora em um argumento de qualidade atribuído ao estudo científico da linguagem, pois ela seria mais do que adequada para responder a demandas de natureza também política, dado o papel antropológico e cultural pelo qual as línguas eram vistas na perspectiva de Rodrigues.

A linguística da década de 1960 que responderia ao chamado das tarefas de Rodrigues era uma linguística sincrônica e descritivista, que deveria preceder a tarefas de uma linguística diacrônica (pois esta “não é, portanto, a mais urgente e vai ser realizada naturalmente assim que a primeira [a sincrônica] for posta em execução” [RODRIGUES, 1966, p. 5[5]]) e privilegiar seu status de linguística pura, definida com o recurso da analogia com as ciências exatas (a realçar um dos topos elencados no início deste artigo), já que na compreensão de Rodrigues a linguística pura estaria para a física pura como a linguística aplicada estaria para a física aplicada. Nesse jogo de contrastes, privilegiava-se a linguística pura como a adequada para responder aos problemas colocados por Rodrigues:

[C]onvém lembrar que as tarefas de linguística aplicada são as que têm importância social maior, têm aplicação prática e contribuem para resolver problemas, muitos deles vitais para quem vive na sociedade. Entretanto, condição sine qua non para sua efetivação é a realização das tarefas de linguística pura (RODRIGUES, 1966, p. 15[5])

A retórica de Rodrigues (1966, p. 4[5]) privilegiava as tarefas de descrição linguística “para descobrir como são as línguas, qual a natureza de cada idioma em particular, quais as características gerais das línguas e do fenômeno linguagem”. Uma linguística pura que tinhacomo metaprincipal a investigação das línguas indígenas. Nesse aspecto, Rodrigues respondia retoricamente à busca de legitimação da sua área principal de atuação:

Das tarefas da linguística pura [...] devemos pôr em primeiro lugar a investigação das línguas indígenas. [...] O estudodessas línguas é evidentementede grande importância para o incremento dos conhecimentos linguísticos. Cada nova língua que se investiga traz novas contribuições à linguística; cada nova língua é uma outra manifestação de como se pode realizar a linguagem humana. (RODRIGUES, 1966, p. 4[5])

O estilo paralelístico reforçava a visão de Rodrigues para a importância de se estudar línguas indígenas, que na elaboração de imagem do fazer linguística ocupava o principal posto do que deveria ser o objeto observacional de uma ciência da linguagem em seus primeiros momentos no Brasil. Uma linguística nacional que, ao privilegiar sua cultura e suas línguas, poderia contribuir para uma linguística geral pela especificidade de seus corpora.

Rodrigues se valia de estratégias argumentativas de apelo popular, no sentido de que conclamava a adesão dos linguistas de sua época para o que concebia como tarefa primordial: “A investigação dessas línguas é uma das tarefas primeiras para quem se quer dedicar à linguística desinteressada no Brasil” (RODRIGUES, 1966, p. 5[5]).

Tarefas de descrição linguística que deveriam ser realizadas em perspectiva sincrônica e descritivista (essencialmente sob influência do estruturalismo como definido pelos norte-americanos nas décadas de 1950 e 1960). Mesmo que Rodrigues não apontasse especificamente essa influência em seu texto, era essa a perspectiva de atuação e formação que estava no horizonte prospectivo do linguista da década de 1960.17 Pode-se apontar, inclusive, como essa linguística estruturalista esteve presente no curso de pós-graduação em que Rodrigues passou a atuar no final da década de 1960 no Museu Nacional do Rio de Janeiro. Com uma relação estreita entre linguística e antropologia, como aponta Altman (1998[4]), entre as disciplinas específicas estavam, além das disciplinas que recobriam os níveis estruturais de descrição linguística, Trabalho de Campo, Sociolinguística e Língua Indígena. Nessa configuração institucional, estavam, por assim dizer, ecos do chamado aos linguistas feito por Rodrigues em suas tarefas de 1966.

Ser linguista, nessas tarefas, era ser um linguista descritivista, próximo à pesquisa de campo e atento à heterogeneidade linguística do território brasileiro. Uma identidade forjada na base do diálogo com pesquisadores norte-americanos, com os quais o contato era intenso naquele momento de formação de uma linguística brasileira, que começava seu desenvolvimento histórico vinculada à influência estruturalista: “o termo linguística, portanto, surgiu no contexto acadêmico brasileiro ligado ao termo estruturalismo” (ALTMAN, 1998, p. 120[4]). Ser linguista, assim, era ser estruturalista. Era essa a identidade do cientista da linguagem brasileiro nas tarefas de Rodrigues em 1966.

2.2 Lemle e um linguista teórico

Esse linguista estruturalista de 1966 logo teria sua imagem desconstruída, mesmo antes de poder ter cumprido todas as tarefas como pretendia a retórica de Aryon Rodrigues. O estruturalismo acabou tendo vida curta no Brasil18 diante dos novos referenciais teóricos que começaram a se fazer presentes na linguística dos anos 1970 diante da diversidade das propostas dos programas de pós- graduação que de fato institucionalizavam a linguística depois das iniciativas pioneiras e descontínuas das décadas anteriores.

Como imagem refletida da história que se havia estabelecido nas combativas reações de Noam Chomsky contra os estruturalistas norte-americanos, uma nova identidade para o linguista brasileiro começou a ser elaborada em 1967 (apenas um ano depois das tarefas de Rodrigues), quando Miriam Lemle apresentou à comunidade brasileira a Gramática Gerativa chomskiana.

Miriam Lemle se graduou em Letras na década de 1950 na Universidade Federaldo Riode Janeiro, comumapassagem(seguindo a diretriz comum nos anos 1960 de enviar jovens pesquisadores para os EUA ou Europa) pela Universidade da Pensilvânia (EUA), de onde voltou Mestre em Linguística (na área de fonologia), com financiamento da Ford Foundation. Em sua trajetória na linguística está a participação na primeira geração do programa de pós- graduação do Museu Nacional do Rio de Janeiro, onde conviveria com o estruturalista Aryon Rodrigues.

O contato de Lemle com o pensamento de Chomsky ocorreu primeiramente pelas leituras que realizou em inglês das obras do linguista, como nos possibilita entrever os depoimentos dela:

Quando uma pessoa medianamente inteligente e intelectualmente sincera lê um trabalho iluminador, sente o desejo de compartilhar a experiência pensante com colegas. Para mim, ler Syntactic Structures foi uma experiência pensante sensacional, um momento desses muito raros na vida. Foi em 1962 que esse livrinho chegou às minhas mãos, lá no Museu Nacional. Recursividade e transformações sintáticas já estavam lá. Certamente o fino livrinho azul da Mouton chegou às mãos de outras pessoas no Brasil. Algumas entenderam que estava ali uma nova visada sobre língua. Outras não entenderam. As que entenderam e amaram foram o marco introdutório, sem nome e sem oficializações ainda. Houve também as que entenderam e não amaram, porque entenderam que aquilo mexia com os alicerces do ensino escolar de línguas. Depois veio Aspects of the Theory of Syntax, o segundo passo no empreendimento de focalizar o cerne da capacidade humana de linguagem: a natureza gerativa da sintaxe. (BATISTA, 2007, p. 94[6])

Recordo que Eduardo Portela me convidou para escrever um artigo sobre Noam Chomsky na revista Tempo Brasileiro. Eu tinha lido Aspects of the Theory of Syntax e fiz um modesto resumo do livro. (BATISTA, 2007, p. 96[6])

A década de 1960 viveu o que, não sem polêmica, identifica-se em muitas versões de uma história da linguística como a revolução chomskiana em ciência da linguagem, quando esta teria entrado num estágio dito mais científico a partir da associação entre linguagem, mente, biologia, tendo como contraparte linguística o componente sintático privilegiado para análise.

Essa movimentação intelectual na linguística ecoou na linguís- tica brasileira com a resenha de Lemle para Aspects of the Theory of Syntax (1965). Assumindo espaço científico (e discursivo) de quem fala como parte de uma comunidade que partilha das ideias chomskianas, Lemle publicou seu texto em 1967 na revista Tempo Brasileiro, espaço de discussão intelectual e científica privilegiado naquele momento.

A resenha é marco da recepção brasileira à Gramática Gerativa19 (BATISTA, 2010, 2015[7,8]) e nela podem ser encontrados elementos que permitem apontar que a retórica de Lemle buscou não só estabelecer diálogo com o que se fazia então de “mais moderno” em ciência da linguagem, como também delimitar a presença de linguistas brasileiros interessados no programa chomskiano.

Entrava em cena outra identidade para o linguista brasileiro: o cientista teórico, representação ideal dos critérios de cientificidade assumidos como tais na contraposição ao linguista descritivista.

O tom de novidade da retórica de Lemle na resenha impunha ruptura radical com uma linguística pré-Chomsky:

A linguística da primeira metade deste século vem sendo vista como um inter-regno em que certos valores positivos foram cultivados, tais como a consciência da necessidade de precisão formal e acuidade observacional, mas que sofrem de uma certa estreiteza de vistas no que concerne a suas posições epistemológicas. (LEMLE, 1967, p. 55[9])

Uma ruptura que significava negar a imagem de um cientista de campo, em atividades apenas descritivas e de coleta, como válida para a pesquisa em linguística. A seleção lexical e a formação de uma isotopia em torno da noção de novidade imprimiam a resenha de uma retórica de descontinuidade com o pensamento estruturalista presente na linguística brasileira da época.

Está se formando, ao redor de Chomsky, uma corrente revolucionária na linguística: é da chamada gramática gerativa-transformacional. Novas questões, novas posições teóricas, novos rumos de investigação, novas formas de descrição vêm sendo propostas. (LEMLE, 1967, p. 55[9])

Em um curtíssimo espaço de tempo, entre 1966 e 1967, o ideal de linguista passava a ser o do linguista teórico, preocupado com explicações sobre a linguagem humana como capacidade cognitiva da espécie e não com a descrição linguística como um fim em si mesma.

O léxico e as construções sintático-semânticas da retórica de Lemle contribuem para a estratégia argumentativa adotada que visava atribuir uma qualidade científica ao programa gerativista, ao mesmo tempo em que desqualificava o que fosse descontínuo à proposta gerativista.

Visa-se a uma gramática da competência linguística do falante nativo, e não apenas a uma análise da forma externa de um corpus de dados por extenso que seja [...]. A gramática da competência procura ver mais fundo, e descreve os elementos e mecanismos da língua subjacentes, em abstrato, à atividade da fala. (LEMLE, 1967, p. 57[9])

Assim chega-se a mais uma notável diferença de conceitos entre a lingüística da primeira metade do século e esta. Aquela, concebendo uma língua como um corpus de dados, considerava-a como um sistema em si, independente de todas as outras. [...] Pela teoria de Chomsky, ao contrário, [...] sendo uma língua vista como uma das formas possíveis de manifestação da propriedade humana de linguagem, é natural que todas as descrições partam de um mesmo molde e façam uso de um cabedal comum de termos e tipos de regras, pois eles são entendidos como denotações de caracteres que são gerais. (LEMLE, 1967, p. 59[9])

A retórica de Lemle procurava se aproximar de outros linguistas interessados na ciência de Chomsky, dando passos iniciais de um processo de formação de um grupo de especialidade que efetivamente se formaria e se tornaria um dos mais influentes na linguística brasileira das três próximas décadas após o texto de 1967.

Se na retórica de Rodrigues o ideal do linguista descritivista se pautava em essência na sua função social, o linguista teórico de Lemle era delineado retoricamente (a partir das tarefas a que deveria estar atento diante da teoria chomskiana) em uma imagem de cientista de reflexão teórica (hipotético-dedutiva), distante, portanto, do linguista de campo.

Ao lado do uso do argumento de autoridade que representava na época a figura de Chomsky, uma das principais estratégias argumentativas adotadas foi o jogo de comparação discursiva entre descrição e explicação que possibilitou que no embate a adequação explicativa vencesse as tarefas descritivas20.

Um chamado que ecoou positivamente entre jovens linguistas que viram como promissora uma linguística associada com os norte-americanos (mais uma vez) e com uma ciência vista como de ponta, próxima do formalismo das ciências exatas e da amplitude de escopo da busca por explicações da natureza cognitiva e biológica da linguagem humana.

Uma nova identidade social colocava-se, no final da década de 1960, para o linguista brasileiro. Os estruturalistas não foram capazes de formar um corpo sólido de pesquisadores institucionalizados que pudesse fazer frente às “novas” propostas que chegavam para um “novo” linguista e uma “nova” linguística, como tanto insistia o léxico da retórica de Lemle.

2.3 Pais e um linguista doublé de semioticista21

A década de 1970 testemunhou uma presença crescente, em meio a outras vertentes de pesquisa, do programa de investigação da gramática gerativa na linguística brasileira, que começava a se especializar como campo de ensino e pesquisa. Na interpretação de Altman (1998[4]), nesse contexto, outra descontinuidade se faria presente na ciência da linguagem feita no Brasil, relacionada, dessa vez, à presença de uma dimensão de influência vinda não mais dos Estados Unidos. Dessa vez, a França e suas teorias linguísticas em diálogo com a semiologia e a semiótica discursiva estariam na linha de frente de outra comunidade de pesquisadores que levaria adiante no Brasil uma linguística do léxico, da semântica e do discurso, contribuindo para que não só a linguística, mas também a semiótica passassem por outro estágio de institucionalização no Brasil22, agora tendo como eixo irradiador São Paulo.

Na Universidade de São Paulo, as primeiras ideias linguísticas foram divulgadas por Robert Henri Aubreton (1909-2006) e Theodoro Henrique Maurer (1906-1979), que, nas aulas de grego e de filologia românica, formaram uma reflexão linguística de base estruturalista em alguns de seus alunos que saíram do Brasil para estudos pós-graduados23. Assim é que se formou um grupo de pesquisadores, com base teórica vinda da França, que punha em jogo as ideias de um estruturalismo baseado em Louis Hjelmslev (1899- 1965), André Martinet (1908-1999), Bernard Pottier, Roland Barthes (1915-1980) e Algirdas Julien Greimas (1917-1992), abrindo espaço para o surgimento de uma morfofonologia e uma semiótica francesa, originária das ideias estruturalistas de Saussure e seus seguidores.

Mais uma vez, em um espaço de uma década, estaria alterada a identidade social desse linguista brasileiro. Agora, nos anos 1970, que já sentia o impacto do pluralismo teórico característico da ciência da linguagem do século XX, uma nova imagem se apresentava para o pesquisador das línguas e da linguagem. Em destaque, o linguista atento aos processos de significação, relacionados com a cultura e as manifestações discursivas. Dissociado, portanto, tanto do linguista de campo estruturalista, quanto do linguista teórico gerativista.

O porta-voz desse linguista-semioticista seria Cidmar Teodoro Pais, graduado na Universidade de São Paulo (na qual desde a década de 1950 se praticava uma linguística de caráter mais cultural, próxima dos estudos da significação, ainda que muitas vezes não assumida como tal) e doutorna França. Pais, nainterpretaçãohistoriográfica de Altman (1998[4]), reuniu na década de 1960 as características essenciais de um líder organizacional que rapidamente elaborou e efetivou recursos e diretrizes para a implantação de um departamento e um programa de estudos linguísticos. Consequentemente, a linguística que caracterizaria a produção da universidade estadual paulista nessa época seria a linguística e a semiótica de Pais.

Novas tarefas, assim, para o linguista brasileiro que podem ser entrevistas em fragmentos do livro publicado por Pais em 1977 e que reunia textos que divulgavam sua pesquisa em linguística e semiótica, concentrada em eixo teórico de influência francesa.

A apresentação da coletânea de textos – Ensaios semiótico- linguísticos – já delimitava o eixo de influência francês, em torno de tarefas de uma linguística (não explicitamente indicadas como tais, mas entrevistas na retórica pela delimitação teórico-metodológica) que não é teórica em perspectiva biológica e cognitiva nem é descritivo-gramatical.

O que se destaca no programa de investigação de Pais são tarefas de uma linguística relacionada com o estudo da significação e dos processos referentes a essa dinâmica. Os referenciais teóricos em destaque passam a ser os de Pottier e Greimas, nomes que estão na fundação de uma semiótica discursiva que se institucionalizaria após a repercussão dos trabalhos greimasianos. Esse eixo teórico também estava presente em disciplinas que formatavam o programa de pós- graduação em linguística da Universidade de São Paulo, idealizado por Pais.

A retórica do linguista (agora associado à semiótica como eixo complementar a essa linguística da significação) destacava o rigor científico da escolha teórica. Reafirmando o topos que associa a linguística a outros domínios científicos, ressaltava-se o rigor metalinguístico e a adoção de quadros formais lógico-matemáticos para a análise linguística.

No discurso de Pais, um posicionamento enunciativo no plano da subjetividade (presente no uso da 1° pessoa gramatical) inseria esse linguista em um espaço institucional delimitado, em uma comunidade de pesquisadores que se institucionalizava não só em publicações e diretrizes de ensino, mas também na Revista Brasileira de Linguística e na Sociedade Brasileira de Professores de Linguística (espaços de interlocução científica criados e dirigidos por Pais).

Já a retórica da filiação funcionava como estratégia argumen- tativa em torno do argumento de autoridade que representavam na época nomes como Pottier e Greimas (este um dos principais novos intelectuais da linguística na época).

Ainda pode-se observar nos fragmentos abaixo a organização textual em torno de enumerações (recurso argumentativo que se fundamenta no argumento da quantidade, a ressaltar os ganhos de uma perspectiva científica) que enfatizam o alcance teórico dos modelos propostos no sentido de que diferentes tarefas se organizariam para uma linguística atenta à significação e ao nível sintático-semântico da língua. Há nesse posicionamento uma descontinuidade com a linguística anteriormente produzida no Brasil, pois seria nesse momento de Pais que de fato a semântica começaria a entrar em destaque, abrindo espaço para a semiótica e para os estudos discursivos. Um espaço científico que começava a colocar em oposição uma linguística dita “dura” (fonética, fonologia, morfologia, sintaxe) e uma linguística mais dinâmica representada pelo léxico, pela semântica, pelo texto e discurso.

Reúno neste livro, em forma de ensaios, alguns modelos teóricos que desenvolvemos e propusemos à discussão, durante os cursos por nós ministrados, nos anos de 1971 e 1972, na área de Pós-Graduação em Linguística, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Tomam como ponto de partida certas proposições de L. Hjelmslev, contidas em seus Prolégomènes à une théorie du langage, e inspiram-se, como se perceberá facilmente, nas teorias de B. Pottier e A.J. Greimas. Sua perspectiva é, pois, semântico-sintáxica e semiótica. [...] Na elaboração daqueles modelos, tratam-se aspectos vários da problemática semiótica e linguística, ligados à dinâmica dos sistemas de significação, às relações entre universos semióticos, à estruturação semiológica e semêmica, à atualização das unidades léxicas em discurso, à combinatória semêmica no enunciado e às relações entre codificação semântica, a comunicação linguística, o tratamento e a transmissão da informação e o seu rendimento. (PAIS, 1977, p. 7[10])

O argumento da qualidade também foi utilizado por Pais, quando este ressaltou os estudos da significação como um dos “mais atraentes” na década de 1970, conferindo a sua retórica o tom da ruptura e da novidade, que também havia sido empregado por Lemle em torno da gramática gerativa. Repetindo estratégia retórica presente tanto em Rodrigues quanto em Lemle, as promessas de alcance das aplicações dos resultados científicos da linguística estavam presentes. Uma retórica que conclamava a adesão de pesquisadores diante do futuro que esses tinham pela frente a julgar pelas palavras de Pais.

O estudo da estruturação dos sistemas semióticos e das relações que se estabelecem entre diferentes universos de significação e diversos níveis de codificação, constitui, a nosso ver, um dos aspectos mais atraentes das pesquisas que se desenvolvem atualmente no campo da linguística e da semiótica. A investigação teórica, a um tempo árida e excitante, abre perspectivas que darão, nos próximos anos, uma dimensão inteiramente nova ao exame dos problemas linguísticos, permitindo propor-lhes, dentro de uma linha científica, soluções de maior extensão e profundidade. (PAIS, 1977, p. 21[10])

Pais e sua retórica obtiveram sucesso por um bom tempo na linguística brasileira, em especial aquela praticada na Universidade de São Paulo24. A fundação do departamento de linguística dessa universidade rendeu frutos positivos, pois uma nova geração de linguistas se formou sob a supervisão de Pais, que permaneceu influente na universidade paulista até pelo menos meados da década de 1990.

Conclusão

Selecionei três momentos históricos que possibilitam observar como linguistas buscaram a filiação com a produção internacional em um movimento, nem sempre explicitamente manifestado, de elaboração discursiva de identidades que acabaram por resultar em retóricas que procuraram validar a imagem simbólica desses linguistas em meio a filiações teóricas e elaboração de tarefas para a ciência da linguagem.

Essas retóricas – estruturalista (de Rodrigues), gerativista (de Lemle), semanticista/semioticista (de Pais) – não devem ser entendidas em termos revolucionários opositivos como na proposta de Kuhn[11] formulada em 1962. A ciência da linguagem não se desenvolve em termos de rupturas radicais entre paradigmas. Estruturalistas, gerativistas, semanticistas, analistas do discurso, semioticistas convivem na dinâmica da produção científica em linguística. Ao colocar em contraponto as tarefas elencadas pelos três linguistas, meu objetivo era o de evidenciar diferentes identidades sociais para o cientista da linguagem diante das perguntas a que deveria responder para a compreensão da linguagem humana; e não indicar que um movimento teórico-metodológico substituiu radicalmente outro.

Observar a retórica dos três linguistas nos possibilita compreender como a prática científica é localizada socialmente, em tempos históricos delimitados que circunscrevem programas de investigação em comunidades que asseguram, ou não, a validação de propostas científicas.

Na história da linguística brasileira, podemos ver como parte da retórica programática de Rodrigues ficou no plano textual de seu artigo, pois até hoje, por exemplo, a linguística indígena clama por reconhecimento e verbas para pesquisa (além de espaço institucional na formação de novos linguistas). Já as retóricas de Lemle e Pais renderam muitos frutos, definindo, como aponta Altman (1998[4]), dois eixos de influência que viriam a caracterizar por décadas a produção brasileira em linguística: uma rede de interlocução norte-americana (com a gramática gerativa) e uma francesa (com os estudos do discurso e da semiótica).

Presentes nessas escolhas de diálogo internacional, havia ideologias linguísticas ditando o que deveria nortear a linguística brasileira. E de fato a formação de novas gerações de linguistas nas décadas de 1960 e 1970 se veria guiada por um entrelaçamento de influências (e condições institucionais favoráveis) que não raras vezes colocou em oposição linguistas, universidades e direcionamentos financeiros para pesquisa.

A identidade social desse linguista também foi elaborada discursivamente por uma retórica de filiação que em sua essência assegurava um lugar para a linguística brasileira no contexto mais amplo da ciência da linguagem, não importando se em trajetória de recepção apenas.

Fazer linguística nesse contexto seria estar em diálogo com teorias internacionais que ditavam rumos da pesquisa. Legitimar, consequentemente, a ciência da linguagem em sua prática de ensino e pesquisa era reconhecer influências, manifestadas de diferentes formas na história da linguística brasileira. Uma configuração diversificada em termos teóricos e institucionais, tornando a linguística brasileira um mapa difícil (e “fragmentado” na visão de Altman [1998[4]]) de se delimitar quando se pensa em programas de investigação e grupos de especialidade, muitas vezes em disputa por supostas hegemonias na formação de pesquisadores e na busca por espaços sociais de atuação.

Essa complexa configuração da linguística brasileira está presente na retórica dos linguistas, que evidenciam embates teóricos e institucionais. Seguindo a expressiva interpretação de Ziman (1979, p. 25[3]), nós linguistas estivemos, e ainda estamos, em busca dos aplausos e das flores em retribuição a nossa prática científica. Mesmo que nessa busca haja o risco de encontrar vaias e tomates.