Reflexos da variação sonora em texto do século XVIII e em textos de alunos do Ensino Fundamental: um estudo comparativo

Marcus Vinícius Pereira das DORES,
Daniela Mara Lima OLIVEIRA-GUIMARÃES

Resumo

Este artigo apresenta uma comparação entre fenômenos de variação ortográfica, especificamente, a oscilação das vogais átonas pretônicas e a monotongação do ditongo decrescente – em um texto manuscrito do século XVIII e em textos atuais, de alunos do Ensino Fundamental I e início do Fundamental II. A análise comparativa dos dados mostra como algumas variações encontradas em um estágio pretérito da língua portuguesa ainda se fazem presentes em textos contemporâneos de sujeitos aprendizes. A partir de tal comparação, discutimos sobre a importância da consideração da noção de norma ortográfica, instabilidade e representação da escrita, para a compreensão de formas variáveis nos dois corpora.

[...] a letra é como um desenho que se fixa na memória de quem escreve: o que está na mente deve ser corretamente exteriorizado pelos movimentos da mão (Márcia Almada, 2012 ).

Introdução

Neste artigo, apresentamos um cotejo de alguns fenômenos linguísticos que envolvem vogais, encontrados em duas fontes: a) um texto manuscrito do século XVIII e b) textos atuais de alunos do Ensino Fundamental I, e parte do II. Nosso principal objetivo é verificar se e de que forma fenômenos do português antigo são encontrados em textos contemporâneos de aprendizes. Ainda, pretende-se refletir sobre a relação existente entre escrita e a consolidação de uma norma ortográfica em dois contextos: i) em um período em que ainda não havia uma unificação de normas de ortografia, a saber Sec XVIII e ii) em um período de aquisição de escrita pela criança e adolescente, quando as normas ainda não estão consolidadas. Ressaltamos que os sujeitos escreventes, nos dois casos, são muitos distintos conforme veremos na metodologia e, consequentemente, a relação que estabelecem com a escrita também é distinta. Contudo, eles possuem um ponto de convergência, que muito nos interessa, a instabilidade ortográfica. Assim, as questões que se colocam são: há semelhança entre a variação na produção ortográfica na fase de aquisição da linguagem escrita e a encontrada em textos antigos? Como se dá essa semelhança? Qual a importância de tais dados para melhor compreensão da ortografia?

A instabilidade ortográfica caracteriza-se pela oscilação de formas distintas para um mesmo segmento, sequência ou até a mesma palavra. Essa instabilidade já foi verificada em textos de aprendizes, como mostra o trabalho de Freitas (2009), e revela a falta de solidez na representação ortográfica para o sujeito que ainda não consolidou a ortografia. Ao observar tal instabilidade também nos textos antigos, pretendemos mostrar que a falta de uma representação fixa da norma ortográfica à época dos manuscritos permite, assim como no período de aquisição, uma variação em torno das formas.

Para cumprir com os nossos objetivos, traçaremos os seguintes percursos: em um primeiro momento, discutiremos alguns aspectos sobre a história da escrita e da ortografia da língua portuguesa; posteriormente apontaremos informações importantes sobre textos que utilizamos para esta pesquisa; e, por fim, apresentaremos e analisaremos alguns fenômenos encontrados - oscilação das vogais átonas pretônicas (alçamento e abaixamento/abertura) e monotongação. Para fins metodológicos, para este artigo, fizemos um recorte entre os fenômenos observados e vamos trabalhar com aqueles que tratam da variação em vogais. Pesquisas futuras poderão abarcar outros fenômenos como aqueles que envolvem consoantes e outros que estão além do nível da palavra, como a hiper e hipossegmentação3.

1 História da escrita e da ortografia de língua portuguesa

Os sistemas fala e escrita são dois tipos de representação da língua, com histórias e percursos distintos. Janson (2015) aponta que, em todo o mundo, existem mais de sete milhões de línguas, mas apenas 10% dessas línguas possuem uma forma de registro escrito, ou seja, não são ágrafas.

Segundo Cagliari (2000, p. 164), “a ideia de escrever partiu da Suméria e se espalhou rapidamente pelo mundo, surgindo muitas variações do sistema de escrita cada qual procurando adaptar os símbolos gráficos e seus usos para melhor representar a própria língua”. Para Fischer (2009, p. 10), “ninguém ‘inventou’ a escrita. Talvez ninguém tenha ‘reinventado’ a escrita também, seja na China ou na América Central, todos os sistemas de escrita parecem descender de protótipos dos sistemas precedentes”. Já para Janson (2015, p. 63) “a escrita foi inventada de forma independente pelo menos três vezes: na Mesopotâmia, na região do Tigre e do Eufrates por volta de 3.000 a.C.; na China, em fase não posterior a 1.500; e na América Central, três ou quatro séculos antes da era cristã”.

Com esses trabalhos é possível perceber que não há um consenso sobre o nascimento da escrita. Acreditamos que o principal fator que não permite a diversos pesquisadores chegarem a uma precisão é a necessidade de se retornar a um período muito passado e que, com o tempo, vai encobrindo e apagando diversos vestígios da história.

Dentro da história da escrita, podemos perceber diferentes tipos de registos. Alguns povos deixaram e ainda deixam a sua língua registrada em um suporte material usando pictogramas, outros usando letras. Sobre as letras, tipo de registro que se aplica aos textos que aqui vamos analisar, Cagliari (op cit.) diz que a criação desses símbolos, atrelados a um alfabeto, possui uma grande importância para a história da escrita. Contudo, o principal obstáculo encontrado por essa criação foi de como grafar da mesma forma palavras de mesmo significado, porém de dialetos diferentes:

[o] objetivo do alfabeto era escrever as palavras pelos sons das consoantes e das vogais e isto, em princípio, era muito fácil: bastava observar os sons enquanto se falava. Porém, o que mais interessava era a representação de palavras. Afinal, são elas que trazem os significados da linguagem, não as vogais e consoantes. As pessoas logo perceberam - em todas as línguas - que as palavras variam de pronúncia de um dialeto para outro. (CAGLIARI, op cit., p. 174)

A solução, segundo o autor ora citado, é simples: basta “congelar as sequências de letras que as palavras têm”. Todavia, esse congelamento é um tanto arbitrário, já que se escolhe uma forma que será aplicada em contextos diversos. Por esse fato, o processo mecânico de escrita muitas vezes carrega uma marca de artificialidade muito grande.

Já no século XVIII, Morais Silva (1813, v.1, p. iv), em seu Diccionario da Lingua Portugueza, atesta que o alfabeto português, assim como tantos outros, é, em parte, redundante e, em parte, “falto de lettras, e talvez tem, e usa caracteres equivocos, exprimindo as mesmas lettras sons differentes; e talvez differentes lettras representão o mesmo som”4.

Assim como a língua muda, as regras que a acompanham também mudam com o passar do tempo. A ortografia da língua portuguesa por exemplo já passou, passa e passará por diversas modificações. Fulgêncio e Perini (2013, p. 271) vão dizer que a ortografia é

o veículo da língua escrita, em todas as suas manifestações, em obras literárias, textos técnicos, livros didáticos, jornais e revistas, cartas pessoais, avisos e outdoors, bulas de remédios, folhetos de instruções, circulares de serviço, mensagens de internet, artigos acadêmicos e redações escolares. É também (e aqui podemos ficar a favor ou contra) usada como instrumento de filtragem social, quando exigimos que o cidadão domine a ortografia para assumir um emprego [...].

Segundo Pita (2001), a historiografia da ortografia de língua portuguesa pode ser dividida em três períodos marcantes, mas que, na prática, se mesclam: período fonético (dos primeiros textos em português até o século XVI); período etimológico ou pseudoetimológico (do século XVI até 1904); e período das reformas ortográficas (de 1904 até os dias atuais).

No período fonético, como o próprio nome já induz interpretar, a ortografia era muito baseada na pronúncia. Já o período etimológico ou pseudoetimológico surgiu com a publicação da Ortografia Nacional, de Gonçalves Viana. Nesse período, o sistema ortográfico era um tanto confuso, pois, além das variações fonéticas, muitas palavras ganharam uma grafia à semelhança das línguas clássicas (grego ou latim), por meio de uma etimologia muitas vezes duvidosa. Já no último período, conhecido como o período das reformas ortográficas ou período simplificado, a ortografia passa a se basear na pronúncia do Brasil e de Portugal, o que gerou dois sistemas ortográficos vigentes: o brasileiro e o português. Atualmente, com o último acordo ortográfico de língua portuguesa, há um processo de unificação da ortografia de todos os países usuários do português.

2 Metodologia

O corpus para este artigo constitui-se de um texto manuscrito do século XVIII e de textos de alunos aprendizes do Ensino Fundamental I e início do Ensino Fundamental II. Buscamos em ambos os corpora fenômenos de escrita semelhantes (com base em Mendes, Dores e Gomes, 2017). Vamos tratar de cada um dos corpora separadamente abaixo.

2.1 Manuscrito Auto de sequestro de bens de Francisco de Paula Meireles

O manuscrito aqui utilizado, Auto de sequestro de bens de Francisco de Paula Meireles - exarado em Mariana-MG, está sob a guarda do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana (AEAM) - faz parte do corpus de pesquisa de Dores (2016)5. Trata-se de um processo de sequestro de bens pelo qual se registra, de forma detalhada, todos os pertences do indivíduo que está sendo acusado de algum crime. Como Francisco de Paula Meireles era candidato ao sacerdócio, todo o seu processo correu no Tribunal Eclesiástico da então diocese de Mariana.

Dentro do Tribunal Eclesiástico, todos os membros eram padres. Inclusive o escrivão do processo que aqui utilizamos. Segundo Pires (2008, p. 50, grifo nosso), “[a]o escrivão cabia uma importante parte do processo. Dele dependia a integridade e veracidade dos autos. Os requisitos básicos para o cargo eram: ser eclesiástico ou secular idôneo e saber ler e escrever”. Essa informação é de grande importância pois aponta para um nível elevado de escolaridade daquele que redigiu o Auto de Sequestro de Bens, já que os padres, naquela época, eram os cidadãos que possuíam um alto grau de letramento. Para Coelho, Ramos e Duchowny (2015), o “grau de letramento e a atividade profissional do escrevente são de fundamental importância para orientar a análise dos dados”. Contudo, devido à ausência de outros documentos para análise não é possível fazer um escalonamento do letramento de Correia, escrivão do processo.

Ainda sobre a escrita daquele período, Rachi (2016, p. 90-91), citando Villalta (2007), vai dizer que, na sociedade colonial, as pessoas aprendiam primeiro a ler e depois a escrever, por isso “os registros escritos produzidos [naquele período] tiveram sua gênese, teoricamente, naqueles indivíduos já leitores”.

2.2 Redações do Laboratório Eletrônico de Oralidade e Escrita

Os textos contemporâneos foram extraídos do corpus de escrita infantil do Projeto e-Labore: Laboratório Eletrônico de Oralidade e Escrita. Esse banco de textos é composto por redação de alunos do 1º ao 7º ano do Ensino Fundamental (6 a 12 anos de idade) das redes pública e privada da cidade de Belo Horizonte. Segundo Cristófaro-Silva (et al., 2008), “[a] faixa etária de 6 a 12 anos foi selecionada, por ela compreender o início da aquisição e do aprendizado da escrita, bem como a fixação e a utilização do código escrito”. Para complementar, citando Martins e Oliveira-Guimarães (2010, p. 444), gostaríamos de esclarecer que “o tema da redação em cada turma foi definido pelos professores, a fim de se garantir um vocabulário mais diversificado para o corpus”.

Para darmos conta de todos os fenômenos extraídos do Auto de Sequestro de bens, selecionamos sete redações do e-Labore, dos 6º e 7º anos. Por motivo de preservação da imagem dos autores dos textos, o e-Labore não fornece o nome de nenhum aluno.

3 Representação ortográfica

Almada (2012, p. 46-48) diz que “escrever corretamente não era propriamente uma questão fixa na língua portuguesa, pois as normas eram indefinidas” e ainda completa que “durante os séculos XVII e XVIII corria uma ‘ortografia pluriforme’, na qual uma série de condicionantes culturais e regionais interferia nas formas de se gravarem as palavras. Um desses condicionantes era a influência da oralidade sobre a palavra escrita”. É justamente por isso que, por meio de textos manuscritos, é possível recuperar minimamente traços de oralidade, embora, Cristófaro-Silva (2002, p. 61) afirme que

[...] na grande maioria das vezes o material disponível a ser trabalhado em uma análise de tempo real é geralmente apenas escrito. Sem a versão em áudio, ou o registro em transcrição fonética acurada, o pesquisador tem pouco controle sobre os dados a serem analisados. [...] Ideal mesmo seria contarmos com dados bem coletados do ponto de vista metodológico e de registro ao longo de um certo período de tempo.

Ainda nessa perspectiva, Viegas (2001, p. 73) reconhece que “não é possível fazermos uma análise dos sons de épocas remotas do português se não nos utilizarmos do estudo da grafia” e que “esse estudo da grafia deve levar em conta os períodos de escrita por que passou o português”. Devido a diferentes variáveis, difíceis de serem fielmente controladas, é impossível fazer qualquer afirmação, de cunho linguístico, de forma categórica.

Sobre o texto dos alunos do Ensino Fundamental é interessante perceber como o processo de aquisição da escrita é marcado por diversas questões. O aluno, com o seu conhecimento e com as regras ortográficas ainda não cristalizadas, faz um percurso de tentativas, acertos e erros. Segundo Melo (2007, p. 197)

[...] as características identitárias, as disposições dos sujeitos, as práticas individuais, as atitudes e as maneiras escolhidas para se relacionar com o mundo, com as pessoas, configuram um conjunto complexo de fatores que podem - ou não - contribuir para um percurso de formação bem-sucedido, inclusive em relação ao processo de inserção e participação nas culturas do escrito.

Ou seja, o sujeito que escreve realiza a sua prática de um determinado lugar e imprime no seu texto marcas desse lugar e de tudo que o cerca. Sobre a variação ortográfica dos textos desses alunos, podemos dizer, fundamentado em Grassi e Miranda (2008, p. 2), que os erros ortográficos são “[...] fonte de dados capaz de revelar aspectos do conhecimento que as crianças possuem sobre sua língua materna, o qual se manifesta quando elas produzem suas primeiras tentativas de escrita”.

4 Apresentação e análise dos dados

A seguir apresentaremos os exemplos retirados do manuscrito e das redações do Projeto e-Labore. Optamos por apresentar neste trabalho apenas exemplos de palavras iguais encontradas nos dois grupos de textos. Contudo, vale destacar que palavras análogas, paralelas, ou até mesmo diferentes vindas de cada um dos textos, contendo o mesmo fenômeno também foram encontradas. Para análise, tomaremos como base a categorização feita por Telles (2016, p. 206-207). Vale ressaltar que a nossa análise tem como ponto de partida a ortografia contemporânea. Seria impossível falar de erro ortográfico em um período em que a regra era “variar”.

4.1 Casos de oscilação gráfica das vogais átonas pretônicas

Em posição pretônica, no português brasileiro, há oscilação na produção das vogais, na língua oral. A alternância se percebe entre as vogais médias altas [e, o] médias baixas [ɛ, ɔ] e altas [i, u], sendo que as anteriores alternam entre si e as posteriores alternam entre si. Assim, as vogais pretônicas são, por sua posição, sujeitas à variação quanto ao traço de altura: Assim, sincronicamente, formas como m[e]nino, m[i]nino e m[ɛ]nino são encontradas em diferentes regiões do Brasil, sendo por isso importante marcador dialetal. Mattos e Silva (2006, p. 60 apudOliveira, 1975, p. 64), em uma análise diacrônica, também observa esse mesmo fenômeno:

Fernão de Oliveira [primeiro gramático de língua portuguesa] testemunha que no século XVI a variação ocorria no dialeto padrão de Lisboa quando afirma que das vogais ‘entre u e o pequenos há tanta vizinhança que quase nos confundimos’ e apresenta como ilustração os casos de assimilação em somir/sumir; dormir/durmir. (Grifos da autora)

Com os olhos ainda voltados para o passado, Naro (1973, p. 10), sobre a oscilação gráfica entre [e o] e [i u], fazendo referência ao Auto das Ciganas, obra de Gil Vicente, vai verificar que o dramaturgo português, ao representar as falas dos ciganos, substitui [e o] por [i u] como em: “fidalgos/fidalgus”, “asno/azun”, “señora/ciñura”. Naro também cita o gramático francês Maître para mostrar que esse fenômeno também estava presente na fala dos portugueses: “Algo de mais tocante é ouvir pronunciarem ‘otrou’, que se escreve ‘outro’; e ‘voultô’, que se escreve ‘voltou’ (ele retornou); ‘Pourtou’ que se escreve ‘Porto’ (um porto marítimo).” (MAÎTRE, 1799, p. 11, apudNARO, 1973, p.10, tradução nossa)6. Abaixo analisaremos um fenômeno que envolve a vogal pretônica: o alçamento.

4.1.1 Alçamento da pretônica

As vogais médias pretônicas podem na língua falada serem alçadas, ou seja, há uma mudança na produção de uma vogal média para a vogal alta, mudando-se, portanto, essencialmente a altura da língua. Assim, pronúncias como p[i]queno e b[u]nito são comumente verificadas, não só na fala (VIEGAS, 2001) com também na escrita (LEMOS, 2001). Com vistas a verificar a ocorrência deste fenômeno em dois contextos distintos de escrita, apresentamos o quadro a seguir, que evidencia itens lexicais alçados nos textos antigos e os mesmos itens no corpus de redação do elabore.

Quadro 1. Oscilação da pretônica em textos do sec XVII e de alunos aprendizes.

Nos exemplos apresentados, é possível perceber a ocorrência de variação na grafia das vogais átonas pretônicas (boneco > buneco; moleque > muleque; pequeno > piqueno). Ou seja, encontramos a variação na vogal pretônica, no mesmo item lexical, tanto nos textos antigos quanto nos textos de alunos em processo de aprendizagem. O registro destas formas nos dois tempos evidencia que i) a variação nas vogais pretônicas é um processo antigo e localizado em itens lexicais específicos (cf VIEGAS, 2001); ii) Como os casos analisados referem-se a corpora escritos, verifica-se que a variação ocorre devido ao fato de se tratar de períodos de não consolidação da norma, com forte influência da pronúncia.

Passemos agora à avaliação de outro fenômeno bastante recorrente no tempo atual: a monotongação.

4.2 Monotongação

A monotongação é um processo fonológico pelo qual os ditongos são reduzidos a uma única vogal. A monotongação no português brasileiro ocorre em ditongos decrescentes, sequências de vogais e semivogais, ou glides (CRISTÓFARO-SILVA, 2011). A monotongacão, assim como o alçamento, tem sido alvo de vários estudos tanto na fala (ARAGÃO, 2014) quanto na escrita (HENRIQUE, DA HORA, 2013; MOLLICA, 2000; BARBOSA, 2016).

O quadro abaixo mostra dados de produção de escrita de crianças e adolescentes e de produção de um escrivão eclesiástico do século XVIII, destacando a variação nos ditongos.

Quadro 2. monotongacão dos ditongos decrescentes em textos do sec XVII e de alunos aprendizes.

O processo de síncope da semivogal de um ditongo, transformando-o em um monotongo também foi encontrado em mais de uma ocorrência como é possível verificar nos exemplos (hotra/otros > houtra/outros; caxa > caixa). Mendes, Dores e Gomes (2017, p. 45), vão dizer que

[a] monotongação dos ditongos ou, de forma sistemática exceto em fala cuidadosa, salvo os casos em que o ditongo é formado por ol como “bolsa” e “golfo”, ei, antes de [ɾ], [ʃ] e [ʒ], e ai antes de [ʃ] é apresentada por Viaro (2011, p. 138). As duas ocorrências de “caxa” no manuscrito sem a marcação do ditongo já evidenciam o fenômeno de monotongação do ai nesse ambiente, assim como as ocorrências de “otro” e de “otra” que também demonstram a monotongação do ou.

Embora a palavra hotra esteja grafada com <h> no excerto analisado do texto do século XVIII, não levamos isso em consideração por não ser foco da nossa análise - já que não encontramos ocorrências no corpus do e-Labore. Fica, portanto, evidente que a variação na escrita dos alunos que encontramos atualmente pode ser também encontrada em textos antigos, nos mesmos itens lexicais, mostrando não só que a variação sonora nos ditongos já estaria ocorrendo naquele momento como também a escrita seria um locus de desta variação.

Em texto de 1957, Mattoso-Camara Jr já noticia algumas variações na escrita de aprendizes perto de entrarem ao ginásio (Ensino Médio) que são vistas atualmente, inclusive a variação aqui tratada, com relação ao ditongo. O autor destaca que essas variações são “sintomas de tendências linguísticas” no dialeto do Rio de Janeiro.

Considerações finais

Os dados analisados, em ambos os corpora, nos permitem pensar sobre a relação que o sujeito escrevente estabelece com a língua escrita, mais especificamente com a ortografia. A ocorrência de formas alçadas e monotongadas, no período em que não havia uma ortografia consolidada enquanto norma, indica que estes casos de variação são antigos e com reflexos na escrita, portanto, possivelmente, presentes na fala. Já a presença dos mesmos fenômenos na escrita de alunos aponta para relação com variação sonora, também ainda presente na fala atual, e para uma instabilidade da representação ortográfica individual, apesar de já haver uma ortografia consolidada, enquanto norma na língua portuguesa. São casos distintos, mas que convergem para um mesmo ponto: a necessidade de reflexão sobre complexa relação entre fala e escrita e, em ambos os casos, para um olhar essencial para a variação sonora, para o item lexical, para a norma e para o tempo.

Tanto na escrita setecentista (observada no manuscrito analisado), como na escrita contemporânea (dos textos dos alunos do ensino médio), há variação ortográfica. Tal constatação é sustentada pelas palavras de Oliveira e Nascimento (1990, p. 38): “numa situação bastante específica, ou seja, na tentativa de se dominar um código escrito, podemos dizer que ele o erro é o melhor indicador do modo pelo qual um aprendiz tenta executar sua tarefa”7.

O processo de escrita é muito mais complexo do que parece. O escrevente, de qualquer período que seja, faz diferentes relações no momento do seu labor. Até se cristalizar uma regra ortográfica para esse sujeito, ele passará por vários processos de testes particulares que revelarão uma vasta variação na escrita. No que tange a essa variação, Alvarenga (1995) vai afirmar, e nós concordamos, que as formas construídas pelos aprendizes, consideradas como erro pela norma, não são senão o resultado de hipóteses de como funciona o sistema ortográfico e relaciona-se também à variação linguística ouvida e percebida pelo falante.

É curioso perceber como os dados nos mostram a ocorrência dos mesmos fenômenos em períodos tão distantes. Talvez indo ao encontro do que pregava Labov (1975, p. 329, tradução nossa): “[...] as forças linguísticas consideradas atualmente são teoricamente as mesmas que funcionavam no passado”8. Devido aos diversos fatores - contexto de produção, tempo de escrita, tipo/gênero textual etc. - que não pudemos controlar, seja por falta de material (sobretudo de períodos pretéritos) ou por outras questões, não podemos afirmar nada de forma categórica neste trabalho.

Outro ponto importante a se destacar é que, como já apontou Dores (2018, p. 127), “[p]ara resgatar a memória de um povo que viveu no passado é preciso se debruçar com afinco sobre os documentos manuscritos da época”. Portanto, o levantamento dessas ocorrências, considerados no plano atual e histórico da língua, poderá auxiliar, em alguma medida, os professores da educação básica e, sobretudo, os pesquisadores da área do Ensino, mais especificamente da Aquisição da escrita e da ortografia, a refletirem a língua como um mecanismo que muda e conserva algumas questões, que é como “uma roda sempre girando” conforme afirma Aitchison (2001, p. 3, tradução nossa)9.