A Língua Portuguesa foi utilizada como instrumento de hierarquização, silenciamento e isolamento de línguas africanas, hoje conhecidas como línguas nacionais angolanas. O presente artigo articula um breve percurso histórico para fins de análise sobre a resistente presença das línguas nacionais em território angolano diante de uma política colonial que visou o apagamento cultural africano por meio do assimilacionismo. Tal feito era legitimado através do Estatuto do Indigenato e tinha como premissa a introdução de costumes europeus, no sentido de ocidentalizar a comunidade angolana. Neste panorama, além de atos de racismo linguístico, são evidenciadas as resistências que possibilitaram a sobrevivência de algumas línguas africanas, bem como as mutáveis relações de poder que fizeram com que a língua portuguesa, instrumento colonial, passasse a ser chamada de Português Angolano.
The Portuguese Language was used as an instrument of tiering, silencing and isolation of African languages, today known as Angolan national languages. This article articulates a brief historic route for purposes of analysis of the resistant presence of national languages in Angolan territory against a colonial policy that aimed at erasing African culture through assimilation. This was legitimized through the Native Statute and had the premise of introduction of European customs to Westernize the Angolan community. In this panorama, besides acts of linguistic racism, the resistences that enabled the survival of some African languages are highlighted, as well as the ever-changing power relationships which made the Portuguese language, colonial instrument, to be called Angolan Portuguese.
O presente artigo pretende discorrer sobre o papel desempenhado pela Língua Portuguesa no período Pré-Independência Nacional, em Angola, no momento em que essa língua foi amplamente usada como instrumento de controle colonial português e de refutação de uma sociedade multilíngue, na tentativa de se homogeneizar o território angolano. Defende-se que tal papel atribuído à língua portuguesa contribuiu para a construção do multilinguismo em Angola como um problema.
Atualmente, o panorama linguístico de Angola se diferencia significativamente de outros países que possuem o português como língua oficial. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística de Angola (INE), realizado em 2014, com exceção do Brasil, Angola é o território onde se verifica o maior índice de crescimento da língua portuguesa, além de apresentar o percentual de 71,15%
O censo não clarifica se aqueles 71% de falantes se referem a falantes da língua portuguesa como língua materna ou como segunda língua. Constata-se, também, que, apesar do processo migratório, as áreas rurais continuam a resistir à política de silenciamento das línguas nacionais com que se deparam, sendo que 49% da população não usa o português. (BERNARDO, 2018, p. 45
Além disso, o INE não disponibiliza como foram formuladas as questões relacionadas às línguas nacionais, a exemplo de especificar o uso do português ou das línguas nacionais como materna ou segunda língua.
A realidade contemporânea do país conta com mais de vinte línguas angolanas de origem africana, em sua maioria de tronco bantu, reiterando, dessa maneira, a citação de Fardon & Furniss (1994
Muitos cidadãos angolanos atribuem a esse ato de reconhecimento e visualização das línguas locais um sinal de ascensão e valorização de uma cultura nacional angolana que foi subjugada e silenciada pelo sistema colonial. Os agentes coloniais portugueses, no período de expansão territorial, incentivaram por meios legais a disseminação da Língua Portuguesa, o que produziu efeitos sobre a maneira como as línguas locais foram valoradas. Defende-se que as línguas africanas em Angola ainda carregam valorações coloniais, conforme declara em entrevista o linguista angolano Bonifácio Tchimboto
A seguir apresenta-se o percurso histórico que levou as línguas nacionais a perderem sua importância diante da língua oficial, a portuguesa, mesmo que muitos angolanos fossem fluentes nessas línguas. Defende-se que esse percurso levou à construção ideológica do multilinguismo como um problema político-linguístico. O artigo se estrutura da seguinte maneira: inicialmente, apresenta-se um breve percurso histórico sobre a invenção colonial das línguas e das línguas como problemas, em seguida, evidencia-se que o problema real vem da imposição monolíngue, carregada pelo projeto de nação e instaurada em Angola através do Estatuto do Indigenato.
O percurso histórico sobre as línguas em Angola exige uma compreensão sobre o contexto colonial. A expansão colonial europeia nos séculos XV e XVI coincidiu com o início de um sistema capitalista moderno de trocas econômicas. As colônias foram imediatamente percebidas como fontes de matérias-primas que sustentariam por muito tempo o poder central da metrópole. Ademais, o sistema de vigilância panóptica pela qual se supervisionava o espaço colonial caracterizoutambémo métododescritivo de viajantes e exploradores europeus do século XIX e XX, cujos olhares ajudaram a representar o mundo colonizado, articulando conhecimento e poder. Entre colonizador e colonizado, portanto, estabeleceu-se um sistema de diferença hierárquica fadada a jamais admitir um equilíbrio no relacionamento econômico, social e cultural.
Os anos finais do século XIX, mais especificamente, delinearam uma imagem aproximada do que se transformou a dominação portuguesa. Esta época foi marcada por uma ampla produção de interpretações verbais e imagéticas relativa às colônias, por agentes administrativos e religiosos da coroa portuguesa. Esse registro ocorreu devido à participação implacável de Portugal em África, que se intensificou a partir da realização da Conferência de Berlim em 1884-1885, a qual tratou do processo imperialista de Partilha da África (MURRAY, 2007
Para consolidar o sistema de exploração econômica, o colonialismo português arquitetou em Angola, sobretudo a partir de 1850, um dualismo sócio-cultural caracterizado pela existência de dois tipos de sociedades desiguais: uma reservada aos colonos que comandavam o aparelho repressivo e explorador dos territórios, e outra destinada aos nativos, desempenhando o papel de fornecedora da mão-de-obra barata. A fim de converter os povos locais, a Igreja Católica designou missionários que se encarregariam, num primeiro momento, de compreender e aprender essas línguas para se comunicarem e também para inscrevê-las em gêneros religiosos, num segundo momento, com intuito de conversão.
Em termos de alianças entre o Reino português e a Igreja, com a finalidade de consolidar o aparato colonial, Portugal estabeleceu uma forte aliança entre a religião católica e o reinado português na forma do Padroado, o qual se tornou eficaz ao estrategicamente sobrepor portugalização e catequização (SEVERO, 2014
Nesse contexto, a Igreja Católica, como instituição religiosa, missionária e de ensino, foi um dos empreendimentos coloniais que produziu maior restrição à liberdade cultural e linguística dos angolanos. Alémdeserresponsávelpelaindexaçãodefronteirasentre línguas angolanas ao centrá-las em comunidades étnicas específicas, também reagiu à proliferação anárquica de santuários, devoções e peregrinações rurais locais ao autorizar uma veneração mariana popular, centralizada em alguns santuários aos quais se dirigiu o fluxo de peregrinos: “Esta centralização dos rituais e devoções, instituída antes que se estabelecesse um cristianismo popular africano que a reclamasse, acarretou uma restrição, não um estímulo à imaginação dos lavradores africanos” (HOBSBAWN, 2015, p. 273
Seguindo um modelo centrado no padroado, as missões religiosas empenharam-se em reproduzir instituições políticas portuguesas. Pelas línguas africanas não possuírem escrita, o modelo de missionarização católico dedicou-se ao processo de invenção de línguas para fins de conversão e dominação ideológica dos povos locais (MAKONI, 1998
O processo do aparecimento da escrita é um processo de objetivação da linguagem, isto é, de representação metalinguística considerável e sem equivalente anterior. Ele precisa do aparecimento de técnicas autônomas e inteiramente artificiais; ele produz o aparecimento de um dos primeiros ofícios da linguagemnahistóriadahumanidade, eprovavelmente (falta-nos informações) o aparecimento das tradições pedagógicas. (AUROUX, 1992, p. 29
Para tanto, utilizavam técnicas de produção de línguas baseadas emummodelo linguístico e discursivo latino, chamado gramatização, que empreendia a produção de gramáticas, dicionários, listas de palavras entre outros instrumentos linguísticos. Proponho que as descrições e mapeamentos linguísticos permitiram, dessa forma, uma espécie de
O Panóptico funciona como uma espécie de laboratório de poder. Graças a seus mecanismos de observação, que neste caso, era exercido pelos missionários, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens: um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça.
Assim, na busca pelo conhecimento sobre o “Outro”, o empreendimento colonial missionário português pautou-se em um extenso trabalho de produção de conhecimentos sobre as línguas locais; tratou-se de uma ampla produção discursiva na forma de “Cristianletos” (SEVERO, 2014, p. 13
(i) Línguas e discursos usados como instrumentos de dominação dos povos ditos locais através da invenção, descrição e nomeação de suas línguas;
(ii) Traduções de uma série de gêneros discursivos europeus para as línguas locais;
(iii) Discursos sobre os sujeitos e localidades locais tomados como exóticos e incivilizados.
De tal modo, o domínio e gerenciamento desses povos foram realizados por meio da indexação das línguas orais transformadas em línguas escritas. O engessamento das línguas, pelo processo de descrição, impossibilitou o dinamismo de seu caráter deslizante de mudança contínua, característica cara à vivacidade inerente de qualquer língua tomada como prática social, pois condiciona-se aos moldes descritivos do modelo greco-latino de línguas, ignorando características e peculiaridades próprias da língua alvo. “Este processo de gramatização corresponde a uma transferência de tecnologia de uma língua para outras línguas, transferência que não é, claro, nunca totalmente independente de uma transferência cultural mais ampla” (AUROUX, 1992, p. 74
Entende-se, porconseguinte, quealínguadescritanessecontexto não pode ser tomada como reflexo de uma realidade linguística específica, mas como uma forma de conhecimentos sobre o Outro, prática epistemológica e política própria do contexto colonial (HARRIES, 1988
Assim, defende-se que esse processo histórico de invenção de línguas angolanas - pelo modo como elas foram discursivizadas – resultou em um processo de redução das línguas orais angolanas aos métodos de letramento
Deste modo, as línguas, flexíveis e dinâmicas em seus processos de variação e mudança, foram reduzidas a códigos de rígidas prescrições para serem adequadas às demandas de gestão panóptica colonial. As línguas inventadas das sociedades africanas – inventadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, como reação – engessaram, por um lado, a flexibilidade das línguas orais e, por outro, tornaram-se em si mesmas realidades através das quais se expressou uma incrível quantidade de conflitos coloniais (HOBSBAWN, 2015
Do mesmo modo, o “problema da língua”, assim como o “problema do tribalismo” em Angola, é marcado pelo excesso, ou seja, “por terem línguas e tribos demais” (MAKONI; MEINHOF, 2006
Assim como as línguas e as tribos foram invenções determinadas por uma lógica estruturante europeia, da mesma forma foram as nações. A esse respeito, Anderson (2008, p. 33
A partir do século XIX, um grande número de colonos e colonialistas
Durante a época colonial, esta variante (português falado em Angola) era errada e ironicamente designada “pretoguês”, “português de preto”, “português moreno” e/ou “dialecto”, o que criou não só condições óptimas para a promoção do português como também, por um lado, a ideia de que as línguas locais eram inferiores ao português e por outro, um sentimento de vergonha por parte de alguns Angolanos ao admitirem ter uma língua sem prestígio como primeira e/ou materna.
As instituições europeias prosseguiram com a formatação, classificação e hierarquização das práticas locais, das línguas, das pessoas, das raças e das etnias. Ademais, a língua foi utilizada como mecanismo de poder nas práticas institucionais administrativas e educacionais estabelecidas pelas metrópoles, a exemplo de ensinarem apenas a língua portuguesa na escola, proibindo as pessoas de falarem línguas angolanas de origem africana. Ainda hoje, mesmo que os autores dos livros didáticos sejam angolanos, a produção de livros didáticos dá-se em Portugal e a variante do português presente nos livros é a europeia (MENEZES; BOIO, 2017, p. 521
Resumindo, a empreitada colonial se utilizou da descrição linguística realizada por missionários para instrumentalizar o controlesobreaspessoaseseusterritóriosa fim desepará-las, mapeá- las e estratificá-las. Através do dispositivo panóptico (FOUCAULT, 2013
Somente no século XX, a língua portuguesa ocupou a posição de língua mais falada nas áreas urbanas de Angola. Este fato deveu-se, fundamentalmente, ao aumento do número de colonos portugueses. A maioria preferiu fixar-se nos centros urbanos litorâneos, em detrimento das regiões rurais. Na base da necessidade concreta de subjugação econômica, fundamentou-se a justificação teórica da superioridade racial. Assim, durante as três primeiras décadas do Estado Novo português ainda prevalecia a velha concepção do século XV de que os africanos se beneficiavam da sujeição colonial em virtude da oportunidade de entrarem em contato com uma civilização superior.
Apesar de a Constituição portuguesa de 1933, consagrar inicialmente o caráter laico do Estado Novo, se iniciou um processo de progressiva confessionalização do Estado e, ao mesmo tempo, de crescente integração da Igreja Católica em seus propósitos ideológicos (ROSAS, 2013
Tal iniciativa de cristianização foi disseminada por uma planificação colonial que também se realizava cultural, social e politicamente. Fiéis ao discurso do luso-tropicalismo
...tendo por objetivo uma tentativa não só de “substituição” dos autóctones por outros recursos humanos, melhor preparados para ajudar os colonialistas na prossecução dos seus objectivos, como também, das suas culturas, instituições e economia através da introdução de um novo gênero de instituições, economia, cultura, língua, enfim. (MINGAS, 2000, p. 45
Nesse estado de coisas, cabia ao administrador colonial a autoridade firme e “paternal” sobre a população angolana, a fim de colocá-los ao serviço dos colonos e das empresas. De acordo com Mingas (2000
Nesse contexto paradoxal, em Angola havia uma elite política e econômica local que estabeleceu uma espécie de “cumplicidade contraditória” (HENRIQUES, 2003
Tendo apresentado esse panorama histórico que aproximou colonialismo português e línguas, a seguir, será abordado o papel das línguas na hierarquização dos sujeitos e como instrumento burocrático legal e arma de opressão, a partir da imposição do Estatuto do Indigenato pelo governo de Salazar.
No decorrer do século XIX, o governo português editou uma série de leis com o objetivo de dar continuidade ao empreendimento colonial, buscando legitimar a subjugação do povo angolano. Um decreto-lei em especial teve um papel de destaque no tratamento das línguas em Angola: o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, melhor conhecido como Estatuto do Indigenato, instituído pelo Decreto-lei nº 39.666, de 20 de maio de 1954.
Salienta-se que, inicialmente, com o advento da República portuguesa, em 1910, elaborou-se a primeira Lei Orgânica sobre a administração civil das Províncias do Ultramar, a qual introduziu as duas categorias de “indígenas-civilizados” e “não civilizados”, ficando estes últimos sob a autoridade direta da administração colonial.
Em seguida, buscando regulamentar o tratamento dessas categorias de sujeitos, foram publicados vários outros decretos para definir o Estatuto do Indigenato (KANDA, 2005
As hierarquias sociais estipuladas pelas leis contribuíram para reproduzir as tradições europeias no contexto colonial, conforme atestado por Hobsbawn (2015, p. 280-281
Na África, também, os brancos dependeram da tradição inventada para gerar a autoridade e confiança que lhes permitiriam tornar-se agentes de transformações. [...]. Havia duas maneiras bem diretas pelas quais os europeus procuravam fazer uso de suas tradições inventadas para transformar e modernizar o pensamento e o comportamento africanos. A primeira delas era a aceitação da ideia de que
As “tradições inventadas europeias” para fins de dominação colonial eram legitimadas através dos decretos impostos pela colônia. Um dos principais motivos que explica o fenômeno de expansão da língua portuguesa no território angolano foi a implantação da política de assimilação, a qual configurou como uma das “soluções” encontradas por Portugal para reorganizar as relações com os nativos de suas colônias durante a ditadura salazarista (1926-1975). De acordo com Mingas (2000, p. 32
Segundo a mesma pesquisadora angolana, a prática do emprego desse tipo de política linguístico-identitária foi consentida por um controle cada vez mais enfático da polícia política portuguesa, a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que considerava subversiva a utilização de qualquer uma das línguas locais, ou mesmo de vestuários locais por parte dos “assimilados”. Isso também implicava falar “corretamente” a língua portuguesa, ou seja, dominar sua estrutura a fim de evitar interferências de outras línguas. A ideia de um “português correto” também ajudou a inscrever relações de poder, pois validava uma norma a partir da qual os sujeitos são avaliados. Tendo em conta a especificidade do fenômeno colonial, o qual produziu um “isolamento linguístico” ao instaurar a cisão entre assimilados e indígenas, as diferentes línguas locais desenvolveram- se separadamente. Esse isolamento linguístico é exemplificado por Mingas (2000, p. 32
O governo colonialista português tomou medidas de isolamento de etnias e línguas, evidentemente, como precaução sobre uma possível ação conjunta dos colonizados. Dessa maneira, é possível perceber as políticas coloniais de “promoção” do português pela decretação de leis e artigos, como a Lei nº 1031, de 6 de maço de 1921, promulgada por Norton de Matos, que segue:
Artigo 2º - [...]nas escolas católicas, é proibido ensinar línguas indígenas;
Artigo 3º- [...]a utilização das línguas indígenas no catecismo não é permitida a não ser como auxiliar durante o período de ensino elementar da língua portuguesa;
§ 1. É proibido o emprego das línguas indígenas ou qualquer outra língua, à excepção do português, por escrito ou por panfleto, jornal,...na catequese das missões, nas escolas e em todos os contactos com as populações locais... (Cf. Norton de Matos, 1921
De acordo com Menezes (2000
...a exclusividade de semelhante prática era explicada pela existência entre os portugueses de qualidades sociopsicológicas particulares, que lhes permitiam adaptar-se facilmente às sociedades indígenas. [...] Os portugueses sempre procuravam transmitir-lhes a sua fé, a sua cultura, a sua civilização, chamando-os assim ao grêmio da comunidade lusitana. (FREYRE, 1993, p. 80
Contudo, longe de uma colonização harmoniosa, a ideia de assimilação implicava a “adoção por parte do africano da lei comum e da conduta nos moldes do povo colonizador” (MOREIRA, 1961, p. 139
Art. 56.º Pode perder a condição de indígena e adquirir a cidadania o indivíduo que prove satisfazer cumulativamente aos requisitos seguintes:
a) Ter mais de 18 anos:
b) Falar correctamente a língua portuguesa;
c) Exercer profissão, arte ou ofício de que aufira rendimento necessário para o sustento próprio e das pessoas de família a seu cargo, ou possuir bens suficientes para o mesmo fim;
d) Terbomcomportamentoeteradquiridoailustração e os hábitos pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses;
e) Não ter sido notado como refractário ao serviço militar nem dado como desertor.
A sociedade angolana naquela época já contava com uma hierarquização social interna própria. Se por um lado havia os grupos de “indígenas” explorados, por outro havia uma “elite crioula”
Com o decorrer do tempo, o número de portugueses nascidos em Angola começou a superar o dos nascidos em Portugal. Assim, os colonialistas decidiram fazer a diferença entre eles pelo que, eram
O segundo grupo, referido por Mingas, era formado pelos “indígenas”, ou seja, angolanos que não haviam sofrido “assimilação”. De acordo com Bender (2004
Para a elite crioula, a proclamação do Estatuto do Indigenato visava retirar sua antiga categoria legal de “civilizado” pela substituição da categoria de “assimilado”. Essa categoria, intermediária entre civilizado e indígena, demandava o seguimento de novas ações burocráticas em relação a direitos políticos e, ao mesmo tempo, diferenciava esses sujeitos dos “indígenas”. Conforme visto, a diferenciação pautava-se na categorização dos sujeitos angolanos mediante processos de assimilação de hábitos e valores europeus considerados civilizados, entre os quais se encontrava o domínio da língua oficial da colônia. Essa nova exigênciade domínio da língua portuguesa deu início a discussões dentro da elite crioula, que já contava, por exemplo, com o Bilhete de Identidade de “cidadania portuguesa”. A questão, para a elite crioula, seria aderir ou não ao novo estatuto, que na prática caracterizava uma diminuição do seu status legal e social de “cidadão” para “assimilado” (NASCIMENTO, 2015
O Bilhete de Identidade português, conforme Matrosse (2008
Nós, cidadãos africanos de Angola por imposição do regime com o qual não dos identificávamos éramos imperativa e intempestivamente catalogados como cidadãos portugueses. Lógica evidentemente incompreensível e inadmissível, no fundo absurda, pois Angola nunca se situou no continente europeu, nunca fez parte da Europa, e nunca podia ser um país português por estar situada na África.
Pelo lado daqueles a quem foi atribuído o estatuto de “indígena”, a nova lei, que em teoria abolia a cláusula de vagabundagem de 1875
Art. 2º Consideram-se indígenas das referidas províncias os indivíduos de raça negra ou os seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses.
Ser chamado de “negro” em Angola colonial significava que a pessoa não era assimilada, portanto, era sujeita ao trabalho forçado, à perda dos direitos civis e outros tantos prejuízos reservados àqueles mantidos sob o regime do “indigenato” (AYOH’OMIDIRE, 2012
Diferentemente dos indígenas, socialmente, os assimilados estavam isentos de todos os trabalhos forçados ou de contrato. E isso criava entre as pessoas um claro incentivo para se obter semelhante estatuto, embora não fosse raro suceder que o pessoal da administração recusasse aos nativos qualificados o “status” de assimilado a fim de manter um amplo repositório de potenciais contratados. Essa farsa colonial, porém, funcionava apenas para meia dúzia de angolanos: “Segundo as estatísticas de 1950 o número de nativos assimilados era tão diminuto que só 1% da população negra de toda Angola nesse ano era assimilada” (KANDA, 2005, p. 27
O termo assimilado, por sua vez, era uma construção jurídica do colonialismo português, que muitos desejavam adquirir, mas que geralmente, quando obtida, não era explicitada gratuitamente e em muitos casos sua utilização se dava com o objetivo de tratar com desmerecimento o outro, retratando uma forma caricatural de comportamento. (BITTENCOURT, 1997, p. 12
Esse desmerecimento dos sujeitos, apoiado legalmente pelo Estatuto do Indigenato, era expresso escancaradamente em relação à valoração das línguas. A língua portuguesa passou a adquirir ainda maior posição de prestígio na sociedade angolana em detrimento das línguas locais, que foram ridicularizadas e consideradas apenas dialetos. Além disso, a interferência das línguas africanas no domínio da língua portuguesa denotava uma “má proficiência” da língua da metrópole, alcunhada por “pretoguês”. Severo (2015b, p. 408
Considera-se que os significados raciais inscritos na língua, bem como os significados linguísticos inscritos na ideia de raça, são heranças coloniais. [...]... a raça não é uma categoria tomada a priori e, tampouco, essencializada. Embora o racismo não seja a única face do poder colonial, ele é um dos mais perversos, pois naturaliza a diferenciação e hierarquização entre as pessoas. A política linguística contribuiu – e tem contribuído – para o racismo ao legitimar as categorias coloniais que fomentaram estereótipos sobre os usos linguísticos por diferentes pessoas.
Tal condição de racismo linguístico era reiterada nas peças de teatro, as quais ridicularizavam e alcunhavam o “mau português”, influenciando os “assimilados” na concretização da política linguística desejada pelos colonizadores. Por meio da categorização e avaliação das línguas, foi possível classificar os falantes das línguas, os quais estavam completamente sujeitos a elas. Ao utente do “português incorreto” eram atribuídas as piores qualidades. E como desdenhar o modo de falar tornou-se corriqueiro, os “assimilados” não só evitavam, como proibiam seus filhos de usar a língua africana. Assim, nota-se que os conceitos de proficiência e de correção linguística estão vinculados a uma memória colonial segregadora e hierarquizadora.
Sobre as formas de submissão do “assimilado”, tanto o setor privado como o setor público pagavam aos assimilados salários mais baixos, sob o pretexto de que os salários refletiam a produtividade diferencial das raças. Tanto o nível cultural como a produtividade econômica de um sujeito eram pré-avaliadas numa base racial, e não numa base cultural e nem, sequer, individual. As leis e práticas portuguesas garantiam que qualquer pessoa branca em Angola, mesmo que fosse “tida pelos compatriotas como parasita, indolente ou moralmente degenerada” (KANDA, 2005, p. 28
Para os portugueses, “civilizar os nativos constituía a mais importante justificação ideológica para atingir o objetivo político da completa soberania” (KANDA, 2005, p. 13
houve pequenas técnicas das vigilâncias múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do visível preparou em surdina um saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo (FOUCAULT, 2013, p. 165
Era exatamente o que acontecia aos sujeitos que aderissem a essa categoria: por um lado sofreriam sujeição aos reclames da colônia, por outro receberiam alguns benefícios que não eram permitidos aos indígenas. E a vigilância multiplicou-se através de um sistema de benefícios e de punição atribuído às diferentes categorias.
Além das decorrências pragmáticas da adesão à condição de assimilação, as consequências sociais e políticas afetavam duramente as questões identitárias. Segundo Ayoh’Omidire (2012
Embora a identidade de assimilado sinalize para uma suposta subserviência, salientamos que dentro do grupo de assimilados existiam duas categorias:
eram considerados uma raça intermediária entre os brancos colonizadores e os negros colonizados, sendo eles próprios filhos dos primeiros. Por isso gozavam de certos privilégios. Naquela altura, o sonho de todo mestiço era ser assimilado e aceito pelos brancos como “da família” e, assim, poder beneficiar-se de todos os direitos que advinham da elevada posição social da família branca na sociedade colonial.
Os
O processo de assimilação criou condições para a compreensão, por parte dos africanos, do mundo português europeu. Diante das imposições do Estado colonial nasceu a ideia de que seria preciso resistir e combater essa ideologia. Assim, os assimilados estudaram as ideias políticas e a história de Portugal e começaram a aplicar tais ideias à causa do progresso de Angola. A ideia de nacionalismo foi, talvez, a mais importante de todas elas. Basicamente, tratava- se da ideia europeia de que cada povo ou grupo de povos europeus, organizado numa nação, tinha o direito de governar a si próprio. A influência deste nacionalismo cresceu firme, mas lentamente. Contudo, a “ideia nacionalista era apenas defendida pela minoria educada” (KANDA, 2005, p. 41
Por iniciativa do ministro do Ultramar Adriano Moreira, empossado em 1961, o governo português viu-se forçado a promulgar várias medidas que visassem eliminar as formas mais arcaicas de exploração colonial e de discriminação racial. A revogação do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique foi realizada sob o Decreto-Lei nº 43893, em 6 de setembro de 1961, permitindo estender a cidadania portuguesa a todos os habitantes daqueles territórios (CASTELO, 2013
Assim, o Estatuto do Indigenato pode ser considerado um importante marco jurídico de como os processos de legislação do poder colonial em Angola legitimaram uma política linguística de estratificação social e racial que exerceu efeitos perversos sobre as pessoas. Bonifácio Tchimboto afirma que para muitos angolanos permanece a lembrança estudantil da placa de madeira escrito “burro”, dada a estudantes que, novos na escola, eram pegos falando em umbundo. De acordo com o pesquisador (2016, n.p
Por conta disso, é necessário atentar às relações de poder inscritas nas ordenações jurídicas que afetaram as práticas linguístico- discursivas. De acordo com Foucault (1995
Desta maneira, após traçarmos um percurso histórico sobre a validação e legitimação do português e a consequente invisibilização das línguas africanas, conclui-se que em Angola há uma presente relação de poder entreas línguas, pois elas imprimem os rastrosde um passado colonial, ao mesmo tempo em que se mostram resistentes em ceder a políticas linguísticas que não respeitem sua identidade, sua história e seu povo. Na época colonial, as políticas assimilacionistas que vislumbravam um ostensivo preconceito linguístico contra as línguas angolanas acabaram causando o isolamento destas línguas. Desta forma, os “arquipélagos linguísticos”
A percepção extraída da análise do tratamento conferido pelos estatutos jurídicos instituídos pelo governo português em Angola é a de que serviram como instrumento da política de assimilação colonial, moldando o panorama linguístico, e subjugando completamente a identidade local.
Podemos perceber, portanto, o altíssimo custo sofrido pela população angolana para que o país apresente hoje elevados índices de crescimento da língua portuguesa e de percentual de falantes de português como língua materna.
Não é por outra razão que em tempos hodiernos apresentam-se movimentos de resistência das línguas nacionais e de conhecimento e legitimação do Português Angolano. Exemplo de busca desse reconhecimento foi a negação da assinatura do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Na oportunidade, o presidente da Academia Brasileira de Letras, Boaventura Cardoso, concedeu declaração14 avaliando ser desfavorável ao país firmar o Novo Acordo Ortográfico, por se tratar de um documento que não respeita a grafia de palavras em língua bantu, que deve ser feita mesmo quando se escreve em português. A instituição privada, sem fins lucrativos e de caráter cultural e científico defende que o acordo Ortográfico de Língua Portuguesa que vier a vigorar no país deve considerar a importância das línguas nacionais, além da necessidade de coexistência entre todas elas.
Assim, verifica-se que a resistência atual de Brasil e Portugal em flexibilizar os acordos linguísticos contemplando as variantes de cada local demonstra a existência de novos jogos de poder e de interesses na normatização da língua, mas se valendo das velhas sistemáticas manejadas na época colonial.
Agradeço à agência de fomento CAPES – Proex, pelo incentivo financeiro que possibilitou a execução deste trabalho.
Disponível em:
Idem nota 1.
De acordo com Makoni e Meinhof (2006
De acordo com Mingas (2000
Estatuto do Missionário, de 5 de abril de 1941. Disponível em: file:///C:/Users/User/ Downloads/decreto_lei_n_o_31207.pdf. Acesso em: 4 de fev. 2016.
De acordo com Gilberto Freire, na obra
Um ponto importante a ser delineado é o termo
Segundo Kanda (2005
Citado por Gerald Jerry Bander no seu livro “Angola Sob o Domínio Português, p. 173.
KANDA (2005, p. 14).
Prisão e julgamento, pelo tribunal militar português, de um grupo de patriotas angolanos, que foram, em seguida, deportados para as ilhas de Cabo Verde, mais especificamente, a Prisão do Tarrafal. (Mingas, 2000)
CFR. DIÁRIO DO GOVERNO, Iª Série, nº 207, 6 de Setembro de 1961; BENDER, G. J., Angola Sob o Domínio Português, Ed. Nzila, Luanda 2004, p. 190-191 (
Artigo publicado no jornal online ANGONOTÍCIAS, em 28 de março de 2016. Disponível em:
De acordo com Mingas (2000, p. 32), “do ponto de vista linguístico, o país assemelhava-se a um arquipélago, onde cada uma das línguas representava uma ilha"..