Com base na análise materialista do discurso (PÊCHEUX, 2015; 2014), este artigo tem por objetivo ressaltar a opacidade da linguagem, a partir dos efeitos de sentido do discurso neoliberal, no cenário brasileiro do golpe de 2016, analisando um
Based on the materalistic analysis of the discourse (PÊCHEUX, 2015; 2014), this article aims to stand out the opacity of language, based on the sense effects of neoliberal discourse, in the Brazilian scenario of the 2016 coup, analyzing a corpus extracted from the document “A bridge to the future” (PMDB, 2015). Considering the domains of anticipation, actuality and memory (COURTINE, 2014), it demonstrates how the neoliberal discourse presentes itself, silencing the antagonism of social classes, while recovering a memory that historically works to reinforce a national unity in favor of a future that not enough. In the intradiscourse, the effect of actuality materializes in the present the need to break with the past, associated with PT governments, presenting a government proposal aligned with dominant interests, metaphorized on a brigde that will lead the country to development. What is taken into account, in advance, is the need to identify the working class with the needs pointed out as belonging to the whole of Brazilian society, represented by the bourgeoisie, and the defense of the political and economic interest of the national State, along the lines of the model neoliberal. For those who dare to revolt, deconstructing this bridge is the historic challenge that is set in the present time.
Este artigo trata do discurso neoliberal e se inscreve sob uma base teórica materialista filiada às formulações apresentadas por Michel Pêcheux, particularmente à última fase de desenvolvimento de seus estudos. É nesse sentido que nos interessa a relação inseparável entre língua, história e ideologia, tendo em conta que o sujeito é produzido pela ideologia e só existe como resultado de processos de interpelação ideológica, não preexistindo a ela.
Para a vertente pecheuxtiana, o discurso acontece na articulação de um dado momento a uma rede de memórias, portanto, “é índice de agitação nas filiações sócio-históricas” (PÊCHEUX, 2015, p. 56
Ao analista está posto, então, o texto como objeto de sua observação, enquanto materialidade do discurso. Assim, o discurso é o objeto teórico e o texto é o objeto analítico, o que permite ao analista o movimento, não de interpretação do texto, mas de interrogação da interpretação (ORLANDI, 2017
Considerando o
A exposição da análise empreendida inicia trazendo a relação do Estado Brasileiro com o neoliberalismo e a austeridade; em seguida, são analisados os efeitos de sentido da retirada da letra “P” da legenda partidária PMDB, e a partir do documento “Uma ponte para o futuro” são analisadas sequências discursivas que mobilizam teoria e método no nosso gesto de interpretação. Com base na postura teórico-metodológica e política aqui assumida, busca-se desvelar as contradições históricas a partir dos domínios de antecipação, atualidade e memória (COURTINE, 2014
A história da modernidade se confunde com a história da formação dos Estados Nacionais e a difusão do modo de produção capitalista. A partir das expedições ultramarinas surgiram espaços públicos de disputas políticas, possibilitando, assim, o estabelecimento do capitalismo nos moldes de como se conhece. O Estado se estabeleceu como manifestação política do capital, e esta, por sua vez, possibilitou a organização das forças produtivas sob o regime de propriedade privada em um emaranhado de regras e condutas que estabelecem e perpetuam as relações entre classes sociais, e sua finalidade maior é a viabilização da economia de mercado (JINKINGS, 2015
Por sua vez, o Estado capitalista brasileiro é resultado da reorganização político-administrativa e da crescente expansão urbano-comercial-industrial, decorrente da transição de uma ordem social escravocrata e senhorial para um estágio de ampla difusão de técnicas, valores e instituições sociais da política de mercado capitalista (FERNANDES, 2011
Nessa perspectiva, o Estado brasileiro traz consigo a marca inerente ao modo de produção capitalista, a sucessão de ciclos de crises, pois “não existiu, não existe e não existirá capitalismo sem crise” (NETTO; BRAZ, 2012, p.170
No Brasil, o Estado adotou a ideologia do neoliberalismo como política econômica, na tentativa de superar os efeitos da crise estrutural do capital no país. De acordo com Guilbert (2020
Tem-se, então, o deslocamento do sentido de austeridade ressurgindo como algo novo, próprio da formação discursiva da economia. No entanto, sua filiação remonta à formação discursiva da filosofia e da moral, especialmente para intensificar um estilo rígido, disciplinador, compatível com sacrifícios, parcimônia, prudência e sobriedade, a fim de reprimir comportamentos dispendiosos, insaciáveis, perdulários. Este discurso produz sentido de moral, deslocando características próprias do indivíduo para o plano público, personificando e atribuindo características humanas ao Estado (DWECK et al., 2018
O argumento contemporâneo para o termo austeridade sustenta que, para crises econômicas, devem ser implantadas políticas fiscais restritivas, ou seja, redução de gastos e aumento de impostos, assegurando um aumento do crescimento econômico e efeito expansionista. Na prática, a austeridade como política se estabelece com o corte de gastos com consequente perda de direitos (BLYTH, 2017
Todos os esforços se voltaram para a justificativa de um social-liberalismo, como um primo bem-intencionado do neoliberalismo, mas que trazia no seu âmago as exigências do capital sob a bravata de estar à frente de uma transformação socioeconômica gigantesca, que perduraria por anos. Nesse sentido, o Banco Mundial, nos anos de 1990, defendeu a revisão da premissa constitucional, que atribui um papel de complementaridade ao setor privado no âmbito do sistema e sugeriu que o Brasil realizasse reformas que favorecessem maior participação do setor privado na economia (RIZZOTTO, 2012
Na demarcação tradicional entre política e político, considera-se a política como governabilidade com a sociedade envolvida, retoricamente definida como a arte de falar pelos outros. No âmbito da política partidária, esta se faz pela estruturação de forças em torno de programas de grupos de poder, portanto, de diferentes distribuições e desenhos sócio-políticos. Trata-se, por conseguinte, o político como a divisão necessária de sujeitos e sentidos, na sua determinação histórico-social, e, na especificidade desta análise, sujeitos pensados na conjuntura capitalista. O político é, então, significado por relações que simbolizam o poder, organizando-se no nível da significação pelas relações entre formações discursivas, não se separando das formações ideológicas, o que implica ser o político da ordem do discurso (ORLANDI, 2019
Dessa maneira, o discurso político se constitui na persuasão, movendo a opinião pública, os eleitores e a população em geral, ancorando-se em uma formação discursiva que atribui posições não apenas aos oradores autorizados, mas a todos os oradores, incluindo os de outras formações (CORTEN, 1999
Considerando que as palavras e proposições têm seus sentidos a partir e nas formações discursivas nas quais são produzidas, em se tratando do referido partido político, poderíamos perguntar, inicialmente, quais os sentidos produzidos pela retirada de uma letra de uma sigla partidária?
Entendemos tratar-se de um movimento que se constitui no domínio de antecipação, considerado dentro do funcionamento discursivo como prática social, uma vez que o sujeito do discurso se antecipa ao seu interlocutor, quanto ao sentido que suas palavras nele produzem, ou seja, dir-se-á isso ou aquilo, a partir do efeito que se pensa poder produzir em seu ouvinte (ORLANDI, 2015
Nessa lógica, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), em uma convenção extraordinária, ocorrida em 19 de dezembro de 2017, aprovou a retirada da letra “P” da sigla do partido, passando a legenda a ser chamada pelo nome original MDB. Destaca-se que a retirada do “P”, e a retomada ao nome original à época dos movimentos pró-democracia da década de 1980, foi uma medida com a intenção de diminuir o desgaste do PMDB, bem como da política partidária junto à sociedade, e popularizar a legenda. No entanto, tal medida funciona discursivamente como uma tentativa de apagamento do golpe de 2016, uma vez que ao retomar a sigla à época de sua criação, que coincide com o pluripartidarismo, pretende-se marcar uma posição ideológica do partido com a democracia, afastando-se do processo de
Assume-se um compromisso, agora partidário, com o mercado ao qual são atribuídas virtudes que de modo equidistante são defeitos para o Estado. A “liberdade” da democracia é a liberdade de mercado, diante da qual a presidenta Dilma Rousseff era um empecilho, devendo-se considerar que ao mercado compete abertura, flexibilidade, movimento, dinamicidade. Por sua vez, na perspectiva do discurso, “a produção de efeitos de atualidade é ao mesmo tempo uma resultante do desenvolvimento processual dos efeitos de memória, que a irrupção do acontecimento, no interior de uma conjuntura, reatualiza” (COURTINE, 2014, p.113
Em termos precisos, o domínio da atualidade se refere “ao funcionamento do discurso em relação a si mesmo” (PÊCHEUX, 2014, p.153
Assim, o retorno da sigla do partido à designação “MDB” tenta encarnar um “movimento” em prol do futuro, da novidade, do crescimento, da diversidade, da autenticidade, enquanto à designação PMDB é atribuída relação político-partidária de submissão ao Estado, postura que se quer abandonar, por estar associada às restrições legais, à rigidez da máquina estatal, ao imobilismo arcaico do Estado (GUILBERT, 2020
Tendo em conta que as condições de produção permitem o funcionamento discursivo e compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação, podem ser consideradas “as condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias da enunciação: é o contexto imediato” (ORLANDI, 2015, p.28
No Brasil, em 2014, o disfarce de crise política culminou com o
O objetivo, também, era eliminar o rentismo da dívida pública como meio sistemático de acúmulo de capital (a maneira mais importante de ganho da burguesia brasileira desde o início dos anos 1980) e, assim, forçar a expansão dos investimentos produtivos e de infraestrutura. Isso permitiu que a força estrutural do capital financeiro se apresentasse como meramente técnica e não profundamente política, incluindo o uso de controles da grande mídia para designar a política econômica como “tecnicamente irresponsável” e “politicamente populista” (BASTOS, 2017
Por seu turno, o projeto governamental tinha como objetivo principal a eliminação, ou na pior das hipóteses, a minimização do rentismo com dívida pública como meio sistemático de acumulação de capital. Isso significava pôr em dúvida a força estrutural do capital financeiro na determinação das taxas de juros e das taxas de câmbio, violando pactos conservadores de outrora (BASTOS, 2012
Políticos e empresários envolvidos em transações ilegais tinham interesse evidente em substituir um governo por outro que fosse capaz de barrar ou limitar as suas apurações. A unificação empresarial contra o governo Dilma, de um lado, e a perda de sua popularidade, de outro, seria resultado de processos e eventos ocorridos depois do resultado das eleições de 2014.
Sabemos que em escala planetária, a burguesia tende a preferir a interação social governada exclusivamente pelas assimetrias monetárias e de mercado, ficando menos convencida do que forçada a aceitar uma cidadania ampliada, ou seja, a invasão dos direitos sociais no capitalismo. Isso pode ser ainda mais evidente no caso do Brasil, devido às profundas desigualdades geradas pelo projeto escravocrata que orientou o desenvolvimento social. É nesse contexto que em março de 2015, dentre dos inúmeros protestos contra o governo Dilma, dois fantoches representando Lula e Dilma enforcados, pendentes em um viaduto foram noticiados por diversos veículos de comunicação (FIGURA 1).
Fonte: Sul21 (2015
As condições de produção que possibilitaram a cena materializada na imagem apontam para um contexto em que a classe dominante não conseguia mais admitir a perda do poder e privilégios de toda sorte, ao longo de mais de 12 anos de governos do PT. Produz-se, então, um efeito-intolerância, a exemplo do protesto, ocorrido em março de 2015, que pedia o extermínio físico da presidenta, de petistas, comunistas e esquerdistas em geral. Cabe considerar que, na imagem anteriormente apresentada, a figura do ex-presidente Lula foi recuperada devido a sua relação com a presidenta Dilma. Para além de serem do mesmo partido político, a presidenta foi ministra de Minas e Energia do Governo Lula e foi fortemente apoiada por ele nas campanhas presidenciais de 2010 e 2014, além dele ser apontado como seu potencial sucessor. Entretanto, a figura de um boneco do ex-presidente pode ser apreendida também enquanto efeito de sentido de um discurso de gênero, uma vez que, pela memória, a mulher (Dilma) também foi associada a uma posição de submissão, de coadjuvante do homem (Lula), como se a presidenta não tivesse autonomia, não conseguisse tomar decisões, como se o seu lugar não fosse a presidência. Nessa esteira, Dilma aparece como figura política produzida por Lula, como seu fantoche, cuja sentença deveria ser igual a de seu “criador”.
É expresso, assim, um ressentimento, enquanto efeito estrutural da soberania excessiva do outro (no caso dos partidos de esquerda), da “consolidação fantasmática” (DUNKER, 2015, p. 66
O documento intitulado “Uma Ponte para o Futuro” foi apresentado em 29 de outubro de 2015, como um programa de preservação da economia brasileira, capaz de tornar viável o seu desenvolvimento. É dividido em títulos voltados à explanação do raciocínio que justificava as mediadas propostas pelo partido PMDB. Ao trazer “Um retrato do presente”, por exemplo, o documento tenta situar o leitor no quadro de crise que afligia o Brasil; em “A questão fiscal” são apresentados déficits elevados e tendência ao endividamento do Estado; em seguida, “Retorno a um orçamento verdadeiro” sinaliza a necessidade de cortes nos gastos públicos”; em “Previdência e demografia” há uma tentativa de culpabilizar o envelhecimento da população brasileira pelos gastos com aposentadorias, mostrando um posicionamento a favor de uma reforma da Previdência mais radical; em “Juros e Dívida pública”, faz-se referência à inflação e à meta para seu controle, vinculando-a à queda do juros, reafirmando a necessidades de reformas estruturais; o último tópico do documento, por sua vez, propõe “Uma agenda para o desenvolvimento”, no qual as medidas de austeridade e a aproximação com a iniciativa privada são explicitadas.
Além do referido documento, assumiu relevância na cena política brasileira, uma Carta pessoal do então vice-presidente Michel Temer endereçada à presidenta Dilma Rousseff, aos 7 dias do mês de dezembro de 2015, na qual Temer utiliza como subterfúgio uma desconfiança da presidenta e de seu entorno para com ele e com o seu partido, o PMDB. Na referida carta, Temer diz que ocupou uma posição meramente decorativa, reclama dos ministérios perdidos pelo seu partido, faz cena de ciúmes, e menciona que “o programa ‘Uma Ponte para o Futuro’, aplaudido pela sociedade, cujas propostas poderiam ser utilizadas para recuperar a economia e resgatar a confiança foi tido como manobra desleal” (TEMER, 2015
Sendo o ajuste fiscal um “tema difícil porque dizia respeito aos trabalhadores e aos empresários”, é possível identificar na linguagem, enquanto um ato social, as suas implicações, neste caso, os conflitos e as relações de poder, a luta de classes. O que escapa no referido dizer é o “antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é preciso garantir condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência servil” (MARX; ENGELS, 2010, p. 63
Desse modo, o motivo para a ruptura PT/PMDB estava posto, mas as motivações nem tanto. Com o abandono ao governo Dilma, o terreno estaria pronto para as reformas, e, portanto, expressões como “ajuste fiscal”, “recuperar a economia”, “resgatar a confiança”, “crescer e consolidar”, presentes na referida Carta, inscritas numa formação discursiva neoliberal, permitiriam um funcionamento discursivo que fizesse ecoar um já-dito de um “Brasil, país do futuro”.
Cabe ressaltar que o enunciado “Brasil, um país do futuro” aparece pela primeira vez como título do livro do escritor vienense Stefan Zweig.
Seu desejo de querer ver no Brasil da década de 1940 uma terra livre das intolerâncias e violências que assolavam a Europa de então, fustigada pela 2ª Guerra Mundial, fez com que Zweig revivesse a imagem mitológica de que o Brasil era uma terra paradisíaca, um éden reencontrado. A descrição que faz do Brasil, mais que otimista, adquire um aspecto profético quando o autor reforça que a harmonia e paz reinantes no país faziam deste o
No funcionamento discursivo do enunciado “Brasil, país do futuro”, a formação discursiva de referência (o discurso político) foi analisada considerando os domínios de memória, de atualidade e do domínio de antecipação (COURTINE, 2014
A primeira das três sequências discursivas (SD) em análise foi extraída do próprio título do documento (
No entanto, em nosso gesto de análise, o sentido de “ponte” vai além de uma estrutura arquitetônica, pois, antes de tudo, “é necessário lembrar que, no discurso, é a palavra que assegura a função de identidade semântica: é essa identidade que a metáfora altera” (RICOUER, 2000, p.11
Uma noção imediata de “ponte” remete ao que ela pode proporcionar, levar de um lugar ao outro, superar barreiras, transpor obstáculos, realizar uma ligação de uma época a outra. Na referida SD, mesmo sem a existência de um verbo, há uma ideia de movimento, abrindo-se espaço, portanto, para o silenciamento de outro caminho que deve ficar para trás, o que as condições imediatas do discurso permitem identificar: a restrição do campo da “esquerda”, que na relação com futuro é associada ao fracasso da economia (no tempo presente).
Em sua relação constitutiva com a ideologia dominante, a produção de sentido de unicidade, na relação do político com a prática política, produz a ilusão, ao “falar do outro”, que só há um caminho, uma direção, uma ponte, entre o presente e o futuro, nos moldes apresentados pela pauta neoliberal, materializados no documento “Uma Ponte para o Futuro”.
Do ponto de vista metafórico, o enforcamento de Lula e Dilma num viaduto, conforme anteriormente abordado, é expressão não apenas de um julgamento negativo dos governos do PT, mas, sobretudo, da condenação máxima, a forca, penalidade abolida no Brasil desde 1937, possível apenas em situação de guerra. Pondo em relação o viaduto e a ponte, nas metáforas que os constituem, alinham-se à perspectiva econômica os efeitos imediatos da crise estrutural do capital, deslocados para o campo político da administração petista no país. Desse modo, contribui-se para a produção de intolerância, enquanto efeito da relação entre diversos elementos de saber que circulam nos processos discursivos (corrupção, comunismo, socialismo, ideologias, esquerda, etc.), constituídos entre a forca e o futuro.
Por seu turno, o simbolismo do enforcamento no discurso funciona como operador de uma memória social, comportando no interior dela mesma um programa de leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar, onde na transparência de sua compreensão a imagem se mostra como ela se lê (PÊCHEUX, 2007
Ao ligar uma época à outra, a ponte faz referência ao futuro, cuja noção só se dá na sua relação constitutiva com a demarcação do presente e do passado, pondo em perspectiva um processo histórico que se materializa no discurso. De acordo com Guimarães, numa abordagem histórica da linguagem “não é o sujeito que temporaliza, é o acontecimento. [...] O sujeito é tomado na temporalidade do acontecimento” (GUIMARÃES, 2017, p.16
Em se tratando de temporalidade, a exemplo do sentido de futuro na SD1, cabe perguntar:
E o que é essa temporalidade? De um lado ela se configura por um presente que abre em si uma latência de futuro (uma futuridade), sem a qual não há acontecimento de linguagem, sem a qual nada é significado, pois sem ela (a latência de futuro) nada há aí de projeção, de interpretável. [...] Por outro lado este presente e futuro próprios do acontecimento funcionam por um passado que os faz significar. [...] Esse passado é, no acontecimento, rememoração de enunciações (GUIMARÃES, 2017, p.16, grifo do autor
O futuro é, pois, um efeito de atualização na memória, investido do interdiscurso. É, antes de tudo, um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e retomadas de conflitos e regularização, um espaço de réplicas e contradiscursos (PÊCHEUX, 2007
Esse o que virá a ser ainda não é, como também essa projeção do desejo, abre uma latência para algo que nunca chega, que nunca acontece. É esse tempo sempre esperado um elemento fundamental ao discurso religioso, que se materializa como esperança. Em se tratando de um presente caótico, exemplificado pelo viés da economia, enquanto um tempo de escassez financeira, projeta-se a imagem de um futuro de prosperidade, com ancoragem, por exemplo, numa teologia que defende a bênção financeira como desejo de Deus e a fé, a resignação e as doações para os ministérios cristãos, como meios para aumentar a riqueza material do fiel. Por sua vez, o discurso messiânico materializa a espera do que está por vir, circulando no imaginário social para produzir sentidos da necessidade de um Messias. No plano político brasileiro, esse imaginário é recuperado para lhe atribuir a responsabilidade de acabar com a corrupção, com a velha política, com a exigência de superação da crise, bem como o desejo pelo milagre econômico.
Do ponto de vista discursivo, esse imaginário social continua a produzir sentidos porque surge como um recorte de um passado memorável, um deslizamento de discursos outros (FIGURA 2), que remontam a campanhas políticas eleitorais que, de maneira semelhante ao que vimos no Brasil em 2018, vislumbravam o desenvolvimento econômico: “50 anos em 5” (campanha eleitoral de Juscelino Kubitschek, 1955); “Collor é progresso. Um novo tempo vai começar” (campanha eleitoral de Fernando Collor, 1989); “O Brasil não pode voltar para trás. Avança Brasil” (campanha eleitoral de Fernando Henrique Cardoso, 1998).
Fonte: Elaborado pelos autores.
No processo discursivo de retomada desses dizeres, observa-se uma sobreposição dos domínios de atualidade e memória, na SD1 – “Uma ponte para o futuro”. O papel da memória seria o de fixar um sentido sobre os demais enunciados, também possíveis, em uma dada conjuntura histórica. Mais especificamente, é o domínio da memória que reserva um espaço para a organização da linearidade entre passado, presente e futuro (domínio de atualidade), contribuindo para a manutenção da diacronia interna de uma formação social (MARIANI, 2001
Desse modo, o domínio de memória atualiza o enunciado “Brasil, um país do futuro”, situando-o no campo do discurso político, como um Novo Mundo onde estaria o paraíso perdido, um Brasil, desprovido “da cultura histórica do velho continente, mas aberto ao futuro, ao desenvolvimento” (CARVALHO, 2006, p.34
Nessa direção, tomamos o deslizamento discursivo (FIGURA 2) do enunciado “Brasil, país do futuro”, produzido sob as condições políticas-ideológicas que antecederam a 2ª guerra mundial, mais precisamente na década de 1940, formulado por um judeu que enxergava o Brasil como a terra fértil para o desenvolvimento, como seu ideal de futuro. O realce em negrito marca a circulação desse enunciado em diversos momentos da política brasileira e a partir do efeito parafrástico, tal enunciado se atualiza em “Milagre Brasileiro/Milagre Econômico” (que circulou de 1969 a 1973, durante os governos ditatoriais), para designar o elevado crescimento econômico, aumento do Produto Interno Bruto (PIB), queda da inflação e a formação dos grandes conglomerados brasileiros.
Os sentidos oriundos desse enunciado circulam produzindo efeitos nas diversas campanhas eleitorais como demonstramos até chegarmos à linearidade do dizer “Uma ponte para o futuro”, tratando-se, portanto, do velho revestido do novo. É dessa maneira que o encontramos presente ao longo da formação social brasileira, na qual a preocupação com a economia foi e continua sendo a parte que interessa à organização social capitalista.
Por sua vez, na
Deixar o mercado fazer significa que a escolha das palavras e expressões não é anódina, uma vez que as palavras utilizadas propõem uma determinada leitura de mundo. A agenda nos remete, ainda, a uma permissão de programação das ações humanas subordinadas a tudo que seja delas oriundo em uma dimensão estritamente econômica. Para Guilbert (2020
O encontro dessas duas formações discursivas, neoliberal e econômica, induz a aceitar tornar produtivo, no sentido econômico, o que não pode sê-lo: a Educação, a Saúde, a Previdência. São suas palavras-chave: “ajuste fiscal”, “restruturação das despesas públicas”, simplificação da “área tributária”, “redução de tarifas”, “realinhamento do câmbio”, “abertura dos mercados externos”, “comércio internacional”, “investimento privado”, “licenciamentos ambientais” (PMDB, 2015
Todos esses compromissos propostos na agenda, supostamente, têm por objetivo um bem maior, o milagre econômico, através do que considera desenvolvimento. Sob o manto ideológico de um compromisso com o futuro do Brasil, faz-se necessário produzir no senso comum a evidência de um discurso que silencia, no campo político, as determinações econômicas do discurso neoliberal. A partir desse silenciamento, toma a forma de um discurso racional de onde advém seu efeito simbólico e argumentativo. Ele significa ao silenciar seu aspecto de programa de “contra-governo petista
Desse modo, o desenvolvimento surge como consequência lógica de uma agenda neoliberal de compromissos econômicos a serem assumidos pelo Estado brasileiro. Essa lógica confere um efeito de sentido de naturalidade ao discurso neoliberal, apresentando-o como um discurso apartidário ou esvaziado de ideologia, sustentado na esfera do bom senso e da racionalidade. Na SD2, o desenvolvimento é apresentado como possível de ser acreditado, e, por conseguinte, o ato de crer na evidência do fato apresentado, em sua naturalidade, fornece um quadro natural à situação. Este forma de manipulação da naturalidade, própria do discurso neoliberal, é demonstrada na análise realizada por Guilbert, uma vez que os eventos apresentados,“(i) sendo naturais, eles parecem verossímeis, (ii) não tendo ‘causa nem intenção’, eles parecem neutros, (iii) determinados por um universo ‘puramente físico’, parecem inevitáveis” (GUILBERT, 2020, p.84
Dessa forma, para que a justificativa da implantação da economia de mercado, como a única solução possível para a retomada do crescimento, faça sentido, são necessários deslocamentos oriundos da formação discursiva da economia no discurso neoliberal. Estas evidências discursivas levam os indivíduos a crer que são livres e iguais, sobrepondo as contradições de classes, com os mesmos deveres e diretos a escolhas. A escolha se põe, portanto, entre duas opções: uma que o discurso neoliberal pretende defender (desenvolvimento/futuro) e outra que, por antecipação, supõe que os sujeitos irão rejeitar, uma vez tornada mais aprazível a opção proposta.
O passado, o futuro e a ponte aparecem, então, como uma metáfora do hoje, do presente e, nesse jogo, a opção apresentada pelo discurso neoliberal é adornada por um apelo emocional da necessidade econômica; já a falsa alternativa (crise econômica/passado) é carregada de um sentido de constrangimento. Logo, não há uma escolha real, e a falsa alternativa ecoa: “eu ou o caos” (GUILBERT, 2020, p.127
Supostamente tomando partido pelo país, a
Silencia-se, no entanto, um ideário que se constitui enquanto possibilidade de unidade de classes sociais, uma vez que na SD3 observa-se um funcionamento discursivo que pressupõe uma nação [politicamente] desintegrada. Todavia, considerando o momento histórico de crise estrutural do capitalismo, a crise política é necessariamente realçada, enquanto os interesses fundamentais das classes dominantes se voltam, sobretudo, para a retomada do plano de livre mercado, como defendido pelo neoliberalismo.
De acordo com Marx (2008
Fonte: Google imagens.
O enunciado recuperado acima - “O Brasil precisa de você” - circulou em cartazes do Movimento Integralista Brasileiro na década de 1930. Segundo Cândido (1978
Nesse sentido, entendemos o discurso neoliberal como expressão política e ideológica, e o Estado como o meio no qual o capital, a partir de forças materiais, estabelece condições administrativas e legalmente necessárias à reprodução das contradições que o sustentam. Como Engels afirma, “a ação surge sempre de forças diretamente materiais e não das frases que a acompanham; longe disso, as frases políticas e jurídicas são outros tantos efeitos das forças materiais, assim como a ação política e seus resultados” (ENGELS, 2008, p.278
Nesse sentido, nada parece ser mais necessário para o desenvolvimento do país do que a ofensiva neoliberal contra a classe trabalhadora em seus direitos: reformas trabalhistas, terceirização, redução de investimentos em educação e saúde, privatizações, etc. Contraditoriamente, a classe expropriada dos meios de produção e explorada na sua força de trabalho é convocada a se unir aos seus exploradores para intensificar a sua exploração. O apelo emocional a um sentido de unidade nacional e de homogeneidade entre classes antagônicas é expresso na proximidade e empatia produzida pelos enunciados como: “o Brasil precisa de você” e por efeito parafrástico, “venha fazer parte desse sonho”.
Segundo Orlandi (2019
Nossa interpretação explicitou o efeito de identificação de interesses diversos, que, de forma simulada, apresentam-se, ou para resistência (confronto e negação) ou para a ratificação da ideologia dominante, a exemplo do que vem acontecendo com diversas políticas públicas no Brasil pós-golpe de 2016. Em termos mais precisos, a influência econômica na esfera política expõe o antagonismo de classes sociais no documento “Uma ponte para o Futuro”.
A postura teórico-metodológica e política aqui assumida permitiu evidenciar que, pelos domínios de memória e de antecipação, as tentativas de reformulação dos sentidos de passado e futuro, metaforicamente representados pela ponte, estão intimamente entrelaçadas com a dinâmica das relações sociais, materializada no discurso neoliberal. Em seu efeito de evidência, tal discurso apaga significativamente a lógica do capital, valendo-se, por exemplo, do discurso religioso (pela esperança de um futuro próspero e pela intervenção divina simbolizada na figura de um Messias) e do discurso nacionalista para se sustentar, na sua relação constitutiva com o discurso econômico.
Por esta via, o documento “Uma ponte para o futuro” é apresentado como a única prescrição capaz de romper com o presente/passado, representado pelos governos petistas. Trata-se de um funcionamento discurso de viés econômico, utilizado no cenário político, unificando a um só golpe os interesses econômicos dominantes alinhados ao programa defendido pelo então PMDB, cujos desdobramentos foram levados a cabo pelo governo Temer (2016-2018), e continuam sendo, de modo ainda mais intenso, na atualidade.
Desse modo, a interpelação ideológica dominante buscou produzir no sujeito a identificação com um compromisso em defesa da nação, pelo funcionamento do discurso nacionalista, presente no imaginário nacional e acionado pelo domínio de memória. Ao mesmo tempo, a esperança atua no campo do desejo, antecipando para a atualidade uma imagem ideal de futuro, embora este nunca chegue, nunca aconteça. A construção da imagem dos inimigos na cena política nacional, materializada nas figuras de Lula e Dilma enforcados, é expressão de um processo discursivo próprio da referida cena, no qual amigos e inimigos são postos em polos distintos e, na arena política, os sentidos circulam para legitimar, no domínio de atualidade, os efeitos do processo histórico da luta de classes nas malhas do discurso.
A polaridade que daí é reforçada, bem como os retrocessos dos direitos arduamente conquistados pela classe trabalhadora são desdobramentos do que constitui a cena política brasileira atual, desenhando incertezas no futuro pelo qual, historicamente, o povo brasileiro tem sido obrigado a esperar. Para além da promessa [não cumprida] da salvação messiânica, tem restado mais a forca, para quem tenta cruzar o viaduto, do que o futuro para quem se identificou com o percurso apresentado na ponte. Todavia, como viaduto e ponte são construções sociais, é preciso recuperar a coragem e unir forças para desconstrui-los. Eis, portanto, o desafio histórico do tempo presente!
O Brasil foi alvo da crise do Plano Collor, que ficou marcada por um profundo momento de recessão econômica e confisco dos ativos depositados nas cadernetas de poupança dos brasileiros.
Caso do Documento “Uma ponte para o futuro”, no qual são apresentadas diretrizes e recomendações para a então presidenta Dilma Rousseff, no período pré-impeachment.
Carta do vice-presidente Michel Temer para a então presidenta Dilma Rousseff.
Chamaremos de “programa de contra-governo petista”, uma vez que quando o documento “Uma ponte para o futuro” foi publicado, o governo vigente era da então presidenta Dilma Rousseff, filiada ao PT, com posições ideológicas distintas do PMDB, partido político que encabeçaria o golpe de 2016.