Inscrito no quadro teórico-metodológico da análise de discurso de base materialista, que se desenvolve a partir das proposições de Michel Pêcheux, o presente trabalho tem como objetivo analisar discursivamente sentidos em curso para o regime militar no Brasil, em diferentes materializações no espaço urbano. Com foco nas tensões e contradições que inscrevem tais discursos na cidade, em nossa conjuntura sócio-histórica, traz para análise um
This paper, which embodies the theoretical-methodological framework of materialist discourse analysis deriving from the propositions of Michel Pêcheux, aims to analyze the current meanings of the Military Government discourse in Brazil through its different manifestations in the urban space. This work is focused on the conflicts and contradictions that surround such discourse in the cities, in our socio-historical context, to assess a
O presente trabalho, filiado à Análise materialista de Discurso, sustentada nos dispositivos teórico-metodológicos elaborados por Michel Pêcheux (2009 [1975]
A análise desses dizeres, compreendidos nesta pesquisa enquanto flagrantes urbanos
O espaço urbano é mobilizado com base nos estudos de Orlandi (2004, p. 71
Mobilizar a cidade, para Orlandi (2004, p. 12
Colocar em questão as diferentes discursividades que circulam pelo espaço urbano nos permite considerar, com base em Pêcheux (2009 [1975]
Para iniciarmos nosso percurso reflexivo em torno dos espaços do museu e do memorial, mobilizaremos os sentidos dicionarizados. Não está em questão, considerando a perspectiva que ancora nosso trabalho, conceber os sentidos como evidentes e transparentes; o dicionário, enquanto objeto de conhecimento determinado sócio-historicamente (ORLANDI, 2001, p. 09
O verbete ‘memorial’ é assim definido no Dicionário Houaiss (2009, p. 1272
Pode-se depreender que os sentidos dicionarizados de memorial relacionam-se a uma especificidade temática; no caso do Memorial da Resistência, a um espaço do memorável destinado sobretudo ao funcionamento do regime militar e(m) seus traços mais vis e aos movimentos de oposição ao regime militar no Brasil. Depreendemos ainda sentidos que produzem um efeito de alinhamento entre o memorial e o museu: a conservação do que é memorável e pode/deve, por seu valor, ser posto à visibilização, exposição e lembrança públicas.
O museu pode ser definido, conforme Venturini e Schon (2018
[...] definimos o museu como espaço discursivo, pensando a noção espaço discursivo à luz de Pêcheux (2002) como o lugar do enunciável, que possibilita que um enunciado derive para outro enunciado e, também, referida por Courtine (1981) como domínio de memória, possibilitando a apreensão dos funcionamentos discursivos. (VENTURINI; SCHON, 2018, p. 546
Diante dessa perspectiva, é preciso considerar ainda o jogo constitutivo entre aquilo que se diz/mostra e aquilo que não se diz/não se mostra, sentidos sobre e a partir do espaço do museu que colocam em questão o que ressoa por/em sua ausência. Designando o museu como um entre os “espaços discursivo-museológicos”, Sousa (2017
Em nosso percurso teórico-analítico, voltaremos nosso enfoque ao espaço do Memorial da Resistência. Inaugurado em 1º de maio de 2008 e sediado na cidade de São Paulo, esse espaço surge a partir de uma iniciativa do governo do Estado de São Paulo que, por meio da Secretaria da Cultura, funda-o com vistas a preservar e/ou a recuperar uma determinada memória sobre o regime militar, o golpe de Estado militar, deflagrado em 1964, no qual estavam envolvidas também lideranças civis e elites empresariais.
Diante das consequências produzidas por um golpe, demandado por diversos setores da formação social brasileira (TOLEDO, 2004
O Memorial ocupa parte do edifício que foi sede, durante o período de 1940 a 1983, do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP). Sua proposta prevê, “por meio da musealização”, constituir-se como uma “instituição dedicada à preservação de referências das memórias da resistência e da repressão políticas do Brasil republicano (1889 à atualidade)”
Conforme Figueiredo (2017, p. 26
O termo ‘resistência’ e alguns de seus sentidos são mobilizados logo no início do vídeo institucional do Memorial, como se pode observar nas quatro imagens expostas a seguir:
Fonte:
Fonte:
Fonte:
Fonte:
Essa sequência de quatro imagens, que constitui nosso
Da perspectiva discursiva, situamos a resistência a partir do trabalho de Mariani (1998
A constituição do museu marca um gesto de resistência, a partir do que nos fala Figueiredo (2017, p. 26
Silenciar as violências de um governo autoritário pode ser então, neste caso, filiar-se ao discurso dominante, inscrevendo o jogo de sentidos posto em Figueiredo (2017
Com base no trabalho de Ricoeur (1995
Ricoeur (1995, p. 07
O perdão, na perspectiva do autor, consiste “não em exercê-lo, ou dá-lo, como se diz, mas em pedi-lo. O perdão é primeiro o que se pede a outrem, e antes de mais à vítima.” (RICOEUR, 1995, p. 7
“Um mundo que não cessa jamais de se dividir em dois”. É com essa afirmação que Pêcheux (2015 [1984], p. 07
Pêcheux ilumina, com essa afirmação, um outro ponto de nosso trabalho, qual seja, a contradição. Se, por um lado, a década de 1990 e os primeiros anos do século XXI propiciaram a emergência de sentidos e dizeres outros sobre o regime militar, dando as condições necessárias para a criação do Memorial da Resistência, por exemplo, por outro, foi possível verificar nos últimos anos, sobretudo em manifestações no espaço urbano, dizeres de homenagem e de reivindicação pelo retorno do regime militar no Brasil. Nosso trabalho prossegue analisando alguns desses dizeres, a partir do que estamos designando como flagrantes urbanos.
O que localizamos como um movimento de reivindicação do retorno da ditadura ganha forma material nas ruas de grandes cidades brasileiras, de modo mais expressivo, em meados de 2015. Em março e abril daquele ano, foram realizadas manifestações que se autodenominaram contra a corrupção
Trata-se de um movimento reivindicatório alinhado a um posicionamento político de direita que deve ser situado pelo acirramento radical dos sentidos postos em circulação. Casimiro (2018
[...] a partir da segunda metade da década de 2000, o discurso da direita passa a ganhar maior dimensão e radicalidade. Abandona-se uma espécie de ‘constrangimento’ que mantinha suas manifestações mais extremadas silentes; depois, elas passaram a caracterizar esse avanço da direita no Brasil. A reprodução desse tipo de concepção passou a ganhar muita força em virtude dos novos meios de comunicação digital e das redes sociais. Além da maior difusão do pensamento liberal-conservador, narrativas revisionistas e as fakenews passaram a ‘redimir’ determinados discursos de ódio, tidos como inaceitáveis e repulsivos por décadas pela maioria da sociedade. (CASIMIRO, 2018, p. 43-44
Casimiro (2018
O segundo, o fundamentalismo religioso, pode ser definido, conforme Miguel, como “percepção de que há uma verdade revelada que anula qualquer possibilidade de debate” (MIGUEL, 2018, p. 21
Da perspectiva discursiva, pode-se situar esses movimentos de direita pela filiação a diferentes formações discursivas (PÊCHEUX, 2009 [1975], p. 147
A respeito do movimento de reivindicação do retorno da ditadura, retomamos a reflexão empreendida por Orlandi (2010
A afirmação de Orlandi é corroborada por Figueiredo (2017
O não olhar para o passado irrompe enquanto demanda urgente na atualidade a partir da formulação e circulação de dizeres reivindicando não apenas o retorno do regime militar, mas colocando como questão de ordem um dos traços mais perversos de seu funcionamento.
O ano de 2015 foi marcado por intensas manifestações. Indursky (2016, p. 65
A circulação das cores nas ruas, em seu efeito de polarização, marca diferentes tomadas de posição e de classe. Com base em Indursky, compreendemos as manifestações de 2015 como práticas discursivas que colocam em questão “um mal-estar vigente em relação não só ao poder instituído, mas também à democracia, forma de governo vigente hoje no Brasil” (INDURSKY, 2016, p. 67
Assim como nas manifestações realizadas em 2013, as de 2015, além de circularem nas ruas, ganharam desdobramentos outros nas mídias tradicionais e na internet; os dizeres dos cartazes geralmente eram postos em destaque e passaram a circular em diferentes páginas na internet e com diferentes perspectivas
Propomos conceber tais registros enquanto flagrantes urbanos: de maneira preliminar, propomos compreendê-los como gestos cujo enquadramento produz efeito de maior ou menor espontaneidade. Gestos que colocam em questão, sobretudo, uma tomada de posição político-ideológica pelo/no espaço urbano por sujeitos e diferentes grupos. Flagrante urbano pode, assim, ser compreendido em nossa análise a partir de um duplo funcionamento: i) empiricamente, trata-se do registro efetuado da paisagem urbana e/ou de qualquer ação realizada no espaço urbano; ii) analiticamente, trata-se do que, pela força da repetição ou pela emergência produzida pelas condições de produção, comparece no espaço da cidade e constitui objeto de análise do/para o analista de discurso, que pode se dedicar a compreender o funcionamento de uma ou mais materialidades significantes em jogo. Nesse sentido, é preciso também considerar os espaços de circulação a partir dos quais tais flagrantes ganham relevo.
Portar um cartaz nas manifestações realizadas pelas ruas das cidades, por exemplo, é compreendido enquanto um flagrante urbano desse gesto que significa, nesse caso, portar determinadas demandas individuais e/ou coletivas/sociais. Para nossa análise, recortamos imagens desse tipo que, após terem sido flagradas no espaço urbano, ganharam circulação em sites na rede eletrônica, seguindo um curso de produção de sentidos. O recorte empreendido coloca em relação os diferentes sentidos em jogo sobre o regime militar.
Distintas demandas são mobilizadas pelos sujeitos nos cartazes que circulam. Em nosso gesto de leitura, trazemos três cartazes de alguns desses flagrantes: o primeiro (figura 5) é um cartaz que circulou nas manifestações realizadas em março de 2015; o segundo e o terceiro (figuras 6 e 7), nas realizadas em agosto do mesmo ano:
Fonte:
Fonte:
Fonte:
Alguns cartazes tiveram destaque na mídia. O segundo cartaz (figura 6) é um caso exemplar. O flagrante de uma senhora portando esse cartaz enquanto parece descansar na guia ganhou destaque nas redes sociais e despertou a atenção de colunistas de diferentes espaços midiáticos. Em trabalho anterior (DELA-SILVA; LUNKES, 2020, p. 104
O retorno a esse cartaz permite-nos, neste momento, apontar para o não desconhecimento a respeito das torturas e assassinatos promovidos pela ditadura no Brasil, no período de 1964 a 1985. São sentidos que ecoaram também na votação ao processo de golpe/
Nos dizeres em análise, não se trata de apoios a governos autoritários por desconhecimento de suas ações, ou a apologias a torturas e assassinatos por acreditar que tais ações não existiram. Aqueles que seguram os cartazes e bradam por repressão sabem o que pedem e mesmo assim o fazem. Baldini e Di Nizo (2015
Em nosso gesto analítico, propomos uma substituição. Sabemos que a conjunção
Propomos substituir o “mas” por um “e”: “eu sei e por isso (...)”. Esse encaixe sintático permite situar uma posição sujeito que ao reconhecer o já-dito o assume como da ordem do esperado/desejado. Trata-se de um funcionamento a partir do qual se depreende a irrupção de um discurso marcado por efeitos de ódio em sua formulação. Nesse funcionamento, os gestos de violência não apenas são acolhidos nas fronteiras do saber desse discurso, mas também possibilita inseri-los nas práticas discursivas como ordem/agenda do dia, conforme se pode depreender nos dizeres em análise.
A expressão “gestos de violência” é aqui mobilizada a partir de pesquisas anteriores (LUNKES, 2019
[...] conjunto de gestos de violência que, pela evidência ideológica da formação social capitalista, corroboram e legitimam desigualdades de toda ordem, seja de classe, de raça e/ou gênero, que atuam não apenas no sentido de verticalizar/hierarquizar as relações, mas também de cristalizar os efeitos de superioridade e inferioridade colocados em jogo no discurso de um sujeito ou grupo sobre outro. (LUNKES, 2019, p. 194
Com essa perspectiva em questão, vejamos o funcionamento de tais gestos de violência retomando os mesmos enunciados, mas com outra filiação de sentidos: “Eu sei o que é a tortura e por isso a espero/desejo para os de esquerda/‘comunistas’/opositores do regime militar.”.
Em nossa análise, mobilizamos o espaço urbano em diferentes movimentos: a cidade na constituição de espaços como o do Memorial da Resistência
A fim de produzir o efeito de fechamento do presente trabalho, retomemos parte do título, em que procuramos estabelecer um jogo linguístico a partir de efeitos de declaração/interrogação: “lembrar é resistir(?)”. Apesar de iniciativas de constituir nas cidades espaços como o Memorial da Resistência, em que se coloca a ler/ver uma espécie de “acerto de contas” (RICOEUR, 1995
Por isso, com a mesma urgência e anseio dos discursos que reivindicam e naturalizam esses gestos de violência, insistamos em problematizá-los, em descontruir as evidências que neles se produzem. Insistamos em nossa tomada de posição: lembrar e/é resistir.
Considerando um dos objetos de análise do presente trabalho, mobilizamos o título da peça teatral “Lembrar é resistir”, escrita por Analy Alvarez e Izaías Almada e dirigida por Silnei Siqueira. Exibida pela primeira vez em 1999 em comemoração aos 20 anos de anistia, a peça foi/é encenada no Memorial da Resistência. (Fonte:
Posteriormente explicaremos como a noção de flagrantes urbanos é compreendida na pesquisa.
Informações retiradas do site:
No museu, o visitante tem acesso às celas dos presos, o que possibilita a leitura das inscrições nas paredes. Uma escrita que se marca enquanto efeito de angústia e ao mesmo tempo de resistência, e que permite o retorno, pelo gesto de leitura (pro)posto pelo Memorial, enquanto memória que visibiliza esses efeitos. Na visita ao Memorial, foi possível ler em uma das paredes o texto assinado pela presa política Rose Nogueira: “Pegaram meu bebê para me ameaçar”.
Não podemos deixar de mencionar que no discurso do regime militar o sentido de insatisfação é relacionado a alguns grupos, sobre os quais recai uma produção dominante de sentidos que os negativizam. Relacionando ao estudo de Mariani (1998
É importante destacar que esse não é o primeiro movimento empreendido pela oposição durante os anos de governos petistas. Em 2007, por exemplo, o movimento conhecido como “Cansei” reuniu instituições como OAB/SP e Associação do Comércio, empresários como João Dória, artistas como Ivete Sangalo, Hebe, Regina Duarte, Ana Maria Braga, Regina Casé, Seu Jorge, além de civis. Manifestações foram realizadas em São Paulo e entre as palavras de ordem estavam “Fora Lula” e “Lula, ladrão, vai pra prisão”, o que nos permite depreender nessas tensões e nesses conflitos mais marcados em (dis)curso uma prática discursiva de ódio à esquerda, materializada no fio do discurso pela mobilização da posição ocupada pelo então presidente Lula. (Fontes:
A Comissão Nacional da Verdade, cujo objetivo era “apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988”, foi uma iniciativa extremamente relevante. O curto período de duração (de 2012 a 2014) para investigar um longo período histórico já aponta para questões outras e que vão ao encontro do exposto por Orlandi. (Fonte:
Embora não seja nosso intuito desenvolver uma análise dos desdobramentos desses dizeres, vale destacar o site no qual localizamos a figura 5, que traz um cartaz em que se protesta pelo não assassinato da então presidenta Dilma Rousseff. Trata-se de uma página que propõe apresentar os cartazes “mais engraçados e criativos” das manifestações de 2015. É necessário colocar em questão como dizeres desejando a morte de alguém, nesse caso, da única mulher que até o momento ocupou o cargo mais importante do Brasil em termos de representatividade, possam circular na evidência de sentidos de comicidade e criatividade.
Transcrevemos os dizeres da maneira como foram formulados nos cartazes.