O artigo analisa tanto discursos que conservam estigmas e depreciações da fala feminina quanto discursos que se contrapõem a tais estigmas e depreciações. Para tanto, valendo-se de pressupostos teóricos e de procedimentos metodológicos da Análise do discurso, examinam-se enunciados produzidos no Brasil contemporâneo a respeito do exercício oratório feminino. O objetivo aqui é o de demonstrar que, a despeito das profundas transformações históricas agenciadas pela cultura Ocidental e, consequentemente, dos deslocamentos sofridos pelas próprias condições de produção dos discursos, as discriminações da fala feminina consolidaram-se de tal modo e com tal força que continuam a se perpetuar em nossos dias, a despeito dos diversos meios, veículos e gêneros textuais em que se materializam. Em conjunto com tal objetivo, há ainda o de indicar que, em oposição a essas discriminações de longa data, surgiram na sociedade brasileira de nossos dias posições igualitárias e feministas que lhes resistem, que as refutam e que se fazem ouvir.
The article analyzes both discourses that preserve stigmas and depreciations of female speech and discourses that oppose such stigmas and depreciations. To do so, using Discourse analysis methodological assumptions and procedures, we examine statements produced in contemporary Brazil egarding the female oratory exercise are examined. The objective here is to demonstrate that, despite the profound historical changes brought by Western culture and, consequently, of the displacement suffered by the very conditions of discourses production, the discrimination of female speech has consolidated in such a way and with such force that it continues to perpetuate today, despite the diverse means, vehicles and textual genres. In conjunction with this objective, we also aim to indicate that, in opposition to these longstanding discriminations, equal and feminist positions have emerged in Brazilian society of our days that resist them, refute them and that are heard.
A fala feminina foi há muito proscrita do campo da fala pública. Essa proscrição tem uma força tamanha que seus ecos se estendem até nossos dias, em que pesem as profundas transformações históricas que se processaram ao longo dos séculos. Com efeito, as práticas de fala pública e as representações do desempenho oratório conhecem uma história pela qual não passaram ilesos os regimes de alocução e as sensibilidades da escuta. Por essa razão, não se pode reduzir a história da fala pública a uma restrita história da retórica. Antes, ela deve se expandir o suficiente para compreender uma história do corpo, dos gestos e da voz do orador e de seu exercício de fala pública, uma história dos dispositivos materiais que produzem, transmitem e registram esse exercício e ainda uma história do público ouvinte, considerando a ampla diversidade de suas recepções e comportamentos (COURTINE; PIOVEZANI, 2015
Mais presente e atuante do que talvez pudéssemos supor, há uma “sexuação” nas práticas e representações da fala pública. Essa sexuação consiste no fato de que as repartições entre as possibilidades e os efetivos exercícios da fala pública e entre seus poderes, alcances e efeitos são atravessadas e constituídas por uma histórica e social divisão entre os universos masculino e feminino. Ocorre, portanto, a formação de uma percepção sexuada da fala pública, cujo destino será longo e consistente. Em uma tal percepção,
contrapõem-se a força viril do orador que fala e vence o tumulto dos auditórios e a passividade feminina sob a forma cômoda do silêncio; contrastam-se a virtude masculina da coragem exigida pela parrêsia e o vício feminino da bajulação e do eufemismo; demarcam-se, finalmente, o ideal masculino da voz, que se assentaria na harmonia firme e viril da fala e que remonta à força dos gritos de guerra e caça, e a feminidade sedutora do canto, no qual ecoariam a melodia de ninfas e sereias. (COURTINE; PIOVEZANI, 2015, p. 17
Partindo dessa contraposição entre o que seriam as forças e aptidões masculinas para o desempenho oratório e o que se alega serem as fragilidades e incompetências femininas para a fala pública, nosso artigo vale-se de pressupostos, noções e procedimentos metodológicos da Análise do discurso francesa para examinar uma série de enunciados produzidos no Brasil contemporâneo. Provenientes de diferentes campos do saber e formulados em gêneros discursivos diversos, tais enunciados ora materializam ideias a propósito das supostas incapacidades femininas para o exercício de fala no espaço público, ora materializam vozes progressistas que se contrapõem às depreciações da fala feminina.
Mais precisamente, nosso objetivo é o de demonstrar que, a despeito das consideráveis transformações históricas nas condições de produção dos discursos e a despeito da diversidade dos tempos, dos espaços, dos campos de saber e dos gêneros discursivos, as discriminações da fala e da voz femininas atravessaram os séculos e consolidaram-se de tal modo que continuam a se perpetuar em nossos dias. Além disso, temos ainda o propósito de analisar enunciados que, em oposição a essas discriminações de longa data, surgiram mais ou menos recentemente na sociedade brasileira. Ante um amplo e sólido conjunto de discursos que as estigmatizam e deslegitimam, essas recentes vozes igualitárias e feministas lhes resistem, os refutam e se fazem ouvir.
Como se pode observar, na perspectiva dos estudos discursivos, há uma concepção de história e de sociedade que pressupõe a produção, a reprodução e as transformações nas relações de força e de sentido que se processam em seu interior e as constituem. Numa abordagem discursiva, os discursos são concebidos ao mesmo tempo como elementos em que se materializam as diferentes ideologias de uma sociedade, como um universo que determina o que podemos ou não podemos dizer, em diversas condições de produção do que se diz, e finalmente como um processo em que se constituem os sentidos que passam a adquirir cada uma das coisas ditas. Esse processo constrói os sentidos mediante a instauração de relações de equivalência e de encadeamento entre as palavras e enunciados que produzimos como sujeitos do dizer. Desse modo, as mesmas palavras e enunciados podem produzir diferentes sentidos, quando inseridos num ou noutro discurso, tanto quanto as palavras e os enunciados distintos podem produzir os mesmos sentidos, desde que inseridos num mesmo discurso (PÊCHEUX, 1997
A essa noção de discurso, conjugamos a ideia de que sua produção, conforme Foucault (2001, p. 8-9
Por um lado, o discurso é uma materialização privilegiada das lutas sociais, porque dá corpo e difusão às ideologias, e, por outro, consiste numa prática de poder, pela qual lutamos. Ele é um “poder de que queremos nos apoderar” (FOUCAULT, 2001, p. 10
Apesar de todas as inflexões, modificações e rupturas históricas e sociais a que assistimos ao longo do século XX, os preconceitos contra a fala e a voz femininas estão ainda bastante presentes e atuantes no Brasil contemporâneo. As lutas travadas, as batalhas vencidas e as perdidas e as conquistas igualitárias alcançadas, entre as quais se destacam as políticas afirmativas, de modo geral, que se promoveram de forma mais ou menos intensa desde a Constituição de 1988, principalmente com as ações dos governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff, e os movimentos feministas, de modo particular, já emergentes a partir das primeiras décadas do século XX
Na sociedade brasileira de nossos tempos, é possível flagrar retomadas mais ou menos modificadas de memórias que: i) ora atribuem ao homem a competência da fala; ii) ora apontam que as mulheres são frágeis e, por isso, não podem discursar, ou mesmo que, quando falam, trata-se, antes, de amenidades, fofocas ou tagarelices; iii) ora afirmam que a voz feminina, sendo aguda, indica covardia, fraqueza e insegurança; iv), ora indicam que se trata de uma voz fina, estridente e fraca, desprovida, portanto, da robustez necessária à fala pública; v) ora salientam, enfim, que, na esteira das práticas de fala e de escuta impulsivas, irritáveis, inconstantes e violentas da multidão, a fala feminina não é apta à oratória, dado que a massa não fala, apenas vocifera, geme ou murmura. Noutros termos, são memórias que produzem o sentido de uma fala pública que pouco ou nada diz e o de uma voz cuja agudez indica a fraqueza, a insegurança e a covardia femininas.
Um caso emblemático da materialização discursiva dessas memórias ocorreu em 2015, no auge das articulações políticas que teriam como desfecho o definitivo afastamento de Dilma Rousseff da presidência da país. Naquele ano, foi publicado o livro
O que choca em Dilma não é a oratória em si. Há pessoas preparadíssimas que não se expressam bem – preferíveis, por sinal, às que dão um show de palavreado para camuflar a falta de conteúdo. Mas o problema de Dilma sempre pareceu mais complexo. A forma primitiva da fala, da saudação à despedida, já traía na candidata o primarismo do pensamento e um despreparo generalizado. Ela não apenas falava mal – mas dava a nítida impressão de não saber o que falava, sobre virtualmente qualquer assunto.
Para quem se dispusesse a ouvi-la com um mínimo de atenção, a fala de Dilma, desde os primórdios de sua ascensão ao proscênio da política nacional, sempre foi um triste espetáculo de pensamentos rudimentares, expressos por uma sintaxe que desafiaria estudiosos da neurolinguística em aborígenes australianos. Na própria presidente, quando instada a se manifestar, é nítido o sofrimento pela necessidade de articular ideias em público. Ouça um discurso em que Dilma improvise. Gestos que normalmente acompanham o resgate de palavras em nosso arcabouço léxico se desenham no ar quase sempre silenciosos, desacompanhados da respectiva expressão verbal, soltos no vazio do pensamento. Sempre foi patente o esforço de Dilma, nunca bem-sucedido, de desenvolver uma ideia – os esgares produzidos por essa tentativa frustrada traem sua dificuldade de instrumentalizar o raciocínio com palavras.
A entonação que vocaliza o dilmês também é característica em certos vocábulos chave do discurso de Dilma, como o prolongado “nóoos” majestático com que inicia suas bravatas sobre os feitos do
O que inicial e explicitamente se ressalta nesse texto, e que nele se apresenta como sua própria razão de ser, consiste na relação que seu enunciador pretende estabelecer entre a crítica da aparência, isto é, o que ele diz sobre a fala de Dilma, e o que seria a censura a algo bem mais sério e grave: aquilo que afirma a respeito dos pensamentos da presidenta. As escolhas lexicais e as determinações linguísticas não apenas não deixam dúvidas quanto à crença nessa relação, mas, mais do que isso, enfatizam a suposta ligação constitutiva entre linguagem e pensamento: “forma primitiva da fala” e “primarismo do pensamento”; “falava mal” e “não saber o que falava”; “pensamentos rudimentares” e “sintaxe que desafiaria estudiosos da neurolinguística”; “sofrimento pela necessidade de articular ideias em público” e “vazio do pensamento”; e “sua dificuldade de instrumentalizar o raciocínio com palavras”. Aliás, não seria excessivo dizer que a ênfase nessa direção é, antes, a produção de um efeito de agressividade, em tese, atenuado pelo de humor, que já se anuncia desde o título jocoso,
Há uma enorme frequência e uma não menor cristalização nas interpretações dedicadas às relações que estabelecemos entre o que se processa dentro de nós e o que se manifesta em nossos corpos e nos indícios de nossos gestos, das modulações de nossa voz e de nossas expressões faciais. Essas enormes frequência e cristalização são acompanhadas por um reduzido reconhecimento de nossa parte de que o fazemos conforme práticas e discursos hegemônicos. Não obstante, sabemos que esse tipo de articulação entre a zona exterior do corpo e de seus signos sensíveis, estes que podemos ver, ouvir, tocar e experimentar, de um lado, e a zona interior dos seres humanos, isto é, esse nosso espaço interno que compreende o que se passa em nossos corações, em nossas cabeças e em nossas almas, de outro, esteve muito presente e atuante em diferentes contextos históricos. Com efeito, é provável que essa relação entre exterior e interior se tenha configurado como uma constante antropológica no modo de se proceder às interpretações que fazemos uns dos outros.
Pois é justamente a partir de algo tão absolutamente consolidado nas maneiras de sentir e de pensar que a crônica de Araújo e seu livro de modo geral descreditam o desempenho oratório de Dilma e, por extensão, sua capacidade de julgamento e suas decisões. Assim, a crítica poderia se tornar ao mesmo tempo mais crível e, segundo essa perspectiva, mais pertinente, na medida em que não seria difícil que os leitores do
Além da relação entre linguagem e pensamento, em que a pretensa prova da confusão do último seria a suposta incorreção e hesitação na formulação da primeira, da imagem de um enunciador que conjuga o efeito de humor com uma indisfarçável agressividade, tal como se observa em expressões como “triste espetáculo de pensamentos rudimentares”, há ainda outros expedientes linguísticos e argumentativos na composição do texto que merecem ser examinados. Entre eles, analisaremos somente dois: o uso de pré-construídos e o da isenção do enunciatário para mais categoricamente condenar a personagem atacada. Empregar o determinante definido no início de um sintagma produz o efeito de evidência daquilo sobre o que se fala. Trata-se de algo que, uma vez efetiva ou imaginariamente repetido no interdiscurso, surge na formulação intradiscursiva como algo cuja existência é bastante conhecida e inegável. Eis o efeito que se produz com o uso do pré-construído. É isso que se constitui em expressões como “
Um procedimento discursivo que possibilita ao enunciador produzir efeitos de sentido que buscam fazer com que o enunciatário creia no que lhe é dito consiste em isentar este último de uma falta atribuída exclusivamente a quem se ataca no texto. Assim, se constrói uma espécie de comunidade imaginária entre enunciador e enunciatário, ambos partidários de uma mesma posição ideológica. Para que o escopo da acusação a Dilma não recaia sobre o enunciatário, o enunciador afirma que “Há pessoas preparadíssimas que não se expressam bem”, tal como pode ser o caso de quem se imagina que possa ser o leitor do texto. Mais do que isso, sustenta ainda que essas “pessoas preparadíssimas” são “preferíveis, por sinal, às que dão um show de palavreado para camuflar a falta de conteúdo”. O enunciatário não apenas é isentado do ataque desferido em Dilma, mas pode também eventualmente integrar-se ao grupo das “pessoas preparadíssimas”. Em todo caso, constrói-se ou reforça-se o consenso sobre a má qualidade de expressão de Dilma, sua inaptidão cognitiva e seu despreparo para bem exercer suas funções. No máximo, a depender de sua autoimagem, o enunciatário pode falhar na excelência da expressão, mas não participará da comunidade de que Dilma é ilustre representante; comunidade esta composta por aqueles, talvez, sobretudo, aquelas, que não pensam direito e, por isso, não estão preparados(as) para tomar decisões e governar.
Como se não bastassem as detratações da língua e da fala de Dilma, também sua voz é atacada para mais fortemente depreciar seu pensamento e rebaixar ainda mais suas decisões e ações governamentais. Sem um exame rigoroso assentado em aparato científico, o enunciador nada mais faz do que formular juízo de valor travestido de discurso de especialista: “entonação”, “certos vocábulos”, “nós majestático”. A referência às ações já empreendidas pelos governos Lula e Dilma é chamada nessa posição antagonista e conservadora de “bravatas sobre os feitos do lulopetismo”. Ainda e sempre sob essa mesma chave são lidas as suspensões de fala de Dilma, ali designadas como “uma agônica pausa, carente de enunciados por longos segundos”. É a partir do consenso mais do que consolidado segundo o qual as paradas na fala são sinais de hesitação, insegurança e desarticulação do pensamento que as pausas nas intervenções da presidenta são consideradas “agônicas” e que frações de segundos ou alguns poucos segundos são chamados de “longos”. Caso estivesse inscrito em posição distinta, o enunciador poderia ver nessas mesmas pausas um signo de reflexão minuciosa, de ausência de afobação, de senso de responsabilidade quanto ao que se fala, ao fazê-lo do lugar institucional máximo da presidência da República, e de ponderação meticulosa dos efeitos positivos e negativos que uma palavra mal posta pode suscitar.
Enfim, para os adeptos da posição conservadora, Dilma fala mal, não pensa bem e é despreparada para desempenhar as altas funções políticas pelas quais já fora e mais do que nunca pela qual ainda era a responsável. A presidenta não fala, mas “despeja o dilmês”, hesita ao falar de modo a produzir agonia em quem a ouve e profere “bravatas”. Mas os defeitos de Dilma não se encerrariam por aí. Além de tudo isso e acompanhando seus erros de expressão e de conteúdo, de ações e de decisões, estão “posturas arrogantes” e a “empáfia autoritária”. Em resumo, o julgamento conservador é implacável: quando Dilma suspende sua fala, é hesitante, insegura, desarticulada e inapta cognitivamente; mas quando a presidenta se mostra firme, segura e decidida, estaria dando provas de arrogância e autoritarismo. A um homem público, branco e alinhado ao neoliberalismo é muito provável que um tal conjunto de juízos, produto de um malabarismo axiológico, todavia, coerente na posição conservadora, se fixasse com mais e maiores dificuldades.
Aparentemente destoando dessa posição que ataca a fala e a voz de Dilma, surge aquela em que se inscreve o enunciador de uma reportagem publicada em maio de 2019 pela revista
O enunciado que constitui o lide conduz a esse mesmo sentido. Ali, Tabata Amaral é retomada por forma remissiva que indica sua função e sua filiação partidária “deputada do PDT”, o que reforça sua própria legitimidade institucional, que, por sua vez, se estende aos seus pronunciamentos feitos na Câmara ou alhures. Mais do que essa legitimidade, o que se produz com o contraste “foi à tribuna” e “o plenário ficou em silêncio para escutar” são efeitos de expectativa pela recepção de uma alocução, de apreensão compartilhada por todos que ocupavam o plenário e de autoridade de que essa fala estaria investida. Há certo
Um enunciador que assim concebe e descreve uma fala feminina parece se inscrever numa posição enunciativa oposta àquela que encontramos em
Há ainda outros fatores na reportagem que concorrem para construir os contornos dessa posição discursiva de seu enunciador. Em princípio, destaca-se a paráfrase do lide no interior da matéria: “Quando a jovem de 25 anos subiu na tribuna, porém, todos ficaram em silêncio”. Conforme se costuma dizer da lógica jornalística de nossos tempos, o que se torna notícia é o que se apresenta como mais ou menos extraordinário. Nas duas ocorrências, tanto no enunciado do lide quanto em sua retomada parafrástica, se produz o efeito de admiração ou até mesmo de surpresa ante o fenômeno retratado: uma jovem que cala um público composto em sua maioria por homens brancos, cisgêneros, de meia-idade, abastados e relativamente bem instruídos.
A segunda ocorrência ainda comporta elementos novos: não se trata somente de uma mulher, mas de uma “jovem de 25 anos”; não se trata somente de ir até a tribuna, mas de nela “subir”, o que indica mais manifestamente a ascensão espacial e, ainda mais, a posição superior na hierarquia gozada por aquela que tem coragem, ainda jovem, para intervir com sua fala em público; enquanto no lide as duas orações se relacionam de modo coordenado, no enunciado que ora examinamos a relação entre as duas orações é marcada pela ligação adversativa, o que intensifica o efeito de surpresa; o uso do pronome indefinido “todos”, que em posição nuclear no sintagma ressalta o fato de que a totalidade, e não somente uma sua parcela dos deputados “ficaram em silêncio”; e, finalmente, a atualização do verbo ficar na terceira pessoa do plural em modo indicativo com seu aspecto perfeito, durativo e, ao mesmo tempo, inceptivo e cursivo, remete tanto ao estado em que passaram a ficar os deputados quanto ao estado em que permaneceram ao longo da fala de Tabata.
Porque coisa dita e repetida, o esforço feito pela deputada para redigir seu pronunciamento é ressaltado, bem como se destacam os qualificativos que lhe são atribuídos: “Reservada, ela não vaiou nem aplaudiu os demais discursos. Revisou o que iria falar e trocou interações breves com outros políticos ao longo do dia” e, mais à frente, “Criteriosa, até revisou seu discurso: tirou uma referência a ‘cavaleiros templários’, ordem de guerreiros católicos na Idade Média, e trocou por ‘cruzada’”. Sua discrição, indicada em sua reserva em não se manifestar diante dos pronunciamentos alheios, é consoante com o estereótipo de uma qualidade feminina. Já a prudência, apontada com o uso de “criteriosa”, é um traço eufórico do caráter dos dois gêneros, ainda que tradicionalmente esteja mais conforme ao controle viril do que ao que se alega ser o desequilíbrio feminino. Essa virtude se articula tanto com a preparação do pronunciamento, “trocou breves interações com outros políticos ao longo do dia”, fato que lhe acrescenta ainda a abertura ao que lhe dizem os demais e o senso colaborativo de lhes apresentar sua posição, quanto com a reiterada revisão a que Tabata o submeteu antes de proferi-lo na tribuna da Câmara, acentuada, inclusive, por meio do advérbio “até”. O esmero de revisar seu discurso pode, contudo, produzir efeitos não tão positivos: a redação prévia do que vai se dizer está sujeita a ser interpretada como dificuldade para ser espontânea e falar de improviso e/ou como artificialidade e maquinação. Além disso, na revisão, de acordo com o enunciador da
O conhecimento de que dispomos sobre a longa história de discriminações da fala e da voz femininas permite tanto que vejamos na posição do jornalista Celso Arnaldo Araújo, autor de
A matéria sobre Tabata não está fora, portanto, das memórias construídas acerca da inaptidão oratória feminina. Ao deslocamento que parece haver na admiração expressa pela sua competência retórica, sobrepõe-se o alarme com essa competência de Tabata Amaral. É uma persistente continuidade de discursos que menosprezam a fala feminina que justifica a surpresa do enunciador de um texto publicado em veículo da grande mídia para com a desenvoltura oratória da jovem deputada. Em face de insuficientes inflexões como essa numa longa duração de discursos do preconceito, assistimos à emergência de vozes dissonantes e resistentes do movimento feminista. No que afirmam, estão manifestas as lutas por vez, voz e fala:
Como esforço último do empreendimento aqui proposto, passamos a discutir a intersecção entre gênero e raça, mediante a análise de enunciados que materializam posições enunciativas distintas. Elas compartilham certos pressupostos, mas sua distinção está marcada pelo processo e pelo funcionamento discursivo de cada uma, nos quais as relações de equivalência e de encadeamento das coisas ditas são diferentes e, assim, constroem sentidos bastante diversos e até opostos entre si.
No dia 25 de junho de 2018, a pré-candidata à presidência da República, Manuela D’Ávila, foi a entrevistada do programa
Nesse cenário, não seria surpreendente que a entrevistada tivesse de enfrentar questões delicadas e objeções às suas respostas. O que ocorreu, porém, naquela noite de junho, foi bem mais marcante do que isso. Considerando o fato de que o programa consiste no gênero entrevista, havia expectativa de que devesse prevalecer a fala da entrevistada ou, ao menos, a de que houvesse uma troca interlocutiva relativamente equilibrada, ainda que também mais ou menos hostil, sob a forma de um diálogo mais ou menos áspero. De fato, não foi somente isso o que aconteceu. A hostilidade e a aspereza não estiveram ausentes, mas o que mais se destacou naquela edição do
Veículos da mídia de distintos segmentos e de diversos matizes ideológicos, bem como internautas e comunidades de várias redes sociais, manifestaram seu descontentamento e mesmo sua indignação ao que padecera a candidata. Dada toda sua vasta extensão, reproduzimos abaixo somente alguns enunciados que materializaram essa posição contrária à dinâmica daquele
Manuela D’Ávila vira alvo de manterrupting em entrevista no ‘Roda Viva’
A pré-candidata à presidência Manuela D'Ávila foi interrompida mais de 60 vezes na entrevista que deu ao "Roda Viva". Entenda o que é manterrupting.
Manuela D’Ávila, pré-candidata à presidência pelo PCdoB, esteve no programa “Roda Viva” dessa segunda-feira (25) e o que se viu foi um festival de manterrupting. Em inglês essa palavra é uma junção de man (homem) com interrupting (interrupção) e é usada para explicitar situações em que um ou mais homens fica(m) interrompendo a fala de uma ou mais mulheres, impedindo que ela(s) conclua(m) o que estava sendo dito.
Num dos momentos em que isso ficou mais evidente, o entrevistador Frederico D’Ávila – que é assessor de Jair Bolsonaro – perguntou a Manuela se ela é a favor da castração química. Em resposta, a deputada começou a falar sobre cultura do estupro, dizendo que a solução para o problema está na educação. Frederico não deixou ela concluir o que dizia, introduzindo à conversa uma indagação sobre nazismo e Exército Vermelho – o que nada tinha a ver com a questão do estupro. Além disso, o homem também chegou a dizer que a cultura do estupro não existe.
Dilma, Ciro e Boulos criticam tratamento a Manuela D´Ávila no Roda Viva
“Ataques machistas”, diz Dilma Rousseff (PT) sobre tratamento a Manuela D´Ávila, pré-candidata à Presidência pelo PCdoB interrompida 62 vezes pelos entrevistadores do programa Roda Viva, da TV Cultura
Ainda que concorrentes nas eleições presidenciais de 2018, o Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff, Ciro Gomes e Guilherme Boulos repudiaram a postura dos entrevistadores do Roda Viva (TV Cultura) e manifestaram solidariedade à pré-candidata Manuela D´Ávila (PCdoB), que concedeu entrevista ao programa na noite de segunda-feira (25).
Para os mencionados, o tratamento a Manuela D´Ávila foi “machista” e visou “calar” a pré-candidata. A própria comunista divulgou, em sua página nas redes sociais da internet, uma comparação: Ciro Gomes (PDT), quando participou do programa, foi interrompido 8 vezes durante suas respostas aos entrevistadores; D´Ávila, por sua vez, foi interrompida 62 vezes.
Compunham a bancada, além de repórteres dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de São Paulo, o coordenador da campanha de Jair Bolsonaro (PSL) Frederico D´Ávila. Os entrevistadores assumiram, em certos momentos, uma postura irônica contra Manuela que foge do tom usual do programa.
Partidos lamentam tratamento a Manuela D´Ávila
“Toda solidariedade à minha querida amiga Manuela D'Ávila, uma das lideranças políticas mais extraordinárias desse país. Podem até tentar, mas não vão conseguir calar essa voz”, criticou o pré-candidato à Presidência Ciro Gome
Guilherme Boulos (PSOL), outro postulante ao Planalto, também se manifestou. “Roda viva expressou o machismo estrutural da sociedade brasileira. Solidariedade e unidade contra os retrocessos!”, disse.
Já para a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), “as grosserias contra Manuela no ‘Roda
Internet indignada contra o programa Roda Viva aplaude coragem de Manuela D’Ávila
Veja aqui várias manifestações de internautas, jornalistas, políticos e personalidades contra o ataque sofrido por Manuela no Roda Viva
Foi uma tentativa de massacre. Jornalistas desinformados e preconceituosos e até mesmo um assessor de Bolsonaro avançaram contra a pré-candidata do PCdoB, Manuela D’Ávila, na noite desta segunda-feira (26), no programa Roda Viva, da TV Cultura. O sentimento machista e anticomunista era latente a cada pergunta, a cada interrupção.
Manuela, por sua vez, se manteve firme, respondeu a todos e não se alterou em momento algum diante das provocações. A internet, no entanto, amanheceu indignada com o antijornalismo praticado pela emissora e, sobretudo, com o tom das perguntas, provocações e interrupções dos entrevistadores.
O PCdoB chegou a fazer uma estatística com o número de interrupções que Manuela sofreu e comparou com as de Ciro Gomes, entrevistado em maio. A diferença foi acachapante. Manuela sofreu 62 interrupções contra apenas 8 de Ciro.
Vários internautas, personalidades do jornalismo e da política se manifestaram na manhã desta terça-feira (26). Veja algumas delas abaixo:
Manuela D'Ávila deu um show no programa Roda Viva, apesar da alta dose de machismo e pegadinhas de jornalistas q ñ queriam entrevistar uma pré-candidata p/ saber as suas ideias p/ o país, mas, sim, descontrui-lá. Não conseguiram, pois a MANU MANDOU MUITO BEM.
@tarsogenro
Manuela se saiu muito bem enfrentando a ignorância, o preconceito e a falta de conhecimento da maioria dos seus adversários (não eram entrevistadores). Companheira orgulho da esquerda e grande candidata do campo democrático e popular.
Conforme dissemos, há um manifesto posicionamento contrário às interrupções que Manuela D’Ávila sofreu em sua entrevista no
Já no texto do portal
Finalmente, o texto da revista
Os dias seguintes assistiram a um arrefecimento da repercussão daquele
Por terem sido construídos como os sujeitos do poder, homens brancos se julgam os grandes sabedores de tudo, mesmo que não saibam.
Em consonância com a posição igualitária ora mais ora menos materializada nos textos publicados em
Para introduzir o que mais destoa da posição progressista dominante, Ribeiro recorre à voz autorizada de outrem. É a partir da referência a Gloria Jean Watkins, cujo pseudônimo é bell hooks (grafado com iniciais minúsculas), e de uma breve exposição da reflexão que essa autora faz num de seus textos, que Ribeiro passará à crítica ao modo como procedeu a candidata do PCdoB no
Só depois desse preâmbulo é que identificamos o surgimento de uma outra relação entre a enunciadora e o que ela enuncia. Agora, o vínculo entre quem diz e a coisa dita se torna bem mais próximo e sólido. Esse vínculo se estabelece com os empregos da primeira pessoal do plural, ainda que seu uso e seus efeitos não sejam exatamente idênticos ao longo da sequência do texto. Nesta passagem, que introduz essa nova modalidade enunciativa, “O que precisamos fazer é encontrar formas de enfrentar, desestabilizar e não de nos esconder na fragilidade que eles impuseram às mulheres brancas.”, há duas atualizações da primeira pessoa do plural, mas também duas ocorrências da terceira. Em “precisamos”, temos um nós inclusivo
Desse ponto de seu texto até o seu final, a primeira pessoa surgirá ainda quatorze vezes. A totalidade dessas atualizações pode ser repartida em cinco subconjuntos, considerando os distintos efeitos de sentido que se produzem em cada um deles. O primeiro é composto pela primeira pessoa do plural no seguinte caso: “Sabemos o quanto é duro ser mulher na política, precisamos seguir lutando”, que é a reiteração do nós inclusivo, cuja abrangência tanto pode contemplar a enunciadora e as leitoras identificadas com a comunidade das mulheres feministas negras, quanto ambas e ainda os partidários de sua causa. Um segundo pode compreender os dois usos da primeira pessoa do singular, “penso” e “julgo”, com os quais a enunciadora pode postular algo, sem excessiva presunção, porque denotam uma ponderação subjetiva e uma mais particular expressão de uma posição. No terceiro incluem-se estes dois verbos conjugados em primeira pessoa do plural e o pronome oblíquo correspondente: “não podemos mais nos dar ao luxo de ficarmos surpresas”. Há aqui a marcação do gênero feminino em “surpresas” que restringe a amplitude do nós inclusivo, tal como ocorre no primeiro conjunto. O próximo é constituído de um único pronome oblíquo de primeira pessoa do plural, que parece ser idêntico ao nós inclusivo anterior que se limita dada a marcação do feminino em “protegida”. Porém, mediante as relações de equivalência que o discurso a que se filia a enunciadora estabelecem entre as palavras, expressões e enunciados do texto, é possível identificar que se trata, antes, daquela inclusão excludente da enunciadora e daquelas que com ela já se identificam, de que falamos no parágrafo precedente. O quinto e último conjunto compreende as seis últimas atualizações da primeira pessoa do plural: “A nós, mulheres negras, como nos ensina as feministas negras, nunca nos coube esse papel. Somos as raivosas, agressivas, que fazem barraco. E por que? Porque em vez da identidade vitimada, escolhemos ir pra cima. E pagamos um preço alto por isso”. Todas essas ocorrências estão subsumidas no escopo do sintagma “mulheres negras”, uma vez que é ele o referente das formas remissivas a ele ligadas sob a forma da primeira pessoa do plural. Trata-se de um nós inclusivo, que apenas inclui a enunciadora e outras mulheres negras, como ela.
Pouco acima, havíamos feito referência à constituição de um
Em particular, este último excerto do texto merece algumas considerações. A primeira delas é a de que se poderia afirmar que ele é mais uma declaração explícita da imagem da enunciadora sobre si mesma do que exatamente um componente de seu
Ainda que “raivosas”, “agressivas”, “que fazem barraco” e “escolhemos ir pra cima” carreguem essa memória das práticas e discursos que pretenderam e ainda pretendem calar a voz feminina, estigmatizar e deslegitimar sua fala, memória essa que tem uma longa duração histórica, quando esses termos e expressões são empregados, como no texto de Ribeiro, a partir de uma posição discursiva não só distinta, mas oposta à tradição misógina e patriarcal, passam a produzir sentidos bastante diferentes dos produzidos na posição que lhe é antagonista. Toda a disforia concentrada em cada traço semântico dessas palavras, locuções e orações e conservada por séculos numa memória antifeminina, que remonta ao menos até ao que disse Telêmaco à Penélope, é revertida na positividade da coragem de quem não foge aos perigos da luta. Em conjunto com a reapropriação identitária que nela se constituiu, a formulação “Somos as raivosas, agressivas, que fazem barraco” compreende ainda não uma essencialização e o estabelecimento de uma identidade fixa, mas, antes, sua recusa, porque “Somos” ali passa a significar “nos tornamos”, “fomos obrigadas a nos tornar para poder resistir”.
Nossa última consideração sobre as três últimas frases do texto de Djamila Ribeiro diz respeito à relativa ironia que há na construção do
A possibilidade de que opositores, os não adeptos de suas lutas e de sua causa e os já progressistas, mas ainda não esclarecidos sobre as razões feministas, apontem nessa forma de batalha e resistência um excesso nos parece ser um sintoma de longa duração dos preconceitos e um ônus menor a ser pago nessa batalha
Os exercícios de reflexão e análise que efetuamos aqui sobre discursos a propósito da fala feminina demonstram haver uma força tão sólida e um alcance tão extenso nesses discursos que eles atravessam várias e diversas fronteiras. Embora tenhamos assistido a uma longa série de profundas transformações históricas nas condições de produção dos dizeres e na diversidade dos tempos e dos lugares, dos campos de conhecimento e dos gêneros discursivos, as discriminações da fala feminina estabilizaram-se de tal forma que se conservaram até nossos dias. Foi isso que pudemos observar na análise do livro
Contudo, conforme demonstramos, essa força e esse alcance não impediram que surgissem outras posições, desde aquelas que discordam dos posicionamentos conservadores, mas ainda ecoam alguns de seus preconceitos, tal como ocorre na reportagem dedicada a um pronunciamento de Tabata Amaral, passando por aquelas que se posicionaram contra a postura dos entrevistadores do Roda Viva diante de Manuela D’Ávila, até aquelas mais sonoras, tal como vimos no texto de Djamila Ribeiro. Diante de um vasto e consolidado conjunto de discursos que as depreciam e menosprezam, essas recentes vozes igualitárias e feministas os confrontam, os contestam e, com muita luta, abrem espaços para serem cada vez mais ouvidas.
O exame que empreendemos aqui sobre enunciados do Brasil contemporâneo ilustra os poderes e perigos que se concentram na ordem do discurso. Uma dessas inquietações de que nos fala Foucault é a da sua “existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence” (2001, p. 8
A título de mera ilustração, ver os textos de Pagu publicados no jornal
Tweets retirados da seguinte reportagem:
Para mais informações sobre usos e efeitos do “nós”, ver: Benveniste (1995
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