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Este estudo foi pensado a partir das observações que os graduandos do quinto semestre do curso de Pedagogia, de uma universidade pública, no interior de São Paulo, fazem sobre os sentidos que circulam nas escolas em que realizam os estágios curriculares, especificamente, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, dedicados à alfabetização. Para a realização desse estágio, os alunos constroem os chamados projetos de intervenção, que serão desenvolvidos por eles, em dez horas, nas salas de aula em que estudam alunos do primeiro ao terceiro anos do Ensino Fundamental, anos escolares em que esse estágio é realizado.
Fundamentados nos conceitos teóricos estudados na disciplina Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa, ministrada, também, para os alunos do quinto semestre, os graduandos elaboram seus projetos de intervenção. Um dos conceitos que despertam maior interesse, nos futuros pedagogos, para serem trabalhados nos projetos é o conceito de autoria. Os projetos são elaborados e avaliados pela docente responsável pela disciplina, antes de serem apresentados para as professoras das salas de aula do Ensino Fundamental, onde eles serão desenvolvidos.
Mesmo quando os projetos apresentam boa fundamentação teórica e temática interessante é possível que a professora da sala exerça resistência para autorizar a execução das atividades propostas pelos estagiários, alegando, na maioria das vezes, que haverá avaliações externas, tais como a Provinha Brasil e, por isso, ela não pode ceder dez horas para atividades que não sejam aquelas que serão cobradas pelas avaliações externas.
Partindo do princípio que esse cenário reclama um melhor entendimento, objetivamos analisar como o discurso das avaliações externas, especificamente, a chamada Provinha Brasil, pode determinar o que deve ser trabalhado, em sala de aula, e o que pode/ou deve permanecer silenciado para os alunos do Ensino Fundamental. Objetivamos, também, estabelecer um contraponto com uma situação de estágio curricular, realizado em uma sala de primeiro ano do Ensino Fundamental, cujo foco foi o trabalho com autoria.
Com base nessa contextualização breve, discorreremos, neste trabalho, sobre as seguintes questões: 1- o conceito de autoria para a Análise do Discurso; 2- o discurso do Guia de Aplicação da Avaliação da Alfabetização Infantil – Provinha Brasil; 3- Análise de produção textual feita por alunos do Ensino Fundamental de uma escola pública de Ribeirão Preto, em que um projeto de intervenção, cujo objetivo era trabalhar a autoria dos alunos do primeiro ano, foi realizado com o aceite da professora.
A Análise do Discurso elaborada por Michel Pêcheux e (re)formulada por seus seguidores é a teoria que fundamenta este trabalho.
Mobilizaremos alguns conceitos que tocam na questão da autoria e dela não podem ser dissociados. Iniciaremos pelo conceito de sujeito, entendido como uma posição discursiva que o indivíduo, interpelado pela ideologia, ocupa ao produzir sentidos. Essa posição é ideológica, o que faz com que o sujeito tenha a ilusão de que é dono do seu dizer. Portanto, não estamos nos referindo a um ser empírico, mas sim, a uma posição que projeta o indivíduo num jogo de formações imaginárias (PÊCHEUX, [1969] 1993) e, a partir dessa projeção, os sentidos são construídos.
Transpondo esse jogo imaginário para o contexto escolar, podemos dizer que temos o seguinte quadro: o sujeito-professor tem uma imagem de si, ocupa seu lugar e dirige-se ao sujeito-aluno, que também ocupa o lugar que o professor projetou para aquele que está na escola para aprender. Por sua vez, o sujeito-aluno também tem uma imagem de si e projeta uma imagem para aquele que ensina. Nessa relação, ambos projetam uma imagem para si e para o referente, imagem que dependerá da relação estabelecida pelos interlocutores: o sujeito-professor imagina um sujeito-aluno como um sujeito que tem determinado saber sobre o referente ou como um sujeito que está na escola para repetir o que o lhe é ensinado? Nessa situação de interlocução, pode ocorrer que o referente seja disputado pelos interlocutores, como ocorre quando o que funciona é o discurso do tipo polêmico (ORLANDI, 1996a), ou que o sentido seja predeterminado pelo sujeito-professor ou pelo livro didático, e o sujeito-aluno só tenha permissão para repetir o que foi dito, característica do discurso do tipo autoritário (ibidem).
No caso da autoria, podemos dizer que esse jogo de projeção imaginária pode autorizar, ou não, a assunção da autoria pelos alunos. Antes de prosseguirmos, vamos explicar como concebemos o conceito de autoria. Partimos dos estudos de ORLANDI (1996a, 1996b) e de TFOUNI (1995) para entender como o autor se constitui e como se dá sua relação com a construção dos sentidos.
ORLANDI (1996a) ao retomar
Ainda para ORLANDI (1996a: 70), “o sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer”. Seguindo este raciocínio, pode- se considerar que o escritor que só repete não exerce a função de autor e não atinge a interpretação, pois a repetição desconsidera que a relação do sujeito com o sentido é perpassada pela opacidade, pelo devir que pode romper no discurso quando o trabalho da história e da ideologia, na língua, é levado em conta nos gestos de interpretação do sujeito. De acordo com PÊCHEUX (1999: 14):
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A análise de discurso não pretende se instituir em especialista da interpretação, dominando “o” sentido dos textos, mas somente construir procedimentos expondo o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito (tais como a relação discursiva entre sintaxe e léxico no regime dos enunciados, com o efeito do interdiscurso induzido nesse regime, sob a forma do não-dito que aí emerge, como discurso outro, discurso de um outro ou discurso do Outro).
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A citação pode ser o ponto de partida para refletirmos sobre autoria e/em Análise do Discurso. Do mesmo modo que a teoria não concebe o sentido como sendo único, o sujeito para ser autor também tem de duvidar da evidência dos sentidos. Tal qual a teoria, que trabalha com a opacidade dos sentidos, o autor, também, realiza esse mesmo trabalho por meio dos gestos de interpretação e, percorrendo o interdiscurso em sua relação com o outro e com o Outro, o autor assume a responsabilidade pelos sentidos que coloca em discurso, trabalhando com o mesmo (a paráfrase) e com o diferente (a polissemia) e, nessa tessitura, o sujeito se faz autor porque o que produziu foi interpretável (ORLANDI, 1996a).
Para TFOUNI (1995: 54), “existe, no processo de criação de um texto, um movimento de deriva e dispersão de sentidos que a função- autor pretende controlar”. A autora relaciona a autoria a graus de letramento, defendendo que o sujeito, mesmo sem estar alfabetizado, pode controlar a deriva e a dispersão dos sentidos na produção oral, em alguns casos, muito melhor do que sujeitos que possuem alto grau de escolaridade. Com essa defesa, a autora critica o entendimento de que o princípio de autoria é característico apenas do texto escrito. Ao defender a autoria na oralidade, TFOUNI (1995) argumenta contra a teoria da grande divisa, que separa, radicalmente, os usos orais dos usos escritos, conferindo uma supremacia à escrita e destituindo de poder, a oralidade.
Feitos esses apontamentos, buscaremos analisar indícios de como é pensado o ensino de língua portuguesa no Guia de Aplicação da Provinha Brasil.
Conforme já antecipamos, a análise do discurso do referido documento será nosso segundo ponto de destaque, neste texto. A opção pela análise do discurso que sustenta o documento referente à Provinha Brasil justifica-se porque ela é aplicada para os alunos que frequentam o segundo ano do ensino fundamental, a fim de dar indicativos de como está o ensino de língua, no Brasil. Iniciamos a análise pela nomeação “Provinha”. ORLANDI (1997) afirma que, ao dizer X, silenciamos, necessariamente, Y. O que ficou silenciado com o uso do diminutivo “Provinha”? Quais efeitos de sentido esse diminutivo traz como possibilidades de interpretação? E mais: seria um diminutivo infantilizado, do qual muitos se valem para se referir às crianças? Seria um diminutivo com sentido pejorativo, que viria a desqualificar a prova, pois uma “provinha” não tem grande relevância? Não podemos afirmar qual é o sentido, afinal a linguagem não é transparente, mas os sentidos estão circulando e reclamam gestos de interpretação.
Encontramos a apresentação da Provinha Brasil, no
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A partir das informações do Saeb e da Prova Brasil, o MEC e as secretarias estaduais e municipais de Educação podem definir ações voltadas ao aprimoramento da qualidade da educação no país e a redução das desigualdades existentes, promovendo, por exemplo, a correção de distorções e debilidades identificadas e direcionando seus recursos técnicos e financeiros para áreas identificadas como prioritárias. [...] No caso da Prova Brasil, ainda pode ser observado o desempenho específico de cada rede de ensino e do sistema como um todo das escolas públicas urbanas e rurais do país (BRASIL, 2013c).
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Com base nessa apresentação, é possível sustentar a hipótese de que, se a autoria for considerada importante nessa etapa de escolarização, essa noção será contemplada tanto no documento oficial quanto nas questões da prova, uma vez que será o resultado da prova que norteará o ensino nas escolas brasileiras de Ensino Fundamental, especialmente, nas escolas públicas. É isso que analisaremos, adiante.
De acordo com o Guia de Correção e Interpretação de Resultados da Provinha Brasil 2012, os objetivos dessa avaliação externa, elaborada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) são:
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a) avaliar o nível de alfabetização dos alunos nos anos iniciais do ensino fundamental; b) oferecer às redes de ensino um resultado da qualidade da alfabetização, prevenindo o diagnóstico tardio das dificuldades de aprendizagem; c) concorrer para melhoria da qualidade de ensino e redução das desigualdades, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação nacional. (BRASIL, 2012: 4).
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Como podemos observar, a ênfase dos objetivos é dada à alfabetização. Essa ênfase é confirmada na página 6 do referido Guia, em que lemos “O foco da avaliação está na contribuição da educação formal para a alfabetização.”
Segundo TFOUNI (1995), a alfabetização refere-se à aquisição da escrita como aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isso ocorre por meio do processo de escolarização e é avaliado em âmbito individual. Conforme o Guia, a avaliação pretende “monitorar e avaliar a aprendizagem de cada aluno ou turma” (BRASIL, 2012: 7), o que vai ao encontro da afirmação de TFOUNI (1995), segundo a qual as atividades de alfabetização consideram a avaliação do desempenho individual e, como consequência, desconsideram os aspectos sócio históricos envolvidos na relação dos sujeitos com a linguagem.
A autora (idem) defende uma abordagem sócio histórica do letramento; para ela, “o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade” (TFOUNI, 1995: 20-21). Dessa forma, diferentemente da alfabetização, o letramento não se restringe ao individual, mas vai além, visto que os estudos sobre o letramento investigam as transformações que ocorrem numa sociedade que adquire o sistema escrito.
Com base nisso, TFOUNI (1995) critica concepções de letramento que não são nem processuais nem históricas, ou seja, critica a visão de letramento como sinônimo de alfabetização. Uma das contribuições de Tfouni que trazemos para refletir sobre essa questão diz respeito à relação que a autora estabelece entre autoria e grau de letramento, conforme discutiremos adiante.
Todavia, parece-nos que é comum encontrarmos a visão de letramento como sinônimo de alfabetização, até mesmo nos documentos oficiais. No Guia que estamos analisando, encontramos no item “O que é avaliado”, a seguinte resposta:
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Foram consideradas como habilidades imprescindíveis para o desenvolvimento da alfabetização e do letramento as que podem ser agrupadas em torno de cinco eixos fundamentais: 1) apropriação do sistema de escrita; 2) leitura; 3) compreensão e valorização da cultura escrita; 5) desenvolvimento da oralidade (BRASIL, 2012: 8).
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Com exceção do eixo número cinco (desenvolvimento da oralidade), os demais estão voltados para as atividades de leitura e de escrita, ou seja, para a alfabetização, mesmo que o letramento tenha sido contemplado na citação acima, como o é, também, em outras passagens do documento. Ocorre que, conforme entendemos, a partir de TFOUNI (1995), a noção de letramento, nesse documento, circula de um modo enviesado, pois tanto no Guia de Correção e Interpretação dos Resultados, quanto no Guia de Aplicação (conforme veremos, adiante), a concepção de alfabetização prevalece em detrimento da concepção de letramento. Um dos indícios da supervalorização da alfabetização pode ser encontrado no trecho a seguir:
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Porém, em função da natureza de um processo de avaliação como é o da Provinha Brasil, a Matriz de Referência considera apenas as habilidades de quatro eixos: 1- Apropriação do sistema da escrita; 2- Leitura; 3- Escrita; 4- Compreensão e valorização da cultura escrita (BRASIL, 2012: 8-9).
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Como podemos constatar, o eixo de número cinco, que se refere ao desenvolvimento da oralidade, foi excluído da avaliação. De acordo com as teorias do letramento (TFOUNI, 1995; KLEIMAN, 1995), o sujeito do letramento não é, necessariamente, alfabetizado. Sendo assim, escrita e oralidade são consideradas para essas teorias como interdependentes, como bem defende TFOUNI (1995) ao apresentar os textos orais em que a autoria vigora, produzidos por Dona Madalena, sujeito de sua pesquisa, que, embora sem ter frequentado a escola possui um alto grau de letramento, donde a autora defende que grau de escolaridade não tem relação direta com grau de letramento, tampouco com autoria.
Entretanto, o que o discurso da Provinha Brasil nos mostra é que essa avaliação se sustenta no modelo autônomo de letramento (STREET, 1993), que defende a supremacia da escrita em detrimento da oralidade, que valoriza o estudo de textos escritos, desconsiderando as práticas discursivas orais dos sujeitos-alunos. Por outro lado, o modelo ideológico de letramento (idem) não aceita a autonomia da escrita, pois segundo esse modelo, o desenvolvimento das sociedades modernas sustenta-se na divisão do trabalho e nas relações com o modo de produção, e não na difusão do letramento.
Assim, o letramento contribui para o desenvolvimento, mas não é sua causa. Vale ressaltar que, no contexto escolar, as atividades de linguagem sustentam-se no modelo autônomo de letramento; por isso, não se valorizam as produções orais, mesmo quando a autoria vigora, nem sequer uma escrita que apresenta desvios em relação à chamada língua culta, mesmo nos anos iniciais do Ensino Fundamental, período em que os sujeitos-alunos estão se constituindo como sujeitos da escrita, momento em que eles poderão iniciar, ou não, a prática da autoria nos textos escritos, uma vez que para produzir os textos orais eles já foram autorizados, ou autorizaram-se, a ocupar a posição discursiva de autor.
O que dissemos, acima, pode ser corroborado por meio de uma análise de duas atividades propostas pela Provinha Brasil, em que a escrita tem de curvar-se à padronização, e os gestos de interpretação são interditados, pois o foco das questões é a forma, o conteúdo e não a interpretação dos sentidos que podem vir a ser, para cada sujeito, em cada gesto de interpretação. As questões a seguir, retiradas do Guia de Aplicação da Provinha Brasil, 2012, destinada à Leitura, podem sustentar o que estamos argumentando. Vejamos:
O objetivo da questão, segundo BRASIL (2012), é avaliar a habilidade de reconhecer letras escritas de diferentes formas. Como podemos observar, na alternativa (C), a palavra “panela” está grafada com letras minúsculas, ao passo que a palavra destacada na questão está com a inicial em letra maiúscula. Nosso questionamento em relação a isso é em que medida a questão contribui para uma reflexão sobre o ensino de língua, partindo do pressuposto de que, conforme o discurso oficial, a Avaliação visa a verificar como está o ensino e o que pode ser melhorado. A nosso ver, essa questão é uma atividade de discriminação visual e não assinalar a alternativa correta não indicia, necessariamente, um problema de conhecimento linguístico, pois a troca de letras ocorre, frequentemente, nos meios digitais, como celulares e computadores, inclusive quando as palavras são digitadas por sujeitos que têm um alto grau de escolaridade. No caso dessa questão, nem precisamos argumentar que não há espaço para interpretação e autoria.
Analisaremos mais uma questão, que traz um poema de Cecília Meireles e que, pela própria natureza do texto de base, supostamente criaria condições para que o sujeito-aluno interprete e produza sentidos a partir do texto lido. Vejamos:
Segundo BRASIL (2102), o objetivo da questão é “avaliar a habilidade de localizar informações explícitas no texto”. Desse modo, o sentido já está dado e, para ser bem avaliado, o aluno tem de marcar a alternativa que os avaliadores consideram a correta. Entretanto, no caso da questão acima (questão 15), o enunciado não diz “Agora responda,
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O sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe ‘em si mesmo’ (...) mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas.
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O sujeito produz sentidos a partir de uma posição ideológica; porém, a escola e as avaliações externas não consideram o processo de produção dos sentidos e, a partir de seu poder institucional determinam uma única possibilidade de dizer, apagando a constituição sócio-histórica dos sentidos, mesmo quando o sujeito-autor da questão esteve sujeito à falha, ao deslize e não formulou bem o enunciado da prova. Todavia, ao sujeito-aluno não é dada a possibilidade de deslizes, de equívocos.
Ainda em relação a essa última questão, questionamos por que o professor só pode repetir a leitura “no máximo duas vezes”? Quais são as condições de produção que sustentam a aplicação dessa avaliação? Como se dá a relação dos interlocutores? Como essa distância entre professores e alunos que se encontram em período de alfabetização pode funcionar como um indicador do ensino de língua nas escolas públicas brasileiras?
De acordo com as análises, podemos dizer que essa avaliação não contempla a autoria, pois as questões reduzem a relação do sujeito com os sentidos à escolha de uma alternativa, qual seja, a palavra “panela” deve ser assinalada, não outra, bem como a cor “branca”. Movimento diferente a esse encontramos na atividade de estágio, apresentada a seguir.
Nesta seção, apresentaremos o relato de uma situação de estágio em que a autoria foi trabalhada. As autoras
O projeto foi realizado em quatro aulas, totalizando dez horas de intervenção. Os livros foram lidos, comentados e interpretados pelos interlocutores (alunos e estagiárias). Para a leitura de Saramago, as estagiárias usaram recursos visuais, como data-show; para a leitura de Ruth Rocha, elas realizaram a impressão do livro em formato A3, para que todos os alunos tivessem acesso à leitura, às páginas dos livros. As estagiárias partiram da oralidade, pautadas no pressuposto de que
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[...] a relação entre escrita e oralidade não é uma relação de dependência da primeira à segunda, mas é antes uma relação de interdependência, isto é, ambos os sistemas de representação influenciam-se igualmente (TFOUNI, 1995: 21).
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Neste texto, apresentaremos apenas a atividade realizada com o livro de Saramago. As estagiárias iniciaram a atividade falando sobre o autor, usando, para isso, um globo terrestre para mostrar às crianças o país onde vivia Saramago; depois, fizeram a contextualização e a leitura do livro.
Em “A maior flor do mundo”, Saramago narra a história de um menino que vai até o fim do mundo para salvar uma flor que estava para morrer. Nessa trajetória, o menino enfrenta muitas dificuldades, mas consegue trazer a flor à vida.
Depois de grande discussão oral, as estagiárias pediram às crianças que produzissem um texto coletivo. Os alunos negociaram a escolha do nome do personagem da história que seria produzida pela sala, que foi Gil. Eis o texto:
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Gil explorou a floresta e encontrou um gato, um leão, uma onça, um dinossauro Rex, um dragão, um cavalo, um passarinho e o pé grande.
O passarinho voou muito longe com uma semente no bico e viu um buraco e soltou a semente. Depois choveu e a semente nasceu.
Então, Gil encontrou a flor murchando, e ele foi trinta vezes buscar água para a flor não murchar. Depois, ele ficou cansado e voltou para a sua família.
O Gil é muito esperto!
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Destacamos, dessa produção textual, a participação dos sujeitos na escolha do nome do personagem, na direção percorrida pelos sentidos do texto, nos gestos de interpretação realizados pelos alunos e na negociação que eles fizeram para construir o texto. “O lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa, para o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repetição histórica)” (ORLANDI, 1996a: 75).
O acesso ao interdiscurso sobre flor, sobre menino, sobre passarinho fez com que os alunos pudessem trabalhar nos eixos da paráfrase e da polissemia e costurar os sentidos eleitos pelos sujeitos-autores como significativos para entrarem no intradiscurso. Esse movimento (mesmo que incipiente, pois as estagiárias, também, encontram-se em situação de aprendizagem da docência; soma-se a isso o tempo exíguo do estágio, dez horas, e o início do período de escolarização dos alunos, primeiro ano) aponta para uma relação de sujeitos com a leitura e escrita, que permite a subjetivação, a interpretação e a autoria.
Ressaltamos que, dependendo da perspectiva teórica, esse texto pode ser considerado “adequado” (adjetivo caro e recorrente nos documentos oficiais que versam sobre Educação) ou não para uma produção escolar. A nosso ver, esse texto traz indícios de autoria, pois foi produzido numa situação de interlocução de fato, em que os sujeitos não tiveram que responder o que o autor quis dizer, ou qual é o personagem do texto; ao contrário, produziram sentidos sobre Gil, o explorador, que pode ser “muito esperto” porque “explorou a floresta”, ou porque “foi trinta vezes buscar água para molhar a flor”, ou ainda porque, quando cansado, “voltou para sua família”. Nesse percurso, Gil encontrou um pássaro, que soltou uma semente e dela, provavelmente, nasceu a flor que Gil cuidou para não deixá-la murchar, movimento que indica uma coerência textual, movimento próprio da função-autor.
RODRIGUES (2011), ao escrever sobre a escrita e autoria de adolescentes, sustenta que a presença de um interlocutor de fato pode ser um estímulo para a autoria. Na atividade que analisamos, podemos constatar que houve uma relação dos interlocutores – alunos e estagiários – envolvidos no processo de produção textual. Eles escreveram sobre os sentidos lidos e discutidos em sala de aula, sentidos que mobilizaram os alunos a escreverem, a partir da “flor” do autor português, sobre a “flor” que eles, sujeitos-alunos do primeiro ano, puderam criar para si, mesmo que oralmente, pois muitos deles ainda estão se alfabetizando. Ao assumir o lugar de autor, o sujeito passa a preocupar-se mais com seu texto.
ORLANDI (1996b: 46), ao tratar da leitura sob a perspectiva da Análise do Discurso, escreve que “o gesto de interpretação é o lugar em que se tem a relação do sujeito com a língua. Esta é a marca da “subjetivação”, o traço da relação da língua com a exterioridade”. A produção textual que analisamos traz indícios de subjetivação, porque, a nosso ver, os sujeitos-alunos puderam realizar gestos de interpretação e, a partir disso, eles construíram uma relação com a língua, ponto nodal para que o princípio de autoria se instale.
Temos constatado, em situação de estágio supervisionado, que, pelo fato de as Avaliações externas terem os objetivos tão centrados nos aspectos formais e conteudistas, os professores, de modo geral, reduzem suas aulas a questões que, supostamente, serão cobradas na Provinha Brasil. Diante de práticas pedagógicas que focam o ensino da língua em aspectos (orto)gráficos e na busca de informações explícitas, como analisamos no Guia de Aplicação da Provinha Brasil - Leitura 2012, somos levados a dizer que: i) a leitura é concebida como decodificação;
ii) não são criadas condições para a interpretação, não havendo, pois, espaço para a constituição de sujeitos e sentidos. Assim sendo, o trabalho com autoria nos anos iniciais do Ensino Fundamental não circula no discurso do Guia de Aplicação da Provinha Brasil, tampouco nas questões da prova; consequentemente, a autoria fica à margem das atividades escolares que têm a Provinha Brasil como referência do que deve ou não ser trabalhado no Ensino Fundamental.
Os nomes das autoras, bem como o nome da instituição onde estudam, serão omitidos para preservar o sigilo dos envolvidos na situação do estágio por elas realizado.