O filme, com sua leveza, seu lirismo composto por personagens jovens vivendo suas primeiras experiências amorosas em um ambiente bucólico e nostálgico pode sugerir tratar-se de uma produção do gênero “
No entanto, pretendemos verificar se outra leitura é possível. Uma análise mais detida parece nos indicar que, por trás de uma história aparentemente banal, esconde-se uma visão pessoal (pelo menos do narrador, já que não temos condições de provar as intenções do diretor) sobre alguns dilemas políticos de fundo vivenciados na França de Charles De Gaulle.
Existe no filme um embate claro entre as diferentes formações discursivas vigentes naquele período. Em Análise do Discurso Francesa (AD), que se diferencia da Análise do Discurso de tendência anglo- saxã por aquela julgar que o contexto ideológico no qual o discurso se estabelece é de suma importância para a formação de sentido (BRANDÃO, 2012, p. 14; CHARAUDEAU, 2006, p. 25; POSSENTI, 1992, p. 48), o conceito de formação discursiva assume posição central no debate. Uma formação discursiva é aquela em que se prescreve o que pode e o que não pode ser dito, conforme o contexto ideológico no qual o discurso está inserido (MAINGUENEAU, 1993). Por exemplo, em uma formação discursiva burguesa, é difícil encontrarmos uma defesa, a não ser na forma de contra-argumento ou como uma espécie de exceção à regra, de ideais distributivistas, com discriminação positiva, o caso das bolsas de fomento às classes trabalhadoras. Em contrapartida, do lado do discurso operário, é praticamente inviável a defesa do livre mercado sem a presença de um Estado forte que garanta que os mais fortes não dominem os mais fracos.
Conforme ainda Maingueneau, o embate entre duas formações discursivas antitéticas produz o fenômeno conhecido em Análise do Discurso como “relação polêmica”. Resta, assim, em cada formação discursiva, o pressuposto da invalidade da formação discursiva contraditória. Escreve Maingueneau:
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[...] em uma relação polêmica, cada uma das formações discursivas do espaço discursivo só pode traduzir como negativas, inaceitáveis, as unidades de sentido construídas por seu Outro, pois é através desta rejeição que cada uma define sua identidade. (MAINGUENEAU, 1993, p. 122).
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Passemos à análise do filme.
Percebemos uma tensão entre as “formações discursivas” burguesa e proletária na relação ambígua entre François e Serge. Não que o narrador se utilize de argumentos econômicos ou políticos para caracterizar os personagens. A diferenciação entre os dois é mais sutil, e envolve alguns clichês e estereótipos associados a cada tipo social.
A figura do burguês não pode ser identificada
O que observamos quanto à relação polêmica entre François e Serge é que a eles são atribuídas características marcadamente opostas. Podemos analisar essas oposições segundo os princípios do percurso gerativo de Greimas (1973), simplificado e adaptado por Lara (2013). De forma resumida, o sentido pode se dar a partir de um nível mais concreto (nível superficial) de significação rumo a outro mais abstrato (nível fundamental ou categoria semântica de base), tendo que passar por um nível intermediário (nível discursivo).
Em primeiro lugar, François é constantemente mostrado como intelectual em relação à estupidez de Serge. Logo no início do filme, no casamento de Pierre, irmão de Serge e soldado francês na Guerra da Argélia, François encontra-se com Maïté, que estava ali porque Pierre tinha sido aluno de sua mãe, Madame Alvarez. François e Maïté, eles mesmos em uma relação ambígua entre namoro e amizade, estão a debater sobre assuntos abstratos até que Serge se aproxima pedindo para dançar com Maïté. A recusa à solicitação de Serge marca o início da incomunicabilidade entre dois pólos. De um lado, Maïté, filha de professora, intelectual, feminista, e François, jovem burguês proveniente de uma escola católica particular de Lyon
Um outro ponto que distingue François e Serge é a doçura, a feminilidade, a fraqueza, o sedentarismo do primeiro, em contraposição à força, à virilidade, à consciência corporal do segundo. Há uma cena em que François e Mariani (do qual falaremos adiante) assistem a Serge praticando educação física enquanto ingerem alguns quitutes. O extrato abaixo traduz bem essas e outras oposições:
Fonte: LES ROSEAUX, 1994, tradução nossa
Como se vê, o representante dos destituídos de meios de produção é esboçado como aquele que não tem o dom da palavra, do argumento, do artifício retórico. Não é dado, pois, à política e aos afazeres públicos, nem à grande literatura. Em contrapartida, a afetação de François contribui para criar o clichê do ser sensível talentoso do ponto de vista da linguagem, mas pouco dado às entidades matemáticas, essas mais associadas à masculinidade de Serge.
Podemos resumir, então, algumas oposições extraídas da “interincompreensão constitutiva” (MAINGUENEAU, 1993) – ou seja, o caráter inerente a uma formação discursiva de não compreender aquela que lhe faz o contraponto – existente entre o discurso dos dois personagens do seguinte modo:
Fonte: elaboração do autor
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Fraco | Forte | |
Efeminado | Viril | |
Sedentário | Esportista | |
Tímido | Mulherengo | |
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Intelectual | Bestial |
Urbano | Rural | |
Habilidades linguísticas | Habilidades matemáticas | |
Moral católica | Moral da sobrevivência | |
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Formação discursiva burguesa | Formação discursiva proletária |
A relação polêmica entre François e Serge, no entanto, logo se mostra insustentável. Os dois opostos se interpenetram, literal e metaforicamente. François, ao descobrir sua homossexualidade, apresenta-se brutalizado, por exemplo no episódio em que resiste em discutir um filme com Maïté. Do outro lado, Serge passa por um processo de acabrunhamento e fragilização, principalmente depois da morte do irmão em decorrência de atentados terroristas da
Um outro par de oposições que se estabelece na narrativa é entre François e Mariani. Este último, assim como os outros, é também, no início do filme, um produto da determinação de seu meio. Ora, se François, filho de burgueses metropolitanos, é investido de características burguesas; se Serge, descendente de camponeses, incorpora alguns clichês referentes ao campesinato; e se Maïté – filha da independente Madame Alvarez, abandonada pelo marido por sua intransigência, uma intelectual chefe de uma sucursal do Partido Comunista francês – é também retratada feminista, Mariani segue a mesma sorte de sua ascendência. Filho de
A cena que mais define a relação polêmica entre François (burguês metropolitano) e Mariani (burguês colonial) é a cena na qual Madame Alvarez, ao entregar em sala de aula os resultados das redações dos alunos, menciona as duas exceções que não obtiveram média na prova, justamente François e Mariani. A tarefa consistia em dissertar sobre um poema à escolha do aluno para que ele pudesse fazer uma explicação mais livre e pessoal, o que fez com cada um pudesse expressar seu caráter pela metáfora de seu estilo literário.
François e Mariani não obtiveram a média não pela deficiência da escrita, mas porque ambos, digamos, apresentaram um
Fonte: elaboração do autor
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Individualista, afetado, maneirista, barroco, sentimental, etc. | Totalitário, fascista, racional, conciso, direto, objetivo, etc. |
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Burguês metropolitano | Burguês colonial ( |
Não obstante, o que antes parecia uma fronteira intransponível, de repente começa a ficar fluido. François interessa-se por Mariani, mesmo sexualmente. O desejo sexual, a libido, parece, tanto neste caso, quanto na relação com Serge, ser a faísca desencadeadora da desconstrução das barreiras societárias. A partir do momento em que François se interessa por Mariani, este começa a expor suas razões na narrativa. De vilão, Mariani passa a ser um humano que carrega o fardo de sua herança. François propõe o que seria impossível, que Mariani conhecesse a comunista Maïté. Vejamos como foi o encontro na próxima seção.
François tenta a todo custo convencer Maïté que Mariani não é o diabo. Curioso o uso frequente do verbo fascinar utilizado por François acerca da sensação que ele experimenta com Mariani. Essa é exatamente a função da estética totalitária, a de fascinar as massas com seus chavões e lugares comuns, daí as palavras fascínio e fascismo possuírem o mesmo radical.
Maïté é intransigente. Não admite a aproximação com Mariani. Diz a François que, quando se trata de política, é preciso escolher um lado, e o dela é o diametralmente oposto ao de Mariani:
Fonte: LES ROSEAUX, 1994, tradução nossa
Mariani, tendo completado sua maioridade, decide fugir do internato. À noite, ele encontra um cartaz do Partido Comunista dizendo “Abaixo a O.A.S”. Ele decide então se dirigir à sede do partido para queimar esse centro de irradiação antifascista. Lá encontrou Maïté, que, no meio da noite, estudava suas lições, angustiada que estava em casa sozinha por ocasião da hospitalização da mãe.
A última cena é a da união dos quatro jovens em uma espécie de jardim edênico. Era já verão e não queriam suportar a angústia da espera do resultado do
O primeiro traço em comum nos personagens que nos chama a atenção é a metamorfose desses seres. Afinal, o que teria levado o narrador a promover tamanha desconstrução de ideais, de princípios, o que o fez conduzir os personagens a tal confusão imaginária, à evaporação de seus valores?
De fato, o narrador não pinta como negativa ou essencialmente má nenhuma personalidade, nenhum tipo social, nenhuma ideologia. Ao contrário, são mostradas as diferentes facetas do humano em cada uma de suas perspectivas, com seus desejos, seus medos e anseios. A pulsão natural do indivíduo (a atração entre François e Serge, entre François e Mariani, entre Serge e Maïté, entre Maïté e Mariani) é elemento desencadeador de toda desagregação ideológica, do esfacelamento de limites e verdades. A natureza está no mundo, nua e crua, e resiste a qualquer idealismo. Não é sem razão que a cena final se passa em um bosque paradisíaco. O discurso fílmico é, portanto, marcado por aquilo que Bakhtin (1992) denominou de dialogismo constitutivo, e que Maingueneau (1993), na esteira de Authier-Revuz (1990) cunhou de heterogeneidade constitutiva do discurso, por comportar em sua gênese diversas vozes antitéticas.
Alguém poderia perguntar, mas essa visão individualista que vê na natureza do sujeito o foco de todo agir não guardaria consigo uma visão liberal de fundo? Não teríamos elementos, julgamos, para chegar a tal conclusão, até porque o elemento liberal, constituído pelo burguês metropolitano François, é desconstruído em seu discurso. E o seu contraponto, o “fascista” Mariani, é visto também em sua humanidade. Surge ainda outro problema. Se, dessa forma, a natureza é implacável diante dos desígnios humanos, então concebe-se aí uma visão “necessitarista” da realidade, já que os indivíduos estão fatalmente condicionados pelo meio. Nessa medida, o indivíduo não seria livre, não teria como se libertar dos grilhões do mundo necessário (que é e não pode deixar de ser) da natureza, não seria capaz de autoprojetar- se no futuro e construir um mundo contingente, possível, livre das determinações do ambiente. Essa, julgamos, é uma leitura precipitada, pois temos poucos elementos na narrativa que nos conduzem a essa significação. Os diferentes atores, apesar de atordoados em suas pequenas verdades, prosseguem o seu curso definido: Mariani parte para Marseille para defender os
amarras sociais.
No Brasil foi traduzido como Rosas Selvagens, e, em Portugal, como Juncos Silvestres. Roseau, na verdade, é uma espécie de gramínea que aparece na fábula de La Fontaine.
Na França, grande parte das escolas primárias, senão quase todas, são públicas. As instituições particulares de ensino geralmente são católicas, e estudar em uma delas é um sinal de verdadeiro elitismo no país.
Serge: Tu n’es pas marrant comme mec. Tu ne parles à personne (…). Tu es dans ton coin. On ne sait jamais ce que tu penses. Tu étais où avant?/François: À Lyons chez le Curie./S: Ça ne m’étonne pas. Ils font quoi tes parents?/F: Ils sont cultivateurs (…)./S: Tu es vraiment un mec fragile. C’est sûrement ça qui plaît Mlle Alvarez. Tu t’es vraiment couché avec elle?/F: (…) Ça ne te regarde pas./S: C’est ce qu’on dit quand on est puceau./(…) F: Et toi, tu t’es déjà couché avec une fille?
S: Pour moi, ce n’est pas pareille (…). Tu as vu? Où j’habite, c’est pommé. Puis en ville, je ne vais pas suivent./F: Je suis désolé, on ne peut pas être copain, on n’a pas les mêmes goûts./S: (…) Mais on peut se compléter. En Math, par exemple, je suis plus fort. Par rapport aux Français, c’est le contraire (…).
François: [à propos de Mariani] Au début je le trouvais un cons fasciste prétentieux. Avec son type parisien il jouait vraiment un rôle. Tu sais, le genre «Exilé chez Hicksville». Mais maintenant je parle avec lui, puis il me fascine. J’aimerais bien que tu le connaisses./Maïté: Non, arrête toute de suite, je ne veux pas le rencontrer. Salopard de l’O.A.S., merci je te le laisse./F: Ce n’est pas la peine d’être agressive./M: Si, c’est la peine. Il faut choisir son champ dans la vie. (…)/F: Arrête, il n’est pas le diable quand même./M: Non, ce n’est pas le diable, parce que le diable n’existe pas, mais les fascistes, ça existe et ça ne me fascine pas du tout./F: (…) Tu es comme ta mère. Tu es trop sectaire, tu ne peux pas le comprendre.
Não teremos espaço aqui para explorar a personalidade de Madame Alvarez, outra que vê suas verdades ruírem diante da complexidade do mundo real.