Muito se tem discutido sobre o papel das mídias na sociedade atual. Charaudeau, por exemplo, discorre sobre o tema no livro
Em trabalhos desenvolvidos mais recentemente (ver, por exemplo, Lara, 2013; 2014), assumimos que as mídias detêm uma considerável “margem de manobra”, ao selecionar a informação a ser veiculada – afinal, escolher anunciar uma notícia é fazê-la existir –, operando recortes nesse material (decidindo o que será ou não e[cluído, as “vozes” que serão agenciadas ou, ao contrário, silenciadas) e dando-lhe uma organização específica, entre outras possíveis. Preferimos ainda tomar “manipulação” mais no sentido que lhe atribui a Semiótica Discursiva
Ora, um dos recursos mobilizados pelas mídias para atrair (ou “manipular” em termos semióticos) o leitor/consumidor encontram- se as
Nesse sentido, levantamos a hipótese de que as aforizações podem funcionar como um
Ao abordar a destacabilidade, Maingueneau (2006) aponta, inicialmente, o grande número de enunciados que circulam na sociedade e que poderiam ser chamados, genericamente, de citações ou fórmulas. Esses enunciados destacados – que o autor passará a chamar de
No caso das mídias, não é possível determinar se essas “pequenas frases” são assim porque “os locutores de origem as quiseram [...] destacáveis, destinadas à retomada pelas mídias, ou se são os jornalistas que as dizem dessa forma para legitimar seu dizer” (Maingueneau, 2006: 80). Em outras palavras: nada impede que os profissionais das mídias convertam soberanamente em “pequenas frases”, graças a uma manipulação apropriada, quaisquer sequências de um texto, ou mesmo que as fabriquem, em função dos reempregos que delas serão feitos, tendo em vista o jogo de antecipações das modalidades de recepção (Maingueneau, 2006). Nesse caso, teremos aforizadores produzidos pelo próprio trabalho de citação (que, portanto, não coincidem com os locutores dos te[tos de origem).
Em suma, no entender do autor, a citação está inscrita no próprio funcionamento da máquina midiática, cujos atores gastam seu tempo destacando fragmentos de te[tos para convertê-los em citações (para títulos, intertítulos, entrevistas etc) e – acrescentamos – quando não os fabricam eles mesmos com o objetivo último de “captar” a atenção do leitor e garantir o consumo do produto (do serviço, da ideia), orientados pela lógica de mercado, em que os números de vendas e/ou de acessos (no caso da internet) respondem pelo sucesso da publicação.
Em linhas gerais, para Maingueneau (2012: 25), a aforização, sendo uma “frase sem texto”, remete a um tipo de enunciação que obedece a uma outra lógica, distinta da do texto. Do ponto de vista mais imediato, isso significa que ela não é nem precedida nem seguida de outras frases com as quais estaria ligada por relações de coesão, de modo a formar uma unidade te[tual, ancorada num gênero de discurso. Logo, o que caracteriza a aforização é a recusa em entrar na lógica do texto e do gênero de discurso, o que não significa, por outro lado, que ela seja destituída de contexto
Cabe ressaltar ainda que as aforizações secundárias podem ser de dois tipos: por destacamento
Sem a intenção de ser e[austivo, Maingueneau (2012: 58) lista alguns índices que orientam para um diagnóstico de aforização: índices textuais (preferência por enunciados constituídos de uma única frase); índices lexicais (presença de verbos como
Conceito oriundo da Semiótica Tensiva, como já foi dito, o
Com o propósito de deslindar essa noção tão rara quanto importante e de contrapô-la à noção de exercício (ou rotina)
Os modos de eficiência designam a maneira por meio da qual uma grandeza se instala num campo de presença. Se tal processo ocorrer segundo o desejo do sujeito, teremos a modalidade do
Quanto aos modos de e[istência, o par diretor é constituído pela alternância entre a
Finalmente, nos modos de junção, tomada aqui como a condição de coesão pela qual um dado é afirmado (e, portanto, de modo distinto da sua acepção usual na Semiótica
Como foi dito, na Introdução, o acontecimento representa a interseção do
Adaptado de: Zilberberg (2007: 25)
determinados → determinantes ↓ | rotina ↓ | acontecimento ↓ |
modo de eficiência → | conseguir | sobrevir |
modo de e[istência → | focalização | apreensão |
modo de junção → | implicação | concessão |
Teríamos, pois, duas grandes orientações discursivas: o discurso da rotina e o discurso do acontecimento, o que nos permitiria já uma primeira aproximação entre as noções de aforização e de acontecimento. Assim, se um enunciado é destacado de um te[to (ou se se simula fazê-lo), isso se dá, em geral, pela carga de impacto que ele carrega, ou seja, por um grau considerável de intensidade. Lembremos que o
Indo um pouco mais além, gostaríamos de defender a ideia de que as falsas aforizações que analisaremos adiante, fabricadas para constar em simulacros de capas de revista direcionadas ao público infanto-juvenil, investem, de forma mais intensa ainda, no discurso do acontecimento. Isso porque elas rompem, por completo, com as expectativas do leitor quanto às chamadas-título “rotineiras” de uma revista convencional, entrando de maneira inesperada, abrupta, no campo de presença do sujeito e apreendendo-o, mais do que sendo apreendida por ele. Assim, se as aforizações que comumente habitam as capas de revistas reais “transformam”, de certa forma, fatos em acontecimentos, atraindo o leitor para as reportagens anunciadas, isso é levado às últimas consequências quando se trata de aforizações “fabricadas” para, no mínimo, indignar o destinatário/leitor. É isso o que procuraremos mostrar na pró[ima seção.
Como adiantamos na seção anterior, tomaremos como objeto de análise as aforizações que constam de dois simulacros de capas de revista infanto-juvenil, publicadas na internet, mas que, na verdade, foram criadas pela
É importante observar que as duas falsas capas das também falsas revistas, batizadas de
Cabe esclarecer ainda que estamos tomando a noção de aforização em sentido mais amplo do que o faz Maingueneau em seus trabalhos, visto que, para ele, a aforização prototípica caracteriza-se, entre outros aspectos, por ser uma citação em estilo direto, o que não ocorre nos enunciados destacados (aforizações) dos simulacros de capa que e[aminaremos a seguir. No entanto, ao afirmar que a aforização pura não existe e que ela sofre coerções pelo seu pertencimento a um dado tipo, o próprio autor nos dá respaldo (já que o risco é nosso) para abordar as chamadas-títulos das (falsas) capas como aforizações. Vejamos, então, as duas capas
Algumas aforizações, tomadas aleatoriamente na primeira capa, são as seguintes:
- Esconda aquelas escoriações com 35 truques fáceis de maquiagem
- O A a Z do caminho: nosso guia essencial para a vida no inferno.
- As chocantes histórias reais de vida em que você não acreditará,
nem a polícia
No caso da segunda capa, que vem sinalizada como “Edição do Yemen” (o que é compatível com o tipo de vestido de noiva que a “modelo” veste), teríamos aforizações, também tomadas aleatoriamente, como estas:
- 583 histórias de estupro, ataques com ácido e rapto.
- Qual é a idade dele? 60? 70? E outras perguntas que não devem ser feitas.
- Deslumbrantes vestidos de noiva: agora para idades de 7 a 12 anos.
- Segredos de e[ercícios: você pode entrar em forma para dar à luz aos 14!
- O dia em que seus sonhos acabam.
Salvo pelo olhar triste das duas meninas, o que contrasta vivamente com capas de revistas reais para o público infanto-juvenil, em que as modelos, em geral, apresentam-se sorridentes, manifestando “pai[ões” como ânimo e alegria (ver, por e[emplo, as revistas brasileiras
A simples comparação com as chamadas-título das revistas
- Pareça linda todo o verão.
- Roupas bacanas, maquiagem bonita & bijuteria divertida.
- Viva seus sonhos! (
- Seu melhor penteado em tempo para o casamento.
- Novos vestidos surpreendentes. Encontre o seu entre eles.
- 735 ideias criativas: bolos, convidados, flores & mais.
Contrariamente aos enunciados destacados da
Diante disso, podemos dizer que o objeto “capa de revista” (com suas aforizações, que funcionariam como chamadas-títulos para as pretensas reportagens das revistas
Diferentemente da
Instaura-se, desse modo, a
Ao romper com os cânones de uma revista convencional e, portanto, com o contrato de leitura (estabilizado na rotina do sujeito), a capa e “suas” aforizações tornam-se um “objeto” que entra de maneira inesperada no campo de presença do internauta/leitor, que, sendo apreendido pelo inusitado da situação, vê romperem, por completo, seus cálculos e suas e[pectativas quanto ao que seria uma capa de revista infanto-juvenil
Nesse sentido, considerando que intensidade e extensidade são os eixos centrais da tensividade, poderíamos nos perguntar se a aforização não é, afinal, um todo de sentido compacto e tônico, ou seja, pouco extenso (em termos de espacialidade) e muito intenso (em termos de impacto da informação), sobretudo quando se quer chamar a atenção do destinatário sobre um assunto tão sério e delicado.
A campanha de conscientização reproduzida nessas capas “manipula”, assim, via aforizações, o leitor, tornando-o também responsável por aquilo que denuncia e levando-o a um fazer: ainda que seja simplesmente o de indignar-se com as situações retratadas.
CHARAUDEAU, Patrick.
KRIEG-PLANQUE, Alice.
LARA, Glaucia M. P.
LARA, Glaucia M. P.
MAINGUENEAU, Dominique.
_____
_____
ZILBERBERG, Claude.
Recebido em 14/11/2014 e Aceito em 07/03/2015.
Maingueneau (2004: 202) prefere dizer que seus trabalhos se inserem no âmbito das “tendências francesas de análise do discurso”, que, para ele, caracterizam-se, entre outros aspectos, por se preocuparem não apenas com a função discursiva das unidades, mas também com suas propriedades como unidades da língua e por refletirem sobre os modos de inscrição do Sujeito em seu discurso, mantendo, nesse sentido, uma relação privilegiada com as teorias da enunciação linguística. Por comodidade, manteremos a sigla AD para tratar da aforização.
Outros autores têm-se voltado para o estudo da “pequena frase”. É o caso de Krieg-Planque (2003) com suas “fórmulas discursivas”. No presente artigo, no entanto, por limitações de espaço, vamos nos ater às contribuições de Maingueneau.
É preciso que fique claro que não há, na Semiótica Tensiva, um rompimento com as concepções propostas pela semiótica de primeira geração (aqui chamada
Para justificar o uso desse termo, Maingueneau (2012) admite ter-se inspirado no uso contemporâneo para o qual a noção de
Porém tal “conte[tualização” é diferente segundo se trate de uma aforização primária (autônoma) ou de uma aforização secundária (destacada de um te[to). Esse segundo tipo de aforização é, de fato, tomado em dois contextos efetivos: um contexto fonte e um contexto de recepção, sendo a distância entre esses dois conte[tos responsável, via de regra, pelas alterações a que o conte[to de recepção submeteria o enunciado destacado, ativando, inclusive, potencialidades semânticas outras, para além daquelas presentes no conte[to original (Maingueneau, 2012: 25-27).
Zilberberg (2007) prefere o termo “e[ercício”, que toma emprestado das análises da pintura holandesa de Claudel. De nossa parte, preferimos “rotina”, termo que usaremos doravante, já que, a nosso ver, ele se enquadra melhor na definição proposta.
A presente e[posição acerca dos modos de eficiência, de e[istência e de junção baseia-se em Zilberberg (2007). Dados os limites de um artigo, não nos deteremos muito na caracterização desses modos, remetendo o leitor interessado ao referido te[to de Zilberberg (ver referências completas no final).
Segundo informações da
Disponíveis em:
Tradução livre de:
Tradução livre de:
Disponíveis em:
Tradução livre de:
Tradução livre de:
Uma lista, divulgada pela Anistia Internacional em março de 2006, incluía 36 países cujas leis discriminavam as mulheres, como a Arábia Saudita, que não permite que as pessoas do se[o feminino votem, ou a Nigéria, onde a violência doméstica fica impune. Informações disponíveis em: