Revista da AbralinRevista da Abralin2178-7603Associação Brasileira de LinguísticaTipo de contribuiçãoDISCURSO E WEB: AS MÚLTIPLAS FACES DO FACEBOOKEmediatoWanderBaronasRoberto LeiserWachowiczTereza CristinaPaganiLuiz ArthurUniversidade Federal de Minas Gerais - (UFMG)Universidade Federal de São CarlosUniversidade Federal do Paraná142171192171-192http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
As redes sociais possibilitam uma livre propagação do discurso por meio de um espaço aparentemente democrático. O facebook, em particular, se apresenta como uma rede de complexa circulação do discurso, comportando uma variada cadeia enunciativa, que admite desde a exposição de orientações políticas e ideológicas à exibição do próprio corpo. Considerando, por um lado, o espectro de abrangência das redes sociais e, por outro, o desenvolvimento ainda tímido de estudos a seu respeito, este trabalho procura contribuir com a necessária reÁexão a propósito do tema, mobilizando as vastas possibilidades de pesquisas acerca do discurso para se abordar as particularidades do facebook.
Abstract
Social networks enable free dissipation of discourse through an apparently democratic space. Facebook, in particular, presents itself as a complex web of discourse circulation, supporting a varied enunciating chain that allows from the exposure of political and ideological inclinations to the exhibition of its own body. Considering, on the one hand the broad spectrum of social networks and, on the other hand, the timid developing of studies on this subject, this paper seeks to contribute with the necessary reÁection regarding this subject, mobilizing the vast possibilities of research within discourse to approach the particularities of Facebook.
DiscourseWebFacebookIntrodução
Se a cultura humana se encontra atravessada pelo logos de tal forma que podemos, na linha proposta por Danblon (2013), falar de um Homo rhetoricus como “modelo da razão humana”, o mundo contemporâneo coloca a disposição dos usuários da internet dispositivos e espaços jamais concebidos para a expressão dessa natureza retórica do homem. A internet, e em especial, as redes sociais, parecem se abrir a todos os aspectos da expressão humana, em diferentes códigos semiológicos, permitindo tanto aos cidadãos comuns, como aos “mais sábios dos homens”, para retomar expressão antiga de Aristóteles, tomar a palavra, sem pedir permissão, nesta ágora cibernética de retórica virtual. Para Danblon, “... a retórica é antes de tudo uma faculdade que coloca em ação as múltiplas facetas da razão humana.” (DANBLON, 2013, p. 9). E são justamente essas facetas múltiplas da razão humana que buscamos identificar nessa rede social cujas extensões e limites já se tornam opacos. O que é uma rede social? É, essencialmente, uma rede de discursos,
um espaço retórico por natureza. Como rede de discursos, não se faz nada em uma rede social, no sentido estrito do verbo “fazer”. Mas no sentido pragmático, se faz muita coisa em uma rede social, como o facebook, por exemplo. A palavra se faz ação, efetivamente. Podemos encontrar, nessa rede, tudo que poderíamos supor no universo de discursos e nos espaços discursivos. Múltiplas formações discursivas, relações interdiscursivas dinâmicas, diferentes gêneros do discurso, e o dialogismo em todos os seus estados. Está tudo ali. Portanto, como questão central desta análise, as redes sociais, e em especial o facebook, constituem um vasto canteiro para pesquisas sobre o Discurso, espaço ainda pouco explorado.
O facebook tornou-se um espaço surpreendente de circulação de falas, uma vasta e complexa cadeia enunciativa que coloca em cena um dialogismo sem igual. Nesse espaço, os locutores assumem as mais diversas posições enunciativas e papéis comunicacionais, da self-exposição pura e simples do rosto ou do corpo, à exibição de posicionamentos políticos e ideológicos que dialogam em uma luta discursiva que se estende em diversos campos de práticas sociais.
1. Questões preliminares
Vamos tocar algumas questões, bem preliminares ainda, sobre o facebook, mais para levantar problemas neste canteiro do que efetivamente apresentar dados de uma investigação. Uma das características do facebook e da internet em geral é a interação entre códigos semiológicos, em especial, a verbo-visualidade. Raramente um post no facebook vem sem um suporte visual, que pode ser produzido pelo próprio sujeito ou pela captação de imagens na própria rede ou outros suportes, o que implica um trabalho importante de busca ou por via do compartilhamento comentado. A verbo-visualidade é, assim, um aspecto constitutivo do dispositivo de uma rede social eletrônica. Outro aspecto determinante do dispositivo é a presença de modalidades técnicas de interatividade, pois toda rede social eletrônica procura reconstituir o dialogismo interlocutivo e aproximar-se o máximo possível das formas dialogais, estimulando a cotemporalidade no processo de enunciação de forma a suprir a falta da copresença espacial.
No caso do facebook, as modalidades técnicas de interatividade e de enunciação são constituídas por quatro formas essenciais: publicação, curtição, comentário e compartilhamento. Cada uma dessas ações, que tomaremos aqui como atos de linguagem, possui uma visada distinta e produz consequências diversas, cuja complexidade não deve ser subestimada.
Outro aspecto que me parece constitutivo diz respeito à organização interacional, ou conversacional, do facebook. Ora, ela é claramente dialogal e toma a forma de um diálogo convencional, com um locutor (L1) se dirigindo a um segundo locutor (L2), na forma clássica Locutor e Alocutário. Ora, ela pode ser considerada como um trílogo (KERBRAT- ORECCHIONI, 1995), assumindo uma forma mais complexa, com um locutor (L1) se dirigindo a um segundo locutor (L2), mas tendo sempre em vista um destinatário indireto (L3), de natureza coletiva, representado pelo “grupo de amigos” da rede. Este destinatário coletivo é, de modo geral, aquele a quem se envia uma publicação e, nesse caso inicial, ele é o L2. Em seguida, se a publicação é curtida por algum amigo, ela o é individualmente, e a curtição representa, em geral, uma apreciação implícita de cunho eletrônico, ou seja, trata-se de um sinal eletrônico que significa, em geral, um ato apreciativo positivo, mas não-verbal. A curtição pode ser entendida como um ato kinésico, ou gestual. A publicação pode ter também como resposta um comentário, nesse caso verbal, e mais complexo, pois pode ser uma apreciação positiva, negativa, ou um julgamento axiológico, uma concordância ou uma discordância, conforme o caso. É justamente o comentário que abre a possibilidade de constituição de um trílogo, pois o comentário pode gerar uma reação de L1 que, ao responder ao comentário de L2, se dirige também, indiretamente, a L3, o destinatário coletivo da rede, que tem acesso à conversação e pode, inclusive, reagir, mas sempre individualmente. O destinatário coletivo é, portanto, sempre virtual e indireto. Cada reação individual por ato de comentário tem sempre o destinatário coletivo como destinatário indireto, e algum locutor individual anterior como destinatário direto. O trílogo pode ser considerado, portanto, uma forma essencial da interação em uma rede social.
Resta falarmos um pouco do compartilhamento. Como a ação de curtir, trata-se de um sinal eletrônico que pode estar, ou não, precedido ou seguido de um comentário. E como a ação de curtir, o compartilhamento expressa uma apreciação positiva, já que compartilhar é amplificar a divulgação da publicação inicial, é irradiá-la. O que tem de especial no compartilhamento é que se trata de uma adesão mais intensa, já que, além de expressar concordância com a publicação, o interlocutor se associa, ou seja, adere, à publicação e tem interesse particular em amplificar a sua divulgação. Temos, aqui, o aspecto viral da rede que a aproxima do marketing publicitário ou político. Em termos retóricos, tem-se acesso, pelas ações de compartilhamento, ao problema da intensidade de adesão do auditório (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1958), mais importante, em termos de grau, a uma adesão pura e simples expressa pelo ato de curtir.
2. Aspectos enunciativos do facebook: diferentes atitudes, mas complementares entre si.
No nível enunciativo, podemos encontrar discursos sobre si mesmo, discursos dirigidos ao outro e discursos sobre o mundo, compondo, portanto, todas as modalidades enunciativas dos discursos ordinários: a modalidade subjetiva (afetiva, axiológica), a modalidade intersubjetiva (injuntiva, interpelativa) e a modalidade objetiva (deôntica, alética, epistêmica). Para tratar dessas diferentes atitudes enunciativas e associá- las às suas visadas, ou finalidades pragmáticas, vamos propor defini-las como atitudes egocentradas, alocentradas e heterocentradas.
As atitudes egocentradas são aquelas voltadas para a exibição de si no sentido mais estrito, ou seja, exibição do corpo, do rosto, do espaço privado do sujeito (seu quarto, seus objetos pessoais) e também de sua família ou entes próximos (namorado, esposa, amigo íntimo, etc.). Na atitude egocentrada o espaço e as pessoas ocupam uma função proxêmica em referência ao “eu”: a família e os amigos, bem como os objetos pessoais, os espaços (o quarto, o banheiro, etc.) têm como referência o eu e constituem símbolos que refletem e refratam o sujeito metonimicamente. Sua finalidade (visada) pragmática é “e[ibir-se” ou “mostrar-se”, isto é, uma finalidade de “egomostração”. Como se trata de uma egomostração dirigida ao outro, espera-se do outro uma atitude responsiva apreciativa.
As atitudes alocentradas estão voltadas para o tu (geralmente coletivo e indeterminado) e o sujeito toma o tu como referência para a sua finalidade (visada) pragmática diretiva de fazer-fazer. Como se trata de um tu coletivo e indeterminado, a visada diretiva está geralmente representada por solicitações de compartilhamento de publicações, de implicar o outro em uma atitude de adesão e de aliança na forma de uma ação (Compartilhe! Espalhe isso para todo mundo! Repasse a seus amigos!)
As atitudes heterocentradas têm como referência o mundo e os discursos dos outros, portanto, os objetos mais heterogêneos que circulam nos espaços sociais. E é por via dessa atitude que o sujeito exibe sua competência axiológica, suas formações discursivas e ideológicas, seus posicionamentos sobre temas e aspectos da realidade social, política, cultural, econômica, religiosa, mundana, etc.
Mas não seria um exagero afirmar que todas essas atitudes estão, em última instância, voltadas para a afirmação e a exibição de si mesmo como sujeito, ou seja, para a construção de uma imagem de si (o ethos do usuário da rede), o que tornaria dominante a atitude egocentrada. Se assim for, todas as faces do face estarão, em certo sentido, voltadas para o self e não apenas a face self propriamente dita, aquela que se autoexibe sem complexos. A finalidade principal de um sujeito-usuário do facebook seria, portanto, exibir-se, mostrando o seu corpo, o seu rosto, o seu pensamento, a posição que ocupa na topografia social em todos os seus sentidos (econômico, privado, familiar, religioso, político, ideológico), etc. Por outro lado, não seria também exagero supor que as atitudes heterocentradas (falar do mundo e dos outros) serviriam a uma visada alocentrada (influenciar o outro, agir sobre suas crenças) e que também as atitudes egocentradas (a egomostração) poderiam servir a uma visada alocentrada (seduzir o outro).
3. A face self: olhando para o espelho
Essa face mostra que é o espelho – ou o olhar do outro – que se quer interpelar ao se mostrar no facebook, materializando em nossa realidade virtual a experiência interrogativa fabular do espelho responsivo (espelho, espelho meu...). Como esta publicação abaixo, que tomamos a precaução de tornar anônima:
FIGURA 1: Olhando para o espelho
Esse trabalho de exibição explícita de si mesmo, atitude de egomostração, espera do outro uma resposta, seja através da curtição, ação de curtir, seja através de um comentário apreciativo, ação de comentar. Não é equivalente ao que Erving Goffman chamou de apresentação de si ou de trabalho de face, pois não se trata, aqui, apenas de construir uma face positiva (ou negativa) de si indispensável à regulação da interação social. A ação de egomostração no facebook é uma exibição de si que deseja incitar o alocutário a mobilizar um ato enunciativo na modalidade subjetiva afetiva. Possui, portanto, um conteúdo e uma visada emocional. Exibir-se para ser apreciado. É um ato não axiológico, ou seja, não se espera que o alocutário julgue o sujeito da egomostração, apenas que o aprecie afetivamente. Também não é um ato para ser compartilhado para outros. Por estar em uma esfera privada, embora aberta à apreciação afetiva dos amigos da rede, não supõe o compartilhamento, que daria à esfera privada uma dimensão externa. A face self não é apropriada ao fenômeno da dupla enunciação, foi feita para ser apreciada em comentários individuais do grupo de amigos, mas não se espera que ela seja publicizada por terceiros. Nesse sentido, a face self é paradoxal: o sujeito torna a sua imagem pública para o seu grupo de amigos e espera que cada um, individualmente, aprecie a imagem publicada. Porém, é incomum e inesperado que os “amigos” passem a compartilhar a sua imagem a terceiros. O compartilhamento de selfs é raro.
4. A face self e o eu autobiográfico: os traços identitários e a personalidade do sujeito
Temos aqui uma dinâmica complexa que pode ser analisada como uma mise en scène du moi (AMOSSY, 2010), resultado de múltiplas manifestações do ethos. O essencial, como estima a autora supracitada, “é ver como aquele que toma a palavra [...] efetua ipso facto uma mise en scène de sua pessoa mais ou menos programada, e como ele utiliza recursos da linguagem em objetivos comunicativos diversos (...)” (AMOSSY, 2010, p. 7, Tradução nossa). Traços importantes da identidade e da personalidade do sujeito podem ser recuperados nesse trabalho de encenação de si, seja pela reconstituição de sua egomostração, seja por via de seus comentários heterocentrados ou mesmo por suas atitudes interpelativas, ou seja, pelas atitudes alocentradas. Propomos considerar, em uma análise estendida, uma tipologia de níveis de exposição da identidade que vão compondo a personalidade do sujeito no facebook:
a) – identidade genética – uma fotografia postada no facebook do rosto e do corpo da pessoa e[põe, de imediato, sua aparência genética, ou seu biotipo singular: moreno (a), loiro (a), negro (a), magro (a), gordo (a), homem, mulher, etc.
b) – identidade linguística: mostrada pelos modos de falar do sujeito na rede (seu idioleto singular, suas gírias, seu apego à norma “culta” ou “coloquial”, suas competências linguísticas diversas), também se mostra por seus comentários e críticas que faz sobre o falar do outro (seus preconceitos linguísticos).
c) – identidade estética: perceptível ainda pela fotografia publicada, a estética do sujeito é objeto de julgamento do outro, como bonito, feio, simpático, bem cuidado, penteado, despenteado, bem vestido, mal vestido, elegante, deselegante, formal, informal, segundo os imaginários estéticos do grupo social, etc.
d) – identidade emocional: perceptível por algum traço intencional da fotografia, quando ela e[pressa um estado emocional do sujeito (alegria, raiva, indignação, seriedade, tristeza, etc.) constituindo traços de seu temperamento.
e) – identidade ética: perceptível em várias ações do sujeito no facebook, como nos comentários feitos, nas imagens que publica e compartilha, nas suas curtições, quando essas ações denotam um investimento subjetivo a[iológico qualquer, ou seja, ações e atitudes que colocam em evidência a competência axiológica do sujeito.
f) – identidade hedônica: diz respeito ao que é mostrado pelo sujeito como objeto de prazer ou desprazer, no que considera agradável ou desagradável, perceptível em diferentes posts, como lugares que gosta de frequentar (ambientes, espaços, cidades, viagens.), seus hábitos de consumo (comidas, cosméticos, restaurantes, roupas, bebidas...), etc.
g) – identidade pragmática: podendo estar associada a aspectos da identidade hedônica, como hábitos de consumo e preferências do sujeito, pode também ser especificada por suas decisões diversas, seja no campo econômico, político, de consumo, etc., mas que colocam em evidência uma hierarquia de valores para a tomada de decisão (+ útil, + inútil).
h) – identidade intelectual: identidade que marca o sujeito em termos de seus saberes de conhecimento. Diz respeito principalmente às competências enciclopédicas mostradas pelo sujeito em seus comentários, seus aconselhamentos, seus compartilhamentos, suas indicações e listas de livros (a página do facebook possui, inclusive, um espaço específico para isso: livros que leu, filmes que assistiu, etc.).
i) – identidade cultural: este componente pode ser também resultante de um conjunto de outros tipos identitários (intelectual, pragmático, hedônico), mas se mostra também pela associação do sujeito a práticas culturais de um coletivo, como suas preferências musicais, teatrais, cinematográficas, comunitárias e grupais, etc.
j) – identidade social: diz respeito ao pertencimento do sujeito a uma classe social, seu padrão de vida, seu grupo (jovem, idoso, feminino, masculino), seu perfil socioprofissional, traços exibidos na rede por fotos de sua casa, dos lugares que frequenta, de sua profissão, seu lugar de trabalho, sua família, seu grupo de amigos, etc.
k)-identidade religiosa: exibida explicitamente pelo sujeito (sou católico, evangélico, etc.) ou por suas ações de comentário e de compartilhamento (de salmos, passagens bíblicas e outros textos religiosos, de imagens de santos, apóstolos e membros da igreja, de símbolos religosos, etc.).
Essa tipologia pode ser, é claro, complementada, mas constitui um conjunto de parâmetros identitários que vai sendo exibido pelo sujeito em sua egomostração na rede. Não é difícil perceber que a exibição dos traços identitários diversos do sujeito constitui também um campo importante de prospecção para todo tipo de marketing (publicitário, comercial, político, religioso, etc.), com informações e[ibidas pelos próprios usuários em caráter praticamente permanente na rede.
Uma questão relevante para os analistas de discurso e outros estudiosos da linguagem sobre esse campo complexo de autoexposição identitária é a construção no espaço da rede de suas narrativas autobiográficas, pois se tem acesso, numa perspectiva temporal, à vida pessoal do sujeito em suas diferentes dimensões. A dificuldade metodológica, é claro, consiste na privacidade dessas informações, que ficam reservadas aos “amigos”. Mas é possível já prever, em um futuro próximo, a importância dessas fontes para a elaboração de trabalhos biográficos, sociológicos ou de estudo das mentalidades.
5. A face argumentativa – erística x heurística
O facebook é, cada vez mais, um espaço de debate e discussão e não só de exibição de si. O espaço público invadiu o facebook, acirrando uma concorrência intensa pelo controle da conformidade social, política e ideológica. Fazer política no e pelo facebook tornou-se indispensável. Além da e[posição pura e simples de comentários políticos, de opiniões sobre os fatos sociais e da exibição crítica de posicionamentos, o usuário também faz circular, através do compartilhamento, diferentes materiais provenientes de outras fontes, sobretudo as jornalísticas, ou produzidos pelas mídias independentes (Mídia Ninja, TV Revolta, etc.). Se, de um lado, as argumentações jornalísticas e políticas se submetem a diferentes princípios de regulação, dos deontológicos e éticos aos jurídicos, as argumentações e os atos de destacamentos e de aforização (MAINGUENEAU, 2012) nas redes sociais, em geral, se submetem apenas à ética pessoal, quando o fazem, pois há ainda pouca regulamentação jurídica nesse campo, o que favorece a liberdade de expressão e a violação sistemática das regras da discussão heurística. Isso se torna evidente nas tendências argumentativas erísticas e falaciosas, bem como nas duplas enunciações manipuladoras do discurso de origem.
A rede permite ao cidadão comum não só se manifestar, mas também de assumir papéis diferentes que geralmente só seriam possíveis pela ocupação de algum poder institucional. O papel de jornalista, de crítico social, de analista político, de aforista, de chargista, de humorista, etc. Isso faz com que essa face argumentativa do facebook seja mais aberta aos avatares de todo tipo, a modos diversos de manifestação textuais de gêneros, às cópias e manipulações de material semiótico, imitações, simulacros, paródias e pastiches, retomadas de discursos que passam a circular na rede com finalidades pragmáticas bem diferentes e distantes das finalidades pragmáticas dos discursos originais.
Nessas ações de retomada de discursos, seja por via do destacamento e da citação, seja por meio de paródias, pastiches, ilustrações e outras imitações, surgem enunciações em que o locutor-usuário se encena de diversas formas, ora como agente de um destacamento, ora como artista, jornalista, moralista, etc. Essas encenações do sujeito, como propõe Maingueneau (2012) para essas enunciações, afirmam convicções, se apresentam como enunciados de verdade, como apreciações estéticas, éticas e morais, bem como hedônicas. Enunciados, portanto, ricos de sentido, de implícitos e de efeitos contextuais dos mais diversos. Se o facebook se torna então o espaço das versões avatares dos sujeitos, ora criadas por outros, ora pelo próprio sujeito-usuário, ele constitui um canteiro único para a análise das subjetividades e das transformações parafrásticas. O material abaixo, publicado no facebook e objeto de milhares de compartilhamentos, é um exemplo desse uso “manipulador” do destacamento:
FIGURA 2: presidenta Dilma Rousseff.
Ocorrências como essas, comuns no facebook, representam o que Maingueneau (2012) chama de destacamentos fortes: o texto fonte não se encontra acessível, a não ser por um processo de busca em diferentes suportes. No caso acima, o locutor que agencia o destacamento não se contentou em destacar as palavras efetivas de Dilma Roussef em um discurso por ela proferido no nordeste, mas em interpretá-las e utilizá-las em uma nova finalidade pragmática. Ele suprimiu parte de seu enunciado e foi além: adicionou conteúdo no interior das aspas, atribuindo ao locutor de origem a responsabilidade por palavras não pronunciadas, com o objetivo claro de alterar a finalidade pragmática da enunciação original. As palavras exatas da presidente, conforme o jornal Folha de SP, foram as seguintes:
“Temos que mostrar que o Brasil é um país de gente civilizada, educada e gentil. Porque o turista não vai levar daqui os aeroportos, as obras de mobilidade urbana e os estádios. O que o turista vai levar daqui é a sensação de que foi bem recebido durante a copa. Por isso, peço que vocês recebam bem os turistas.” (fonte: Folha de SP, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ poder/2014/05/1455761-dilma-pede-que-brasileiro- seja-gentil-e-civilizado-na-copa.shtml).
Se podemos dizer que o conteúdo da fala de Dilma Roussef expressa um pedido aos brasileiros para que recebam bem os turistas e sejam gentis, no enunciado destacado para circular na rede o objetivo não é mais “pedir” aos brasileiros, mas qualificar a fala da presidente como uma ofensa aos nordestinos. Ao especificar o auditório (nordestino) e adicionar o conteúdo “....e que não sujem as ruas e os estádios da copa”, palavras ausentes na enunciação original, os efeitos contextuais do destacamento realizado se tornam bem mais complexos e servem para desqualificar o locutor original e ofender o auditório nordestino. A força argumentativa desses destacamentos está nos efeitos de sentido que criam, inclusive em seus efeitos perlocucionários (indignação, ódio, repulsa, riso). Além disso, o destacamento, neste caso, torna o locutor de origem um sobreasseverador involuntário de um enunciado que ele não pronunciou como tal (MAINGUENEAU, 2012) e cujo sentido ele não assumiria, tampouco os seus efeitos contextuais ou perlocucionários. Uma transformação como essa, se publicada em um destacamento por qualquer jornal de referência, seria objeto de reação e até mesmo de procedimentos jurídicos.
O fenômeno evocado por Maingueneau (2014) da irradiação também se mostra nas redes como de grande relevância. De um lado, o poder de irradiação já é previsto no próprio dispositivo da rede pela ação de compartilhamento. Cada compartilhamento, além de irradiar conteúdos, pode transformar as versões originais e inseri-las em um novo gênero, em outra finalidade pragmática ou em outra perspectiva de problematização. O poder de irradiação das redes equivale ao do marketing viral na internet que, por sinal, já se encontra presente também no facebook, pois as preferências de consumo do usuário já são codificadas pelas suas práticas de navegação e passam a se vincular a sua página na rede social.
6. Coenunciação, sobreenunciação e subenunciação na rede
O poder, de um lado, é uma energia que liga os indivíduos/sujeitos em suas relações de interação. O estatuto jurídico que liga os sujeitos por um contrato de comunicação (CHARAUDEAU, 1984) e que dispõe sobre seus interesses, direitos e deveres na comunicação coloca em evidência essa energia que regula toda interação. De outro lado, há o poder do dispositivo web e da força que ele imprime nas condições de produção e de enunciação na rede. De outro lado, há o poder enunciativo, que se representa pelas atitudes assumidas pelos sujeitos (locutores/ enunciadores) e o modo como eles gerem os pontos de vista no discurso e nos textos (RABATEL, 2005b). Ora, os locutores submetem as suas enunciações às enunciações de outrem, tornando-se subenunciadores por via da dupla enunciação, ora se assumem como enunciadores autônomos, submetendo a enunciação de outrem a seu próprio ponto de vista, tornando-se, assim, sobreenunciadores, seja através de uma enunciação autônoma, seja por via de uma dupla enunciação através da qual ele comenta e interpreta pontos de vista de outro locutor.
A perspectiva de análise do processo de enunciação na rede social como uma gestão interacional de pontos de vista é rica de consequências. Desde a curtição, que faz surgir um subenunciador que se limita a “curtir” e, portanto, validar o ponto de vista do locutor (L1), ao compartilhamento, que também põe em cena um subenunciador que distribui e divulga o ponto de vista de um locutor-fonte que, por isso, surge como sobreenunciador a serviço do qual se colocam os outros locutores-enunciadores na rede. Essa perspectiva coloca em evidência um poder importante que se instaura na rede entre sobreenunciadores, subenunciadores e coenunciadores.
Nas ações de destacamento (discurso citado) ou no discurso relatado em modalidade não citada (integrada ou narrativizada), o locutor se faz, em geral, sobreenunciador, já que ele enuncia seu ponto de vista sobre o ponto de vista do locutor-fonte e torna seu ponto de vista preponderante e equivalente à afirmação de uma verdade. Ao emitir julgamentos implícitos sobre o ponto de vista do locutor-fonte, ela também “apaga” o ponto de vista da fonte, o seu querer-dizer pode ser distorcido, bem como sua finalidade pragmática em proveito do querer-dizer e da nova finalidade pragmática do locutor-citante. Isso ocorre desde o processo de descontextualização que o discurso relatado faz da enunciação de origem, ampliado pela inserção de um novo ponto de vista que passa pela alteração sintática, pela adição ou supressão de trechos do discurso original, pela utilização de verbos de atitude, etc. Assim, o ponto de vista do locutor citante se torna dominante em relação do ponto de vista do locutor citado.
De outro lado, os subenunciadores surgem também de maneira abundante nas redes sociais, seja pelos compartilhamentos não comentados e pelas curtições, como já afirmamos, seja por enunciações nas quais se pode notar facilmente que os pontos de vista do sujeito- usuário estão dominados por pontos de vista circulantes na rede. Os sujeitos-usuários atuam, nesses casos, como replicadores de pontos de vista que assumem como seus, geralmente sem comentar. Não se trata de uma coenunciação, já que o sujeito-usuário, nesses casos, não complementa o ponto de vista, ou seja, ela não colabora para a constituição do ponto de vista, o que implicaria um ponto de vista mais crítico. Na subenunciação, o sujeito-usuário não tem exatamente um ponto de vista próprio, pois ele se submete ao ponto de vista do outro, que o assujeita. De maneira geral, o ponto de vista do sujeito- usuário se apaga na subenunciação, deixando “falar” o ponto de vista de um sobreenunciador. Os casos mais claros de subenunciação na rede são as publicações de aforismas primários, de salmos religiosos, de propagandas políticas, publicidades e de publicações de outros usuários que são simplesmente compartilhadas ou curtidas.
7. A face midiática do facebook:
O facebook vem se constituindo como um espaço importante de mídias independentes e de páginas especializadas de grupos profissionais, acadêmicos, literários e artísticos. Nesse sentido, vem sendo um concorrente dos blogs. Aliás, muitas páginas pessoais do facebook têm uma configuração muito próxima dos blogs, com objetivos específicos e mais amplos do que uma página pessoal de caráter privado. O caráter público é saliente, como pode ser facilmente notado em páginas de políticos profissionais, partidos políticos, associações, empresas, etc. No caso da mídia, vale ressaltar a participação cada vez mais forte das chamadas “mídias independentes”, além, é claro, das mídias tradicionais de referência que também hospedam páginas no facebook, além de permitiram e estimularem, através de suas versões eletrônicas, que os leitores compartilhem suas matérias e reportagens. Muitos leitores declaram que buscam informações diretamente nas redes sociais, o que modifica substancialmente os modos de leitura e de recepção da informação jornalística, bem como suas condições de produção.
O discurso das chamadas mídias independentes difere substancialmente do das mídias de referência em vários aspectos, como a relação com as fontes, os modos de busca e tratamento dos fatos, os posicionamentos, a deontologia, a linguagem e, é claro, a busca pela criação de um dispositivo técnico e enunciativo que promova a interatividade e a participação mais ativa do leitor. Entre estas mídias, se encontra o Mídia Ninja, sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação (https://pt-br.facebook.com/midiaNINJA). Segundo os próprios autores, o Mídia Ninja se apresenta como uma alternativa ao jornalismo tradicional. Em sua página no wikipedia, encontramos as seguintes informações sobre esse grupo:
“Mídia Ninja (sigla para Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação), é um grupo de mídia formado em 2011. Sua atuação é conhecida pelo ativismo sociopolítico, declarando ser uma alternativa à imprensa tradicional. O grupo tornou-se conhecido mundialmente na transmissão dos protestos no Brasil em 2013[.. ] As transmissões da Mídia Ninja são em fluxo de vídeo em tempo real, pela Internet, usando câmeras de celulares e uma unidade móvel montada em um carrinho de supermercado. A estrutura da Mídia Ninja é descentralizada e faz uso das redes sociais, especialmente o Facebook, na divulgação de notícias”. (Disponível em http://pt.wikipedia.org/ wiki/M%C3%ADdia_Ninja Acesso em 14/06/2014)
A prática de produção e publicação de notícias pelos usuários da rede já é bem frequente e tem constituído um fator relevante de participação social e política, sobretudo em situações de crise, manifestações, revoluções e rebeliões em países, sejam eles democráticos ou autoritários. As redes sociais constituíram um espaço de divulgação impressionante nas crises da Síria, do Irã e do Egito, cujos regimes foram surpreendidos pela velocidade com que as pessoas postaram fotografias, narrativas e relatos totalmente independentes da grande mídia local, geralmente bastante controlada. Nesses países, o controle político oficial da rede tem sido frequente, como forma de impedir a circulação de perspectivas e relatos que coloquem em suspeita o regime. No Brasil, a TV Revolta (https://pt-br.facebook.com/tvrevolta?hc_location=timeline) também tem se destacado como mídia alternativa, atuando com site na internet e página no facebook. Seus vídeos e posts têm sido objeto de compartilhamento intenso, computando, às vezes, centenas de milhares de compartilhamentos. É, por isso, um sobreenunciador importante na rede.
8. Discursos intolerantes na web: entre o doxal e o adoxal
Espaço ainda sem grande controle jurídico ou normativo, as opiniões na rede obedecem a uma espontaneidade que se apro[ima do espaço doméstico, onde se pode falar de quase tudo sem limites rígidos de censura além da própria ética pessoal. Paradoxalmente, o espaço do facebook é público, mas sua linguagem parece doméstica e privada, beirando a intimidade, o que faz surgirem as mais diferentes tintas, tons e nuances opinativas. Essa característica faz com que as opiniões circulantes no facebook fiquem no limite entre o doxal e o adoxal. As opiniões do[ais são aquelas que obedecem a algum critério de razoabilidade, são facilmente partilhadas e, por isso, aceitáveis, embora não necessariamente objetos de consenso geral. As opiniões adoxais, ao contrário, são chocantes, consideradas vergonhosas, escatológicas e ultrapassam os limites do dizível, do aceitável e do razoável. Mas no facebook nem tudo é razoável, e a própria sensação de que se está em um ambiente sem controle parece estimular uma liberdade de opinião jamais vista em ambientes públicos. Os discursos intolerantes são cada vez mais comuns e foi amplificado pela invasão da política na rede. Diferentemente dos canais tradicionais, como a imprensa escrita, a televisão e o rádio, suportes nos quais a propaganda política é regulada, na rede ela é bastante livre, favorecendo a militância e o compartilhamento intensivo de discursos propagandísticos, em sua maioria não assinados. Em tempos próximos de disputas eleitorais, a rede será certamente um espaço de batalha sem comparação com os canais tradicionais regulados.
9. Rede social: espaço de livre expressão do Homo rhetoricus
Nosso breve percurso analítico do facebook nos permite retornar ao problema inicial colocado por Danblon sobre a natureza retórica do homem. A web parece se abrir, como nenhum outro dispositivo técnico elaborado pelo homem, à expressão multiforme da retórica humana em suas diferentes dimensões e funções. Se, antes da web, a retórica que se dei[ava ver era pública e controlada em situações institucionais, exercida por homens “eleitos” e com acesso aos dispositivos institucionais, agora temos um espaço de visibilidade e de expressão acessível a um número expressivo de seres humanos. De certa forma, o homem construiu, enfim, um dispositivo técnico global para a e[pressão de sua natureza retórica, ao mesmo tempo fascinante, chocante e surpreendente. Se, de um lado, as redes sociais constituem a grande novidade nas democracias, ela também coloca em cena facetas múltiplas do humano. Tomaremos, para concluir, a seguinte refle[ão de Emmanuelle Danblon sobre a retórica:
“Como faculdade natural, ela (a retórica) permite exprimir uma energia vital, sustentáculo da arte de viver. Como conjunto de funções, ela prolonga a natureza e convida o cidadão a talhar o mundo à sua medida, isto é, literalmente, a torna-lo humano. Isso implica concretamente criar instituições que ele saberá como utilizar. Como prática, enfim, a retórica é essa atividade dinâmica que garante a passagem entre os diferentes aspectos da razão humana, das mais intuitivas às mais refle[ivas. (DANBLON, 2013, p. 2014. Tradução nossa)
Concebido para ser um dispositivo eletrônico para interagir com os amigos, a rede social, e no nosso caso em análise, o facebook, parece estar se construindo como um espaço aberto a todos os aspectos da retórica humana, como ressalta Danblon, das mais intuitivas às mais refle[ivas, passando pela exibição e construção da imagem de si (ethos), pela busca e oferta de afetos (pathos), pela problematização social e o engajamento no debate público (logos). São múltiplas as faces do facebook, como são muitas as faces do homem.
Referências
AMOSSY, Ruth. La présentation de soi. Ethos et identité verbale. Paris: PUF, 2010.
CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du Sens et de l’Expression. Paris: Hachette, 1994.
DANBLON, Emmanuelle. L’homme rhétorique. Paris: Les éditions du Cerf, 2013.
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. PLANTIN, Christian. Le trilogue. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1995.
MAINGUENEAU, Dominique. Les phrases sans texte. Paris: Armand Colin, 2012.
PERELMAN, Chaim. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação. A nova retórica. Tradução brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
RABATEL, Alain (2005b), Les postures énonciatives dans la coconstruction dialogique des points de vue: coénonciation, surénonciation, sousénonciation .In J. Bres, P.P. Haillet, S. Mellet,
H. Nolke, L. Rosier (Orgs.), Dialogisme, polyphonie: approches linguistiques. Bruxelles: Duculot, 95-110, 2005b.
RABATEL, Alain. L’effacement énonciatif dans la presse contemporaine. In: Langages, 38e année, n°156, pp 51-64, 2004.