Este artigo descreve as características acentuais do Português Europeu (PE) de acordo com uma teoria métrica só-grelha e de formas de um dos seus dialectos menos descritos: o dialecto falado no Litoral Alentejano (PLA). A análise acentual do PE seguida neste trabalho é a proposta por ANDRADE & LAKS (1991) que é utilizada em MATEUS & ANDRADE (2000) e que também pode ser adoptada para a análise dos dados da variedade dialectal PLA. Segue-se, além disso, uma análise fonológica autossegmental, segundo a qual posições morfologicamente vazias podem constituir posições rítmicas tidas em consideração para questões acentuais (i. é, se uma palavra tem uma posição da fiada do esqueleto a que não se liga nenhuma informação melódica, essa posição pode contar para efeitos rítmicos).
Os dados da variedade de Português falado na região do Baixo Alentejo litoral indicam, com base numa observação empírica informal
O PE é uma língua acentual que tem um ritmo binário alternante, cuja proeminência principal ocorre na penúltima sílaba da palavra. Segundo estes autores, o ritmo em português propaga-se, como onda rítmica alternante, a partir de um ponto estabelecido de ancoragem na estrutura de cada palavra, tendo como primeira posição uma posição fraca e evoluindo para a esquerda com posições fortes e fracas alternadamente.
Observem-se os exemplos em (1).
Como isto pode gerar mais do que uma sílaba com igual grau de proeminência, é necessário um mecanismo de finalização que determine qual é a proeminência mais forte. Em PE, a crista mais à direita é reconhecida como portadora do acento lexical.
Portanto, a grelha constrói-se com uma segunda linha, com proeminência mais forte à direita.
A acção do princípio rítmico é regular, gera a acentuação grave que atinge a maior parte das palavras do português. Existem, no entanto, palavras cuja estrutura morfológica condiciona a acção do princípio rítmico. Veja-se exemplos em (2) de palavras proparoxítonas e em (3) de palavras oxítonas.
Nas palavras de (2), o princípio rítmico é constrangido pela presença de uma vogal na estrutura que é repelente de acento (ou inacentuável que é assinalada por letra maiúscula na estrutura lexical). Desse modo, a onda rítmica ancora-se com o seu primeiro ponto (um cavado) na sílaba que tem a vogal inacentuável e progride, como de costume, para a esquerda, marcando um ritmo binário alternante. Ou seja, a sílaba final acaba por não ser atingida pela onda rítmica acentual e a coda rítmica por ter duas posições fracas à direita. Nos casos em que a palavra tem mais do que uma vogal inacentuável, a ancoragem faz-se no primeiro cavado lexical encontrado da direita para a esquerda, podendo o princípio rítmico transformar em crista cavados lexicalmente marcados precedentes, como acontece em ‘catastrófico’ catastrOfIco (cf. catástrOfe).
Nas palavras de (3), nas quais o marcador de classe nominal não está presente ou, sendo verbo, na qual o morfema de tempo infinitivo não apresenta a vogal que historicamente se justificaria, a proposta de Andrade e Laks é que se assuma que a sua posição métrica continua a contar para a questão acentual, apesar da inexistência da vogal. Baseiam- se para essa proposta justamente no facto de variedades do Português apresentarem paragoge neste tipo de palavras e no de elas não terem uma estrutura lexical regular (i. é uma estrutura com marcador de classe morfologicamente presente).
Palavras, como ‘lápis’, ‘túnel’, ‘Aníbal’, ‘Amílcar’, ‘Alcácer’, são acentuadas da seguinte forma de acordo com esta teoria só-grelha, em virtude de possuírem vogais inacentuáveis:
A consideração da posição morfologicamente vazia final justifica-se nos escassos casos de inserção de vogal final em palavras como ‘Alcácer’ após queda da vogal postónica no PLA, no entanto, na pronúncia mais comum ela é sempre vazia.
As vantagens de uma análise do acento lexical como fenómeno rítmico parecem evidentes. Por um lado, é possível descrever com base num princípio acentual único os três paradigmas acentuais habitualmente identificados, por outro lado a descrição está mais de acordo com a natureza do fenómeno acentual (uma característica essencialmente rítmica) do que outras alternativas (como a de formar constituintes, cuja evidência em português nos parece menos motivada). Para além disso, só implica estipulações comprovadas por dados da língua e permite reunir o padrão acentual dos verbos e dos não-verbos, uma vez que para descrever os dados da categoria verbal, basta dizer que contrariamente ao que sucede nos não-verbos, não existem cavados lexicalmente pré- atribuídos quando um nome dá origem à formação de um verbo – cf. o nome ‘fábrica’ e a 3ª p. sg do verbo ‘fabricar’, ‘fabrica’. No paradigma verbal existem, no entanto, vogais inacentuáveis, pertencentes a morfemas flexionais, como por exemplo o morfema [va] do imperfeito, que leva à acentuação proparoxítona em ‘falávamos’, por exemplo. PEREIRA (2007) propõe uma análise parcialmente divergente do acento em português, mediante a qual o acento está dependente da categoria morfológica da palavra, havendo, além disso, marcação de algumas palavras quanto ao acento e concorrência de várias regras acentuais no paradigma verbal. Parece-nos que o acento actua em português da forma proposta por Andrade e Laks, por isso, seguimos a sua análise e, sabendo que uma língua tende a apresentar a acentuação uniforme em todas as suas variedades, não seriam de esperar diferenças acentuais em qualquer variedade linguística. Porém, na verdade, o português falado no Litoral Alentejano (PLA) tem formas que, a custo de transformações várias, apresentam uma regularização do padrão acentual grave foneticamente. O número de palavras paroxítonas aumenta por a elas se juntarem muitas das palavras proparoxítonas e oxítonas no PE padrão, conforme a seguir se demonstra.
O PLA é a variedade falada sobretudo por falantes de idade avançada, não escolarizados ou com baixo nível de escolarização, na região compreendida entre a Comporta e o extremo sul do Alentejo, numa faixa litoral cujos limites a Este não foram ainda claramente estabelecidos. Os dados usados pertencem à pronúncia por nós observada na região de Santo André, pertencente a falantes naturais da zona rural da freguesia, com idade superior a 60 anos e pouca ou nenhuma instrução escolar. Sob diversos pontos de vista os dados aqui analisados são compatíveis com os referidos, embora não analisados de forma sistemática no trabalho de CALDEIRA (1959-60) a respeito do falar de Sines. Os falantes mais jovens, em geral, com mais instrução, apresentam algumas das características aqui referidas no seu dia-a-dia, apesar de adoptarem uma pronúncia mais de acordo com o
Tomemos, em primeiro lugar, dois conjuntos de palavras proparoxítonas no PE padrão (5) que são transformadas em palavras foneticamente paroxítonas no PLA (5a, 5b e 5c).
Em (5a) temos palavras com vogal temática a seguir a uma outra vogal (inacentuável). Como vemos, quase todas as palavras apresentam a vogal inacentuável sob a forma da semivogal [j] na sílaba tónica, e não na postónica, fazendo com que as palavras sejam superficialmente paroxítonas (não proparoxítonas) em consequência da metátese e não tenham ditongo crescente fonético. As únicas formas em que isso não acontece são aquelas em que a vogal tónica é uma vogal alta igual à semivogal normalmente gerada, casos que originaram a fusão da vogal com a semivogal, em obediência ao Princípio de Contorno Obrigatório (PCO).
Em (5b) vemos palavras nas quais a primeira vogal do hiato postónico deveria ser [u] devido à redução do vocalismo átono. Se essas palavras forem uniformes com o marcador de classe /a/ logo a seguir semivocalizam a vogal postónica e não há metátese no PLA (ou seja, não há *[´mawgn] por ‘mágoa’), tal como acontece em PE standard. Se se tratar de palavras variáveis em género, com o marcador /o/, a vogal postónica será elidida por acção do PCO. Se forem marcadas por /a/, então a semivogal surge em vez de [u], mas sem haver lugar a metátese, como acontece nos casos das palavras invariáveis. A semivocalização da vogal postónica levanta problemas de silabificação no nível fonético, uma vez que em PE os ditongos tendem a ser apenas decrescentes fonologicamente. Criar-se-á um ditongo crescente foneticamente? A natureza fonética e silábica do processo carece de investigação. Em todo o caso, estas formas só apresentam foneticamente uma vogal após a tónica, o que mostra a tendência para a existência apenas de uma posição de coda rítmica.
Em (5c), temos palavras com vogal temática a seguir a radicais ou sufixos terminados em consoante. Estas palavras apresentam mais do que uma forma de ser realizadas nesta variedade linguística: a que foi apresentada acima elisão da postónica ou da vogal final e uma com uma vogal postónica fracamente audível, em geral com a forma [i]. Evidenciam deste modo a tendência do PLA para a neutralização vocálica átona e para a elisão em posição postónica. Tudo isso, mesmo que a estrutura acabe por ter uma sequência problemática de consoantes, em termos de silabificação.
Todavia, é evidente que não podemos falar de uma total integração das palavras proparoxítonas no paradigma das palavras paroxítonas já que a maior parte das palavras proparoxítonas é constituída por palavras eruditas, de reduzida utilização nos falantes não escolarizados de PLA. Por outro lado, por exemplo, a pressão da ortografia e a frequência de uso das palavras podem interferir com a pronúncia, nos falantes com mais escolarização. Por ex., ‘neurótico’, ‘esclerótico’, ‘público’, dificilmente serão pronunciadas sem a vogal postónica inacentuável, nos dois primeiros casos por serem palavras pouco conhecidas e, no último, por ser a vogal final a ser enfraquecida ou até elidida.
Além das palavras proparoxítonas, as palavras tipicamente oxítonas são também geralmente transformadas de modo a corresponder melhor ao padrão rítmico paroxítono no PLA, i. é a ter uma coda rítmica de uma posição. Veja-se os exemplos em (7), nomeadamente na palavra ‘maré’, ‘azul’, ‘flor’, ‘Santarém’. No entanto, como se torna claro pelos exemplos das palavras acabadas em coda fricativa ‘juiz’, ‘Estremoz’, etc. e das palavras menos comuns ‘Diná’, ‘Jericó’, nem sempre existe inserção. Nas palavras mais comuns tende a acontecer ainda que variavelmente como acontece em ‘avó’ e ‘avô’.
Veja-se a descrição em (8).
Nestas palavras, é visível a inserção de uma vogal final em todas as palavras que terminam lexicalmente em consoante sonante – paragoge de [i] ou de [i] – que obriga a silabificar a palavra com mais uma sílaba do que a mesma palavra no PE
Se a paragoge de [i] dependesse apenas do contexto segmental, seria de esperar que ela ocorresse além de em ‘flor’, ‘caracol’, também em palavras como ‘túnel’, ‘nível’, ‘âmbar’, ‘Amílcar’, ‘Aníbal’, ‘carácter’. Porém, isso não acontece, à excepção de uma palavra como ‘Alcácer’ que admite a pronúncia [ał´kasri], após a queda da postónica no PLA. As palavras são produzidas como em PE
No PLA, a criação de um padrão rítmico paroxítono é efectuada à custa de três processos que transformam a estrutura fonológica:
(i) inserção de [i] após consoante sonante (mar[i], sol[i]), o que pretende regularizar grande parte das palavras oxítonas como paroxítonas, em consonância com a análise teórica de Andrade e Laks. A inserção é bloqueada se a palavra contiver uma vogal inacentuável (’túnel’).
(ii) metátese de [j], em estruturas com hiato postónico alvo de semivocalização, como ‘história’, ‘côdea’, ‘búzio’. Ou seja, a primeira vogal do hiato semivocaliza e muda de posição de modo a criar um ditongo decrescente, em vez de um ditongo crescente, e permitindo a regularização acentual com a existência de apenas uma vogal postónica.
(iii) queda de vogal postónica em palavras proparoxítonas com radical terminado em consoante, como ‘música’ [´muzkn], ‘mágico’ [´ma3ku].
Por tudo o que já dissemos fica clara a existência de uma ‘conspiração fonológica’ no PLA que leva a que um elevado número de palavras seja regularizado em termos acentuais, confluindo com o padrão rítmico mais frequente em Português. Os processos utilizados são de três tipos diferentes:
(i) metátese da semivogal resultante da primeira de duas vogais em hiato postónico;
(ii) inserção de um segmento vocálico de defeito para preencher posições rítmicas vazias e que pode ser semivocalizado após vogal – em PLA é [i] (ou [i], como em PE standard);
(iii) queda de uma vogal postónica, apesar de ela deixar superficialmente uma sequência consonântica complexa.
Com a inserção de [i], regulariza-se num grande número de palavras a estrutura silábica. Por um lado, deixa de haver sílaba final com coda sonante em fronteira de IP, passa a existir sílaba CV e deixa de ser necessário aplicar nestas palavras um processo complementar de especificação de /l/ final – a velarização. Tudo isso acontece, exclusivamente, nas palavras que apresentavam uma estrutura lexical anormal (falta do marcador de classe, por exemplo) ‘azul’ ou ‘flor’, que não possuem vogais inacentuáveis (já que em ‘âmbar’, ‘túnel’ não existe paragoge de [i]).
Nas palavras do tipo de ‘café’ insere-se a vogal final que é obrigada a semivocalizar por se encontrar precedida por vogal. Cria-se assim um ditongo decrescente - estrutura que, apesar ser evitada em muitas palavras no PLA, devido à existência de monotongações de /eI/ (‘leite’ [´leti]), /oU/ (‘couve’ [´kovi]), /aI/ ‘caixa’ [´kafn], por exemplo, acaba por ser permitida foneticamente, como os casos em (7) demonstram. A semivogal parece desempenhar em ‘café’ o papel da coda rítmica que faltava à palavra no PLA, contrariamente ao papel da semivogal nas palavras ‘leite’, ‘couve’, ‘caixa’.
Com a metátese de [j] (já que não existe metátese de [w]) cria-se um grande número de palavras foneticamente graves, com uma sílaba acentuada com duas raízes (ditongos decrescentes sempre), em vez de se criar um ditongo crescente, por junção da semivogal à vogal final.
Com a queda da vogal postónica nas palavras com radical terminado em consoante (por exemplo ‘música’), regulariza-se a acentuação destas palavras, mas deixa-se foneticamente uma estrutura com um conjunto de consoantes em sequência de difícil silabificação. Deixamos por enquanto em aberto essa questão.
Por todas as razões já mencionadas, o padrão rítmico acentual do PLA assume preponderância face a outros aspectos da fonologia da variedade, apesar de não poder ser explicado sem recurso a eles. Esta variedade linguística é evidência da plausibilidade da interpretação da questão acentual do PE feita por ANDRADE & LAKS (1991), nomeadamente no que se refere à posição métrica vazia das palavras agudas. Uma vez que o preenchimento dessa posição é sentido como uma marca dialectal desprestigiada pelos falantes mais escolarizados, o PLA tende a mudar rapidamente, como já vimos que aconteceu em Castro Verde nas palavras terminadas em vogais anteriores acentuadas.
ANDRADE, Ernesto d’; LAKS Bernard
CALDEIRA, Maria Arlete Fernandes.
CRUZ, Marisa.
FLORÊNCIO, M.
MATEUS, Maria Helena Mira; ANDRADE Ernesto d’.
PEREIRA, Maria Isabel.
Recebido em 26/03/2015 e Aceito em 10/06/2015.
A autora é falante nativa da região do PLA e mantém contacto permanente com a população local. As recolhas foram efectuadas em momentos diferentes e transcritas só agora de forma sistemática e dizem respeito a falantes dos dois sexos.
Em particular, tendem a substituir a vogal paragógica [i] por [i].
Neste artigo assinalamos o acento imediatamente antes do primeiro segmento da sílaba fonológica e os símbolos fonéticos de acordo com o IPA 2005, excepto no que se refere às semivogais que são representadas com [j]/[w] na tradição portuguesa e de [n], a vogal átona correspondente a /a/.
Cruz (2013:40) nos dados de falantes mais jovens de Castro Verde no interior do Alentejo já não encontrou a paragoge em palavras deste tipo, o que indica que a paragoge está em curso de mudança nos dialectos alentejanos.