A palavra ‘eu’ é um exemplo prototípico de “dêitico” ou “indexical”, ou seja, um item que tem, entre outras propriedades, uma grande dependência contextual, ou seja, o referente de ‘eu’, sua contribuição linguística, é o falante e ela muda cada vez que um novo falante pronuncia ‘eu’. Tomemos os exemplos abaixo, em que temos como falante o João em (1) e a Maria em (2); a representação usando os parênteses angulares (<,>) mostra qual proposição (ou pensamento) está sendo expressa:
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(1) (João:) Eu tô com fome
(1’) <João, estar com fome>
(2) (Maria:) Eu tô com fome
(2’) <Maria, estar com fome>
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Dado que (i) em (1) e (2) temos as mesmas palavras envolvidas – i.e., a sequência ‘eu tô com fome’ –, (ii) o predicado envolvido não muda (‘estar com fome’), e (iii) ainda assim essa mesma sequência expressa duas proposições diferentes a depender de quem fala, podemos concluir que (iv) o item ‘eu’ é sensível a quem é o falante e o designa, ou seja, o referente de ‘eu’ é o falante.
Para podermos capturar num modelo lógico as diferenças e semelhanças entre o par (1)-(2), uma saída é postular que proposições são o resultado de proferimentos, e que proferimentos são sentenças (i.e., sequências de sons, sintatica e semanticamente bem formadas) relativizadas a um contexto de proferimento, algo que pode ser representado pelo par <s, c>, em que ‘s’ está por sentença e ‘c’ por contexto. No caso de (1) e o (2), a sentença ‘s’ é a mesma, i.e., ‘eu tô com fome’, mas o contexto ‘c’ é diferente, porque num deles (c1) temos o João como agente ou falante e no outro (c2) temos a Maria desempenhando esse papel. Dado que os pares <s, c> para o caso de (1) e (2) são diferentes – temos <s, c1> para (1) e <s, c2> para (2) – conseguimos capturar o fato de que a mesma sentença (s) pode ser usada para veicular duas proposições diferentes, e que o item sensível ao contexto é ‘eu’.
Essa maneira de capturar essas intuições é relativamente simples e bem sucedida, porém ela gera consequências de longo alcance que nem sempre se conformam à nossa intuição. Um dos objetivos deste texto é mostrar que a análise esboçada acima não dá conta de todos os usos que fazemos da palavra ‘eu’, e é necessário uma outra teoria para lidar com esse item.
Para atingir esses objetivos, o presente texto se organiza da seguinte maneira: na seção 1 apresentaremos a teoria de indexicais postulada por Kaplan (1989), por ser, atualmente, a mais abrangente e elegante teoria para lidar com esses itens; na seção 2 analisaremos os diversos usos de ‘eu’, mostrando os limites da teoria de Kaplan; na seção 3 proporemos uma organização dos usos de ‘eu’ que os agrupa em usos referencias, usos descritivos e usos como variável; na seção 4 apresentamos uma proposta para ‘eu’, baseada no trabalho seminal de Nunberg (1993); finalmente, na seção 5 resumiremos o caminho percorrido e faremos um balanço dos problemas em aberto.
A teoria de indexicais de Kaplan (1989) foi formulada pela primeira vez em 1977, mas foi publicada apenas em 1989. O autor tentou dar conta da semântica, da epistemologia e da metafísica que envolve os chamados itens indexicais – justamente os itens que, para receberem uma interpretação, dependem de informações contextuais. Ao lidar com esses termos, Kaplan acabou por definir termos básicos da filosofia da linguagem e da semântica, que são ainda hoje usados conforme ele propôs. Na Introdução deste texto, já tivemos oportunidade de lidar com as definições de sentença (sequência de sons ou palavras sintatica e semanticamente bem formadas), proposição (pensamento veiculado por um proferimento, que pode ser avaliado em termos de suas condições de verdade) e proferimento (sentença dita num dado contexto); o próximo passo é entender melhor a noção kaplaniana de contexto. Obviamente, o que Kaplan entende por contexto é algo bastante preciso que cumpre certas funções; em sua teoria, contexto nada mais é do que uma série de informações nas quais os falantes podem se apoiar ao usar certas expressões linguísticas (os indexicais). Um contexto é então uma unidade informacional que contém um agente (ca), um ouvinte (co), um tempo (ct), um lugar (cl) e um mundo possível (cw), e é representado como uma ê-nupla ordenada da forma <ca, co, ct, cl, cw>. Para lidar com as informações contextuais, Kaplan propõe a função
Segundo a teoria de Kaplan, todos os itens linguísticos são interpretados pela função caráter e pela função conteúdo, porém, apenas os indexicais dão resultados diferentes com relação ao caráter (porque são sensíveis ao contexto). Para o caso do indexical, ‘eu’, por exemplo, seu caráter é uma função que resulta, a cada contexto, no falante ou agente daquele contexto, ou seja, [[eu]] = falante/agente de c = ca; foi o que vimos com os exemplos (1) e (2), que repetimos abaixo usando a terminologia introduzida (no que segue, ignoraremos tempo e local do contexto):
Para sabermos se as proposições expressas em (1) e (2) são verdadeiras ou falsas, é preciso considerá-las com relação aos mundos possíveis acessíveis; nesse caso, (1) é verdadeira se e somente se (sse) João estiver com fome no mundo de consideração; o mesmo vale,
Assim, se considerarmos os mundos abaixo:
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w1 → João, Pedro, Tiago, Maria estão com fome;
w2 → João e Pedro estão com fome
w3 → Maria está com fome
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obteremos que a proposição expressa em (1), com o proferimento <s, c1>, é verdadeira nos mundo w1 e w2; e que a proposição expressa em (2), por sua vez, é verdadeira nos mundos w1 e w3.
Com a teoria de Kaplan, temos então duas funções que têm como objetivo fornecer a proposição veiculada pelas sentenças das línguas naturais. Essa teoria pode ser representada graficamente pelo esquema abaixo, adaptado de Schlenker (2009):
Usando o operador-lambda, e um sistema extensional conforme proposto por Schlenker (2009) podemos escrever as funções caráter e conteúdo, conforme abaixo, e desenvolver o cálculo até chegarmos à proposição sendo expressa no caso de (1) e c1:
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(1) (João:) Eu tô com fome
Caráter (1) = λc [ca está com fome]
Conteúdo (1) = λw [Caráter (1) λc [ca está com fome]]
Conteúdo (1) = λw [Caráter (1) λc [ca está com fome] (c1)]
Conteúdo (1) = λw [<João, estar com fome>]
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Assim sendo, a proposição expressa por (1), considerando w1, w2 e w3, será verdadeira em w1 e w2.
Há várias nuances que a teoria de Kaplan apresenta, como, por exemplo, diferenciar indexicais como ‘eu’, ‘aqui’, ‘hoje’, etc. dos demonstrativos, chamando os primeiros de indexicais puros, pois sua interpretação depende simplesmente de informações contextuais, dos segundos, chamados de indexicais impuros, pois sua interpretação depende também de apontamentos ou gestos de ostensão para objetos presentes no contexto visual – mas não é possível expormos todas as nuances da teoria aqui (cf. BASSO
Com a primeira dessas ideias, Kaplan captura o fato de que a contribuição proposicional de um indexical (que é um termo singular) é um indivíduo e
Em resumo, para Kaplan o item ‘eu’ tem a seguinte representação:
F:
Com a teoria de Kaplan, um poderoso instrumento para o entendimento dos indexicais nas línguas naturais, passemos aos diversos usos de ‘eu’, mostrando os limites dessa teoria.
O emprego de ‘eu’ que vimos para os casos em (1) e (2) não é o único que encontramos para esse item. Na verdade, é possível, em princípio, identificar (pelo menos) 7 diferentes usos de ‘eu’, que chamaremos de “uso referencial”, “uso impróprio”, “uso metaficcional”, “uso metonímico”, “uso descritivo”, “uso como variável” e “uso genérico”; esse usos serão analisados, na ordem em que foram apresentados, nas seção 2.1 a 2.7, juntamente com uma avaliação de como a teoria de Kaplan poderia dar conta deles – argumentaremos que, sem maiores complicações, essa teoria dá conta apenas do uso referencial. Na seção 3, conforme dissemos na introdução, reduziremos esses 7 usos a apenas 3, que são encontrados também nos outros pronomes.
O uso referencial é aquele exemplificado pelas sentenças (1) e (2) e é, talvez, o uso mais comum de ‘eu’. Podemos identificá-lo em todos os exemplos abaixo, lembrando que sua característica principal é referir-se ao agente, falante ou escrevente do contexto:
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(3) Eu não quero tomar banho.
(4) Eu não estou com vontade de estudar.
(5) Deixa eu quieto!
(6) Me passa cola pra prova...
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Para todos esses casos, seguindo a teoria de Kaplan, saber quem é o agente, falante ou escrevente do contexto basta para determinar quem é o ‘eu’ e ele se refere ao agente, falante ou escrevente do contexto devido ao seu caráter e não por conta de alguma propriedade ou característica de seu referente. Em outras palavras, a fórmula [eu]]c f w = ca esgota o uso referencial; todos os casos que veremos na sequência, por sua vez, não cabem nessa fórmula.
Usos impróprios são aqueles em que o agente, falante ou escrevente do contexto – aquele que realiza o item ‘eu’ –
Outro exemplo, um pouco mais elaborado, é o seguinte: suponhamos um corredor com salas de professores, de modo que as portas fiquem de frente uma para a outra. O professor João não está em sua sala, a sala A. Por sua vez, o professor Pedro, cuja sala, a B, que fica de frente à sala do professor João, está e gosta de trabalhar com a porta aberta. A partir de um certo momento, estudantes começam a bater na porta da sala A, na esperança de conversar com o professor João, sem saber que ele está viajando. Isso ocorre algumas vezes até que acaba irritando o professor Pedro que então escreve o seguinte recado num pedaço de papel e o cola na sala A: ‘Eu não estou aqui agora’. A ideia funciona e os alunos, ao lerem o bilhete, vão embora sem bater à porta e sem incomodar o professor Pedro
Intuitivamente, tudo parecer funcionar bem e concordamos que o referente de ‘eu’ para o bilhete em questão é João, ou ao menos concordamos que é assim que os estudantes se comportariam. Porém, a teoria de Kaplan não nos dá esse resultado: se a função caráter de ‘eu’, ao tomar como argumento um contexto, resulta no agente do contexto (ca), é óbvio que o agente é Pedro, e logo o conteúdo (referente) de ‘eu’ nesse contexto é Pedro e não João – algo que claramente não captura nossa intuição e interpretação. Para tornar as coisas ainda mais complicadas para a teoria de Kaplan, suponhamos também que Pedro não esteja sozinho em sua sala, mas está trabalhando com um aluno, o José. Suponhamos que José tenha acompanhado tudo o que descrevemos; notadamente, ele viu que foi Pedro que escreveu o bilhete e o colou na porta da sala do professor João. É interessante notar que, mesmo do ponto de vista de José, é contra-intuitivo dizer que o referente de ‘eu’ é Pedro, ou seja, é contra-intuitivo dizer que a sentença colada na porta da sala A expressa a proposição (estruturada) <Pedro, não estar aqui agora>.
Fundamentalmente, o que temos aqui é que o referente de ‘eu’ não é ca, ou seja, o agente/falante/escrevente do contexto, e a fórmula F não funciona para esses casos. Há, porém, diversas formas de resgatar a teoria kaplaniana, mas todas elas têm que dissociar o referente de ‘eu’ do agente/falante/escrevente de ‘eu’ e estabelecer, de alguma outra forma, como sabemos quem é o referente de ‘eu’, já que ele não é mais o agente do contexto. Seja qual for a melhor saída, ela levará a uma reformulação da teoria de Kaplan para o caso do item ‘eu’. Mais sobre esse uso pode ser encontrado em Basso (2010), Corazza
O uso metaficcional de ‘eu’ foi extensamente analisado por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), e aqui nos interessa apenas apontar sua existência, seus contornos gerais e os problemas que coloca à teoria padrão sobre os indexicais.
Como sempre, imaginemos o seguinte contexto: depois de uma peça de teatro, que envolvia apenas duas atrizes, uma repórter perguntar para uma das atrizes ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’; a atriz responde ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’. O ponto interessante é que o segundo ‘eu’ da resposta da atriz tem como referente não a atriz, mas a personagem que ela interpreta. Para que isso fique mais claro, vamos imaginar que as atrizes se chamam Ana e Maria, e as personagens que elas interpretam se chamam, respectivamente, Sandra e Sonia. Considerando isso, e supondo que a pergunta tenha sido feita à Ana, podemos parafrasear a pergunta da repórter e a resposta de Ana como abaixo:
pergunta: ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’
‘O que Ana (=co) acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’
resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’
‘Ana (=ca) acha que Sandra (=??) podia ser mais rica’
O problema é que essa paráfrase e a interpretação que ela revela não estão disponíveis para a teoria padrão: justamente porque ‘eu’ é ca, e o contexto tem Ana como agente/falante, a única interpretação possível é a abaixo:
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resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’
‘Ana (=ca) acha que Ana (=ca) podia ser mais rica’
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Essa interpretação, apesar de possível, não faz muito sentido ou não é uma resposta relevante para a pergunta da repórter. Seja como for, a primeira paráfrase está disponível, mas a teoria de Kaplan não tem como gerá-la, simplesmente porque a teoria postula que o único contexto possível mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de proferimento, e em tal contexto Ana é sempre o agente/falante.
Uma saída possível, adotada por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), é postular um operador-monstro, que manipula o contexto de modo que o primeiro ‘eu’ é fixado no contexto de proferimento e tem como referente seu agente – Ana; mas o segundo ‘eu’ é fixado no contexto da ficção relevante (a peça de teatro) e tem como referente seu agente – Sandra. A explicitação formal dessa proposta e suas consequências não são totalmente óbvias e têm ramificações bem interessantes, mas que fogem aos objetivos deste texto. Porém, mais uma vez, resta notar que a fórmula F não pode ser a palavra final sobre o ‘eu’, desta vez porque o contexto, às vezes e sob certas condições, pode ser controlado
O uso metonímico do item ‘eu’ é ilustrado pela sentença abaixo:
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(7) Eu tô estacionado na garagem.
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Com (7), sabemos que o falante, através de ‘eu’, refere-se ao seu carro. Há diversas explicações para que o acontece aqui, e mesmo o uso do termo “metonímico” não é consensual, pois há autores que acreditam que a interpretação sugerida para (7) não envolve um processo metonímico. Seja como for, novamente, e de modo semelhante ao que vimos para o “uso impróprio”, a interpretação de ‘eu’ para esse caso não resulta da simples aplicação de F. Nunberg (1993, 2004) e Mount (2008) apresentam interessantes discussões sobre este uso de ‘eu’.
Os usos descritivos colocam sérios problemas para um dos principais pilares da teoria de Kaplan: a ideia de que a contribuição proposicional de um indexical (sendo um termo singular) é um indivíduo, ou seja, eles são termos diretamente referenciais que se referem a indivíduos sem levar em conta nenhuma propriedade ou característica desses indivíduos. Tendo isso em mente, tomemos a sentença abaixo, dita em 2012 por Dilma Rousseff, e a analisemos segundo a teoria kaplaniana:
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(8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.
A Constituição dá a palavra final a ca=<Dilma Rousseff, a Constituição dar a palavra final>
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Num primeiro olhar, essa análise parece correta e a proposição expressa é verdadeira nos mundos possíveis em que a Constituição dá a palavra final para Dilma Rousseff. Consideremos então os seguintes mundos possíveis:
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w1 → a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil
w2 → a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja
w3 → a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil
w4 → a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja
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O ponto interessante é que, segundo a teoria de Kaplan, a proposição expressa pela sentença (8) é verdadeira nos mundos w1 e w2, e falsa nos mundos w3 e w4, pois basta que a Constituição dê a palavra final ao indivíduo nomeado Dilma Rousseff para que a proposição seja verdadeira,
(8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.
A constituição dá a palavra final ao presidente do Brasil e Dilma Rousseff (quando profere (8)) é a presidente do Brasil
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Para dar conta dessa paráfrase, precisamos de uma teoria de indexicais que leve em conta as propriedades dos referentes desses itens, pelo menos em alguns casos. O mesmo ponto pode ser feito através do exemplo de Nunberg (1993), adaptado abaixo. Imagine um prisioneiro condenado à morte, chamado João; em sua última noite, ele diz ao guarda de plantão:
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(9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição.
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A análise kaplaniana resulta, muito
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<é tradicional <João, ter direito a uma última refeição>>
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Essa proposição expressa que João, tradicionalmente, tem direito a uma última refeição – algo que simplesmente não faz sentido, pois ninguém, por definição, faz
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(9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição.
Os condenados à morte têm, tradicionalmente, direito a uma última refeição e João é um condenado à morte.
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É interessante notar que a paráfrase que oferecemos para (9) segue, em linhas gerais, o caso em (8), e ambas mostram que a fórmula F estabelece uma relação direta demais: é necessário levar em conta, em alguns casos, as propriedades dos referentes.
O uso de ‘eu’ como uma variável aparece na literatura desde 1989 (cf. PARtEE, 1989), e desde então tem sido tratado de diversas maneiras. Para entender esse uso, imaginemos um contexto em que temos João, Pedro e Maria, e que cada um deles tenha filhos; a Maria diz (10), cuja análise kaplaniana é mostrada logo abaixo –
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(10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.
(10’) Só ca pode tomar conta dos filhos de ca=
(10’’) Só Maria pode tomar conta dos filhos da Maria
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Nessa interpretação, o João não pode tomar conta dos filhos de Maria e nem o Pedro, pois somente a Maria pode tomar conta dos filhos da Maria. Contudo, há uma outra interpretação para a sentença (10) proferida pela Maria, cuja paráfrase está em (11):
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(10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.
(11) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios
filhos
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Nessa interpretação, Maria pode tomar conta dos filhos de Maria, e João e Pedro também podem tomar conta dos filhos de Maria, mas João não pode tomar conta dos filhos de João e nem Pedro pode tomar conta dos filhos de Pedro. Os esquemas abaixo ajudam a visualizar essas duas interpretações – note que representamos apenas algumas das intepretações possíveis para não poluir demais a imagem:
As análises presentes na literatura advogam por algum tipo de apagamento ou não interpretação dos traços-φ
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(11’) [Ser o único x] lx[x toma conta dos filhos de x] (Maria);
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Seja como for, mais uma vez, a fórmula F não tem como gerar a interpretação em (11), que, de resto, está disponível também para a sentença (12) e inúmeras outras com a mesma estrutura:
(12) Só eu tenho uma pergunta que eu sei responder.
O uso genérico pode ser exemplificado pelas sentenças abaixo:
→ assistindo uma partida de futebol, alguém diz, depois de ver um gol feito perdido:
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(13) Esse gol até eu fazia!
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→ como comentário sobre o desempenho de um time que jogou muito mal, alguém diz:
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(14) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado...
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Os ‘eu’s presentes em (13) e (14) podem receber uma interpretação segundo a qual não se referem ao falante (agente do contexto) nem a ninguém em particular, mas sim a qualquer um – para (13), não interessa quem seja, faria o gol, e para (14), não interessa quem seja, se quiser ganhar esse alguém tem que entrar motivado.
A teoria de Kaplan não tem meios de capturar essa interpretação sem alterações drásticas simplesmente porque a única coisa que diz sobre ‘eu’ é a fórmula F. Mais sobre o uso genérico de ‘eu’ pode ser visto nos trabalhos de Zobel (2010, 2011).
Seis dos sete usos que vimos nas seções 2.1-2.7 desafiam a teoria de Kaplan, pois (i) o referente de ‘eu’ não é (simplesmente) o agente do contexto (seções 2.2 e 2.4); (ii) o contexto relevante para a fixação do referente de ‘eu’ não é (unicamente) o contexto de proferimento (seção 2.3); (iii) o estabelecimento do referente de ‘eu’ e das condições da verdade da proposição expressa levam em conta propriedades ou características do referente (seção 2.5), o que fere um dos princípios fundamentais da teoria kaplaniana; e finalmente, (iv) ‘eu’ não se refere a nenhum indivíduo mas sim funciona como uma variável ligada, seja porque expressa uma propriedade ou atua numa sentença genérica (seções 2.6-2.7).
É importante salientar que as interpretações de 2.1 a 2.4 podem ser “salvas” numa teoria kaplaniana desde que certos ajustem sejam feitos, o que, em parte, descaracteriza essa teoria. Os casos em 2.5 a 2.7, por sua vez, apresentam desafios mais sérios à teoria e demandam outro tipo de ajuste, o que dificulta sobremaneira qualquer tentativa de explicar com a teoria de Kaplan todos os usos de ‘eu’. Dado que concluir que há mais de um ‘eu’ na língua não é a melhor alternativa dos mundos, a situação descrita até aqui pede por uma outra teoria sobre indexicais e sobre ‘eu’ em particular, e é para uma tal teoria que nos voltamos na sequência. Porém, antes disso, mostraremos que os usos de ‘eu’ podem ser reduzidos a três e que esses três usos podem, também, ser observados em todos os pronomes.
A proposta que faremos nesta seção é que os usos 2.1 a 2.4 podem ser agrupados sobre o rótulo de “uso referencial”, o que vimos em 2.5 é o “uso descritivo” e o que vimos nas seções 2.6 e 2.7 são o “uso como variável”. A ideia é que com o uso referencial o que há como contribuição proposicional é simplesmente um indivíduo, ainda que ele não seja o agente do contexto (pode ser um outro indivíduo, como nos casos de 2.2 e 2.4, ou pode ser o agente de outro contexto que não o de proferimento, como em 2.3); por sua vez, no uso descritivo, a contribuição proposicional não é simplesmente um indivíduo, mas também uma propriedade ou característica exemplificada pelo indivíduo (caso 2.5); finalmente, no uso como variável o pronome ‘eu’ contribui para a proposição com uma variável. Se isso estiver correto, o que precisamos é de uma teoria que conceba o item ‘eu’ de modo que ele possa receber essas três interpretações. Porém, não seria interessante ter uma teoria apenas para o item ‘eu’, e é por isso que analisaremos rapidamente na sequência os pronomes ‘ele’ e ‘você’, com o objetivo de mostrar que esses três usos também são encontrados para esses pronomes, com a expectativa – a ser ainda verificada – que é possível estender as considerações feitas aqui também para os pronomes plurais. No que segue, não faremos uma apresentação exaustiva, que passe pelos 7 casos vistos na seção 2, mas apenas por alguns deles.
As sentenças (15) e (16) abaixo ilustram usos referencias canônicos, ao passo que as sentenças (17) e (18) são exemplos de uso metonímicos:
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(15) Olha o João ali! Ele chegou cedo hoje!
(16) Presta atenção no que eu falo pra você! (alguém apontando para a chave de um carro:)
(17) Ele tá lá atrás, na saída da loja.
(18) Onde você está estacionado?
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O uso descritivo desses pronomes pode ser um pouco mais difícil de visualizar. Um caso famoso na literatura aparece em Recanati (2005) e Elbourne (2008), e se dá no seguinte cenário: duas pessoas estão conversando e uma delas aponta para o atual Papa, Bento XVI, que é alemão, e diz:
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(19) Ele costumava ser italiano.
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Ora, a paráfrase correta para (19) não é (20), mas sim (21):
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(20) Bento XVI (i.e., Joseph Ratzinger) costumava ser italiano.
(21) O Papa costumava ser italiano.
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O que temos aqui,
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(22) É sempre você quem toma as decisões importantes.
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Mais uma vez, a paráfrase mais adequada para (22) não é uma que envolva somente o indivíduo que é o presidente atual, mas também a propriedade de ser presidente, como sugerido pela paráfrase em (23):
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(23) É o presidente que sempre toma as decisões importantes.
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Para o caso do uso como variável (genérico ou não), podemos tomar as sentenças abaixo:
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(24) Todo homem sabe o que ele deve fazer.
(uma professora diz, em tom de bronca, para seus alunos)
(25) Para conseguir um bom emprego, você precisa saber ler e escrever direitinho.
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‘Ele’ e ‘você’ em (24) e (25) não são nem referenciais nem descritivos. Sendo assim, vejamos na seção abaixo uma proposta de teoria que dê conta dos três usos vistos até aqui.
Em um trabalho de 1993, Geoffrey Nunberg propõe uma estrutura para os indexicais radicalmente diferente do que encontramos no trabalho de Kaplan. Para Nunberg, os indexicais têm uma estrutura mais complexa e resultam sempre numa descrição definida, ou seja, diferentemente da teoria de Kaplan, Nunberg propõe que (i) os indexicais não são termos diretamente referenciais e (ii) que possuem uma estrutura interna, o que quer dizer que, para o caso de ‘eu’, por exemplo, sua interpretação não é simplesmente o resultado da fórmula F.
A ideia é que tanto as descrições definidas canônicas (sintagmas da forma ‘o N’) quanto os indexicais são expressões que envolvem propriedades. No entanto, a diferença entre esses dois tipos de expressão é que numa descrição definida a propriedade é pronunciada (é o ‘N’), ao passo que nos indexicais a propriedade é estabelecida a partir de elementos contextuais. Sendo assim, existem, na verdade, duas maneiras de se construir uma descrição definida, ou via propriedades pronunciadas (descrições definidas) ou via elementos contextuais (indexicais).
Nunberg (1993) esboça sua proposta, mas não chega a concretizá-la. A formalização de sua proposta é feita posteriormente por Elbourne (2008) para lidar com demonstrativos; abaixo, apresentamos a fórmula para o caso de ‘eu’
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H: [eu [R i]]
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Como podemos ver, ‘eu’ envolve os elementos R e i, que são primeiramente combinados, e então se combinam com o terceiro elemento, ‘eu’, resultando numa interpretação. O elemento i representa um índice extralinguístico, algo que é tomado do contexto e a partir do qual a interpretação do indexical é gerada; R está por uma relação que toma como argumento um índice para resultar numa propriedade; e, finalmente, ‘eu’ tem o mesmo papel que o artigo numa descrição definida; o resultado final da composição será uma expressão que denota um indivíduo. Os tipos semânticos mobilizados, considerando uma semântica de situações, são como abaixo (o tipo <se> é um conceito individual, ou seja, uma função que toma uma situação e resulta num indivíduo):
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i → índice contextual; um objeto extralinguístico; uma expressão
do tipo <e>;
R → relação que toma como argumento i e resulta em uma expressão
do tipo <se,st>; é, portanto, do tipo <e,<se,st>>;
eu → tem o mesmo tipo de um determinante, <se, <se,st>>, e toma uma propriedade (<se,st>) para resulta num (conceito) individual, tipo <se>
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O resultado da fórmula será então uma expressão do tipo <se>, o mesmo que teríamos para uma descrição definida como ‘o N’. É importante notar que a contraparte da propriedade ‘N’ de uma descrição definida na fórmula H é o resultado da composição de R e i, como indicam os colchetes.
Dado que o ‘eu’ da fórmula em H e o ‘o’ tem o mesmo tipo semântico, é preciso saber qual é a diferença entre esses dois itens. Uma ideia interessante é apelar para o que os sintaticistas chamam de traços-φ, ou seja, as informações responsáveis pela concordância nominal de gênero, número etc., presentes nos pronomes e determinantes. Podemos entender esses traços-φ como pressuposições (que seriam funções parciais de identidade aplicadas ao conjunto de indivíduos) carregadas pelos próprios itens; sendo assim, o item ‘eu’ teria como traços-φ os seguintes:
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Na fórmula H, os traços-φ são responsáveis delimitar o que pode servir como índice i; ora, dado que ‘eu’ pressupõe que o índice seja [singular]] e [primeira pessoa]], o único candidato possível para i será o falante. Além disso, como para o caso do artigo definido, o ‘eu’ contribuirá também com a informação de unicidade.
Qual seria, por fim, a relação R? Baseados numa sugestão de Recanati (2005), vamos considerar que R pode expressar duas relações diferentes, e a escolha entre elas é uma manobra pragmática: ou (i) R expressa identidade ([[R]] = λx. λu<s,e>. λs. u(s) = x; note que a identidade se dá entre um elemento extralinguístico (x), de tipo <e>, e um conceito individual (u), de tipo <se>), ou (ii) R expressa o papel (“
Resumindo, a interpretação do pronome ‘eu’ leva em conta o estabelecimento de um índice extralinguístico, i, que combinado como uma relação R, que pode ser identidade ou papel, resulta numa propriedade que, por sua vez, ao se combinar com o (determinante) ‘eu’ resulta num conceito individual.
Vejamos então como essa teoria pode dar conta dos casos vistos em 2.1 a 2.7.
Tomemos a sentença abaixo, para analisá-la segundo a fórmula H e as considerações que vimos acima:
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(26) Eu nasci em tegucigalpa.
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Dado os traços-φ associados ‘eu’, a única coisa que servirá como índice i, para qualquer contexto, será o falante – no caso, João –; a relação R será a de identidade, e o cálculo todo está apresentado abaixo:
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(26) Eu nasci em tegucigalpa.
(27) [eu [R i]] → pelos traços-φ de ‘eu’, i é João, uma expressão do tipo <e>
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[eu [R João]] → a relação R, do tipo <e,<se,st>>, é identidade, [[R]]=λx. λu<s, e>. λs. u(s)=x; substituindo na fórmula [[R]] = λx. [λu<s, e>. λs. u(s) = x](João)
[[R]] = λu<s, e>. λs. u(s) = João → a propriedade de ser o conceito individual igual ao João, uma expressão do tipo <se,st>
[eu [= João]] → ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a propriedade [= João], resulta numa expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma dada situação, ao único indivíduo que é igual ao João, logo, João
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Com esse cálculo, a proposição expressa por (26), ignorando o tempo verbal, é: <João, nascer em Tegucigalpa>; o que está de acordo com nossa intuição.
Além disso, ao estabelecermos como referente de ‘eu’ o único indivíduo que é igual ao João, mimetizamos os efeitos de referência direta porque o índice i é um elemento extralinguístico que, uma vez estabelecido, continua sendo o mesmo em qualquer variação modal; dado que a interpretação é uma descrição definida que é igual ao índice (i.e., João), a rigidez referencial do índice é herdade pela interpretação final.
A derivação que apresentamos em (27) encontra exatamente os mesmos problemas que temos para o caso da teoria padrão ao lidar com os demais usos referencias, o impróprio, o metonímico e o metaficcional. Ou seja, para que a estratégia em (27) possa capturar as interpretações 2.2 a 2.4, é necessário apelar para mecanismos semelhantes aos necessários para que a teoria de Kaplan dê conta desses mesmos casos. A vantagem é que a teoria até aqui esboçada não esbarra em problemas como operadores-monstros e as soluções podem ser mais “orgânicas”. Seja como for, pareceria que a teoria baseada nas ideias de Nunberg não apresenta muitas vantagens com relação à teoria padrão; contudo, esse não é o caso justamente porque essa nova teoria consegue dar conta dos casos 2.5, 2.6 e 2.7 de maneira natural, como veremos na sequência. Nunca é demais lembrar, esses últimos casos simplesmente não “cabem” na teoria de Kaplan.
Para poder dar conta dos usos descritivos, basta considerarmos que a relação R da fórmula H captura o papel (“
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(28) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.
(29) [eu [R i]] à pelos traços-φ de ‘eu’, i é Dilma Rousseff, uma expressão do tipo <e>
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[eu [R Dilma Rousseff]] → a relação R, do tipo <e,<se,st>>, resulta no papel desempenhado pelo índice i – no caso, ‘ser o (atual) presidente do Brasil’ – de modo que i E R, ou seja, R só pode ser a propriedade ‘ser o (atual) presidente do Brasil)’ se Dilma Rousseff (que é o índice i) pertencer a essa relação; o resultado é uma expressão do tipo <se,st>;
[eu [‘ser o (atual) presidente do Brasil’ (e Dilma Rousseff o é)]] → ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a propriedade [‘ser o (atual) presidente do Brasil’], resulta numa expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma dada situação, ao único indivíduo que é o única presidente (atual) do Brasil.
Levando em conta os mundos possíveis que vimos na seção 2.5, repetidos abaixo, chegamos à conclusão correta de acordo com nossa intuição, qual seja: a proposição expressa por (28) só é verdadeira no mundo w1:
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w1 → a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil
w2 → a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja
w3 → a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil
w4 → a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja
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Um ponto importante é saber quando a relação R é
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(30) Amanhã é a festa mais importante do ano.
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Basta imaginar uma situação em que ‘amanhã’ não se refere ao dia depois de hoje, mas sim a um dia específico do calendário acadêmico, como, por exemplo, o dia de recepção dos calouros.
A estratégia usada para dar conta dos usos como variável ligada de ‘eu’ é a mesma empregada para dar conta desses mesmos usos para o caso de ‘ele’, e é, como mencionamos, o apagamento ou não-intepretação dos traços-φ presentes nos determinantes. Há várias propostas de como tal não-interpretação ou apagamento pode ocorrer (cf. HEIM, 2008; KRATZER, 1998, 20098), e não nos interessa aqui optar por uma delas, mas sim mostrar que, uma vez adotada uma das alternativas, a fórmula H dá conta dos casos vistos em 2.6 e 2.7.
Os traços-φ associados a ‘eu’ são:
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(11) (Maria diz:) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.
(31) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios filhos
(31’) [Ser o único x] lx[x toma conta dos filhos de x])
(32) [eu [R i]] → pelo apagamento dos traços-φ de ‘eu’, i é qualquer elemento do conjunto de indivíduos, x
[eu [R x]] → a relação R, do tipo <e,<se,st>>, é identidade, [[R]]=λx. λu<s, e>. λs. u(s)=x; substituindo na fórmula [[R]] = λx. [λu<s, e>. λs. u(s) = x](x)
[[R]] = λu<s, e>. λs. u(s) = x → a propriedade de ser o conceito individual igual a um indivíduo do domínio, x, uma expressão do tipo <se,st>
[eu [= x]] → ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a propriedade [= x], resulta numa expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma dada situação, a um único indivíduo do domínio.
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Finalmente, para dar conta do caso (14), repetido abaixo como (33), basta prefaciar a fórmula com um operador genérico, GEN, que provavelmente é acionado pelo imperfeito presente no verbo:
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(33) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado...
GEN[[ser pra x ganhar] ® [x entra motivado]]
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Obviamente, o que mostramos nesta seção é apenas uma primeira elaboração de como dar conta dos usos como variável de ‘eu’, que precisa ser elaborada mais detalhadamente de posso de uma teoria sobre como lidar com os traços-φ; é importante notar, contudo, que tal teoria tem, em princípio, meios para lidar com essa interpretação.
O objetivo principal deste trabalho é propor uma análise para o item ‘eu’ que dê conta dos usos vistos em 2.1 a 2.7, sem apelar para algum tipo de ambiguidade associada ao ‘eu’. Para tanto, mostramos que a teoria padrão, proposta por Kaplan, não dá conta, sem alterações substanciais, de 6, dos 7, casos analisados, além de não levar em conta informações como os traços-φ presentes nos pronomes.
Diante dessas limitações, propomos uma outra análise para ‘eu’, baseada nas ideias de Nunberg (1993). Esse autor considera que ‘eu’ (e os demais indexicais) tem muito mais estrutura interna do que afirma a teoria de Kaplan e, a partir dessa concepção, sua abordagem consegue capturar as interpretações mostradas na seção 2. Essa proposta não é, obviamente, isenta de problemas. Entre eles podemos citar a dificuldade de lidar com os casos 2.2, 2.3 e 2.4; porém, essas dificuldades são rigorosamente as mesmas enfrentadas pela teoria de Kaplan, o que colocaria as teorias em pé de igualdade não fosse o fato de a teoria de Kaplan ser muito mais econômica. A (aparente) falta de economia da teoria aqui avançada é compensada pela possibilidade de ela lidar com os casos em 2.5, 2.6 e 2.7, casos para os quais a teoria de Kaplan, em sua forma original, simplesmente não tem o que dizer.
Além disso, essa nova teoria captura a rigidez referencial de certos usos de ‘eu’, usa de maneira elegante os traços-φ, e unificada, não apenas os usos de ‘eu’, mas também os usos dos pronomes através da ideia que sua interpretação é, na verdade, muito próximo às das descrições definidas. As derivações que propomos na seção 4 são apenas esboços de como fazê-las e precisam ser mais bem desenvolvidas. No entanto, como cada uma delas merece um estudo em separado, aqui nos limitamos a mostrar como seria possível unificar os usos de ‘eu’.
Gostaria de agradecer à Raquel Darelli Michelon por discutir comigo várias das questões aqui tratadas, à Lovania Roehrig teixeira pela atenciosa leitura de uma versão preliminar e vários comentários que em muito melhoraram o texto; finalmente, agradeço à Roberta Pires de Oliveira por acompanhar e discutir as ideias aqui expostas.
Exemplo adaptado de Corazza
Seria possível argumentar que o uso metaficcional é, na verdade, uma instância do uso descritivo, que veremos na seção 2.5. Contudo, essa saída não é viável pois a aplicação do uso descritivo geraria, para ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’, a seguinte paráfrase ‘Ana acha que a atriz que interpreta Sandra (e Ana é uma dessas atrizes) pode ser mais rica’, que não captura nossa interpretação da sentença.
É importante lembrar que isso se dá porque, na teoria de Kaplan, o contexto de proferimento determina, exclusiva e exaustivamente, o referente, que em todos os casos do exemplo (8) será Dilma Rousseff porque ela é ca.
Traços responsáveis por informações como gênero e número presentes num pronome ou determinante; voltaremos a eles na seção 4.
Zobel (2010, 2011) lança mão de ideias semelhantes, mas, apesar de se apoiar em Nunberg (1993) e Elbourne (2008), propõe que ‘eu’ é, na verdade, uma descrição
A combinatória de tipos se dá do seguinte modo: <e, <se,st>>/<e> → <se,st>; <se, <se,st>>/<se,st> → <se> (i.e., R/i; ‘eu’/R). Essa mesma combinatória vale para os casos nas seções 4.2 e 4.3.